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As pedras de Exu: a psicanálise em Frantz Fanon e Lélia Gonzalez

I.

Documentação do processo de construção das ilustrações da série In The Moonlight Black Boys Look Blue, Rafael RG, 2021.

Entre Frantz Fanon e Lélia Gonzalez abundam semelhanças, convergências, projetos políticos, diagnósticos sociais e campos conceituais comuns. Não obstante, as diferenças aqui seriam igualmente importantes para uma compreensão mais refinada de suas contribuições ao pensamento e às estratégias de luta pela emancipação de grupos minorizados. Afinal, na obra de ambos, o que está em jogo é precisamente a questão da diferença e como ela — longe de ser um dado natural — é signo de um horizonte do comum deficitário, que lê as alteridades racializadas a partir de uma assimetria, seja ela explicitamente violenta ou estruturalmente sintomática.

Mas talvez tudo isso seja ainda muito abstrato. Partamos do princípio: Fanon e Lélia são negros. Mais precisamente, um homem negro da Martinica, revolucionário, que fez parte da sua formação psiquiátrica na França em meados do século XX; e uma mulher negra brasileira com vasta formação em ciências humanas, professora, intelectual e militante. Suas vivências, distintas por suposto, encravam diferenças essenciais em suas obras ao mesmo tempo em que os pontos de convergência talvez nos digam que há uma trágica repetição na experiência vivida do negro, para retomar o título daquele que é um dos capítulos mais fascinantes do clássico Pele negra, máscaras brancas, que conta agora com edição e tradução novas (Fanon, 2020). Mas, e aí introduz-se um dos pontos fundamentais de Racismo e sexismo na cultura brasileira (Gonzalez, 2020) — também mui recentemente recompilado em uma nova coletânea da autora —, haveria alguma especificidade na experiência vivida da negra? Aliás, será acaso o fato de “naturalmente” nossas bocas sentirem mais conforto em chamar o homem Fanon pelo sobrenome e a mulher Lélia pelo prenome?

Aqui o problema se duplica. De um lado temos uma diferença nas experiências vividas1 de ambos, que impactam incontornável e positivamente suas produções teóricas; de outro, temos os ecos produzidos nas leitoras e leitores de suas obras, numa sociedade ainda raciosexualizada.

Dizia o francesíssimo Jacques Lacan, na abertura de seus Escritos, que o leitor deveria — para tomar a coletânea como se deve — colocar nela algo de si. Um bom texto é, assim, em alguma medida permeado por um lugar que o sujeito leitor ocupa perante si mesmo face as letras que desfilam sob seus olhos. Mas quase sempre esquecemos disso, pois a matriz de conhecimento ocidental faz crer que há autorias e leituras desencarnadas, desracializadas e sem gênero e classe. Ocorre que há alguns textos que perturbam esse estado quase hipnótico de alheamento de si, de seu corpo e do seu lugar. Trombar com Lélia e Fanon é uma aventura, entre outras razões, porque suas leituras provocam. Não só as ideias, mas muitas vezes o próprio corpo. Que atire a primeira pedra quem nunca precisou levantar da cadeira e dar uma volta na sala após ler um acachapante parágrafo de Fanon ou quem consegue segurar o sorriso e a perplexidade com a qual Lélia brincava com seu pretuguês, produzindo novidades que vão deixando leitoras boquiabertas décadas após seu desaparecimento. Mas, nesse momento, mais uma questão: seria essa uma sensação de todos ou só minha? O que há de meu — seja com minhas idiossincrasias e minhas histórias, seja com meus marcadores sociais da (in)diferença — e o que há para outros?

Debruçando-me sobre Lélia e Fanon, foi-me impossível continuar a sustentar a ficção de neutralidade que muitas vezes marca a leitura e posicionamento daqueles (e já me incluí entre eles) que — em nome da negatividade pós-estruturalista — muito rapidamente correm para criticar debates contemporâneos por meio do dito “identitarismo”. Em outras palavras, ainda que já tivesse acesso a outras discussões sobre racismo e saberes situados, foi só a partir da leitura de ambos que de fato me racializei. Isso porque o mergulho em seus textos era uma experiência pulsante, instigante e, ao mesmo tempo, incômoda.2 A intensidade deste familiar estranhamento produziu neste sujeito branco, contudo, não exatamente uma culpa, mas um convite a assumir uma responsa na transmissão. Talvez isso tenha sido possível porque nos trabalhos de ambos o sujeito branco não é apenas um vilão, mas sobretudo um alienado. Me foi menos desconfortável começar uma implicação a partir daí.

Esta ambiguidade presente no tipo de desassossego que a leitura de ambos provoca tem também uma razão de ordem teórica bastante relevante. Há, em seus projetos, uma tentativa de escapar da armadilha de ler uma unidade no indivíduo racializado. É verdade que há privilégios, violência e perpetuação de poder no que tange a relação entre brancos e negros na contemporaneidade. Porém, é igualmente verdade que o indivíduo branco, na maior parte das vezes, não perpetua seu lugar de poder a partir de ações pautadas por uma lógica da consciência (tão criticada por Gonzalez). E a astúcia em manter essa aparente contradição é o que permite construir um projeto político de transformação que se valha da marca dessa tensão para atravessá-la, em vez de chapar a subjetivação da experiência vivida de cada um/a com a lógica social que produz sujeitos marcados pelo racismo. Da mesma feita, valendo-se da máxima beauvoiriana, Gonzalez assevera que “nós não nascemos negros, nós nos tornamos negros! A gente nasce ‘pardo’, ‘azul-marinho’, ‘marrom’, ‘roxinho’, ‘mulato claro’ e ‘escuro’, mas a gente se torna negro. Ser negro é uma conquista. Não tem nada a ver com as gradações de pele. Isso foi o racismo que inventou!” (2018, p. 361).

Rosemere Ferreira da Silva compreende tal passagem como uma crítica à naturalização epidérmica da subalternidade: “Nascer negro, na concepção da autora, pode ser compreendido como a continuidade de um projeto colonial de reprodução do indivíduo negro como inferior, subalterno e alienado à sua própria capacidade humana” (2020, p. 145). Por outro lado, o tornar-se negro se afiguraria como uma conquista ligada à assunção política do lugar do próprio negro na sociedade e, consequentemente, com uma (re)escrita da própria experiência vivida. Mas de que raça era o indivíduo antes de tal processo? Pode-se dizer — e aqui outra convergência entre os dois autores — que ele era branco, ou mais precisamente, almejava um reconhecimento desde este lugar. Novamente, percebe-se uma espécie de cisão no interior do psiquismo, uma identificação imprópria e