3

Augusto de Campos traduz1

Per angusta ad Augustum

André Vallias

Em 2011 organizei, na revista Errática, um dossiê em homenagem a Augusto de Campos pelos seus 80 anos. O preparo das inúmeras colaborações, muitas requerendo recursos multimídia, consumiu tanto tempo que não me sobrou nenhum para conceber a minha própria colaboração. Contornei a falta co-assinando uma obra para qual criara o design e a animação.

Quando me dei conta da iminência do próximo jubileu, pus-me rapidamente a pensar como homenagear o poeta, cuja obra tem me inspirado tanto ao longo dos anos; o poeta que tive não só o privilégio de publicar como o de ser por ele publicado; e que ainda concedeu-me a honra de ser seu colaborador e a alegria de uma amizade quase paternal.

Mas que dificuldade! De cara, descartei a primeira ideia: a criação de um logograma. Aquele que Erthos Albino de Souza fizera, e que usei para ilustrar a homenagem dos 80 anos — logograma ac —, parecia-me insuplantável.

Percorri as coletâneas do poeta inúmeras vezes em busca de inspiração, e a releitura de seus poemas seminais apenas reavivava a admiração, enquanto inibia qualquer esboço de paráfrase ou glosa.

o rei menos o reino, os sentidos sentidos,
poetamenos, vida, tensão, bestiário,
ovonovelo, vida, iniciomeiofim,
sem um número, flor da pele, tempoespaço,
greve, cidade/city/cité, caracol,
quadrado, luxo, os “popcretos”, os “profilogramas”,
os “equivocábulos”, as “enigmagens”, viva
vaia, os “stelegramas” (inseto, miragem,
o quasar, o pulsar, o, memos, po a poe,
tudo está dito), os “expoemas” (cabeça,
todos os sons, pessoa, afazer, sos,
viventes e vampiros, dizer, inestante,
anticéu e pós-tudo), os “despoemas” (não-
mevendo, caça, pós-soneto, viv, minuto,
walfischesnachtgesang, poema bomba), os “po-
emóbiles”, os “clip-poemas”, desplacebo,
não, ad marginem, sub, preposições, ferida,
caos, criptocardiograma, morituro, faça
o que faça, mercado, oco, sem saída,
ão, desumano, osso, tour, fratura exposta,
os “tvgramas”, tântaro, solpôr, humano,
deuses, d?vida, pós e colidouescapo

André Vallias

Os meses foram se sucedendo, e nada. Até que no final de novembro uma ideia enfim brotou dos fascículos que Augusto vem publicando pela editora Galileu, de Jardel Dias Cavalcanti. Alguns que o próprio poeta me presenteara em nossos encontros antes da pandemia, outras que encomendei ao editor, e que continham suas “extraduções”: Rimbaud, Marianne Moore, Retrato de Sylvia Plath como artista, Esses russos, Latinogramas, Poetas bizarros na internet, Irmãos humanos — de Machaut a Villon, Franceses — de Nerval a Roussel, Loja do livro italiano.

Essas publicações de “guerrilha”, de um autor prestes a completar 90 anos, impeliram-me a listar todos os poetas que ele já havia traduzido — incluindo as “intraduções”, “outraduções” e versões de canções. Parti para um exame minucioso de toda a bibliografia que dispunha e alcancei a incrível cifra de 132 nomes, que na certa devia estar incompleta. Para ser sincero, uma primeira contagem dera quase o dobro!

Pois quem há de negar que Augusto traduziu:

Marcel Duchamp, Patrícia Galvão, João Gilberto,
Pedro Kilkerry, Oswald de Andrade, Lauryn Hill,
Sousândrade, Lothar Charoux, Torquato Neto?

Ernani Rosas, Glenn Gould, Caetano Veloso,
Guimarães Rosa, Macalé, Mário Faustino,
Timothy Leary, Erthos Albino de Souza,
Joss Stone, Gilberto Gil, Wlademir Dias-Pino?

Johanna Beyer, João Cabral, Demetrio Stratos,
Kazmer Féjer, Galina Ustvólskaia, Tom Zé,
Lupicínio Rodrigues, Gregório de Matos,
Victoria Woodhull, Igor Stravinski e Flaubert?

George Gershwin, Aldo Brizzi, Geraldo de Barros,
Paulinho da Viola, Ruth Crawford, Sapir,
Morton Feldman, Mutantes, Kaija Saariaho,
Hermelindo Fiaminghi, The Beatles, Satie?

Pamela Z, Pierre Boulez, Newton Mendonça,
Nikolai Obukhov, Wollner, Walter Smetak
Varèse, Cyro Pimentel, Thelonius Monk,
Webern, Gilberto Mendes e Chico Buarque?

Para garantir a viabilidade do projeto, no entanto, achei melhor restringir-me ao critério de tradução “stricto sensu”, ou melhor, “augusto sensu”. Paralelamente, fui construindo o nome do poeta a partir de exatos 132 quadrados intercalados, de modo que as letras “g” e “o” ficassem centralizadas, e pudessem ser também lidas como um “90” na vertical.

Não satisfeito com o resultado, e transformando a homenagem numa verdadeira terapia ocupacional de quarentena, passei a ordenar os 132 nomes num esquema métrico. Após algumas tentativas, estabeleci um padrão de três nomes por verso de onze sílabas (com algumas poucas variações) e comecei a agrupá-los por sonoridade, formando dísticos rimados ou quase. Dividi o conjunto em três estrofes de oito dísticos. E no intuito de não poluir o texto com vírgulas, resolvi usar duas cores (azul e laranja, inspirado no penúltimo poema da série “poetamenos”).

O nome “augusto de campos” foi igualmente dividido nas duas cores, de maneira que os 65 quadrados laranjas coincidissem com o número de poetas em laranja, e os 67 quadrados azuis com o número de poetas em azul, configurando um quebra-cabeça que me lembrou — exagero meu — o cubo de Rubik.

André Vallias

Como o Flash se tornara obsoleto, fiz a montagem num editor de HTML5, e, à medida que armava a interatividade do conjunto, novas ideias foram surgindo. Por que não ilustrar cada poeta com um retrato?

E dá-lhe pesquisa iconográfica na Internet. Que tal ordenar também por ordem cronológica de nascimento? Saiu uma listagem que certamente agradará ao poeta, pois inicia e finda com mulheres; o que não chega a equilibrar o saldo de séculos e séculos de cultura patriarcal, mas redunda numa feliz coincidência que faz jus ao pró-feminismo de Augusto. E que tal montar uma trilha sonora para a animação cronólogica dos retratos? Uma mini-história da música — como a definiu Marjorie Perloff — em 55 segundos.

Para fazer a leitura do poema veio-me imediatamente à cabeça o nome de uma artista que, além de fã incondicional e amiga do poeta, compartilha com ele as mesmas iniciais: Adriana Calcanhotto. Ela topou com entusiasmo. E adentrei a última e mais trabalhosa fase do projeto: animar cada um dos retratos, sincronizando com o áudio do poema…

Quando já estava quase terminando, fui surpreendido pela publicação de mais dois fascículos de Augusto: Imãos Hispanos — De Bécquer a Lorca e Dessurrealistas — Franceses! Temendo refazer o trabalho e vê-lo de novo desmoronar, decidi recorrer ao poeta. Mais 23 nomes se juntaram ao acervo! Por sorte, a composição adequou-se bem ao número atualizado, ficando dividida em 77 quadrados laranjas e 78 azuis. E três dísticos foram adicionados ao poema, totalizando nove por estrofe.

E foi assim, resumindo a história, que pude mergulhar e nadar a esmo em quase 3 milênios de poesia graças ao monumental esforço tradutório de Augusto de Campos, enquanto meus compatriotas exasperavam-se com a incúria criminosa de um governo que até agora não conseguiu elaborar um plano coerente de vacinação, para não mencionar os descalabros de um presidente que parece regozijar-se com o genocídio que estimula. De volta à pandemônica realidade, só posso dizer: por isso e tudo mais — thanks, merci, spaciba, grazie, danke, gracias, gramàci, obrigado, Poetamenos!


Veja e ouveja o poema interativo Augusto de Campos traduz (feat. Adriana Calcanhotto)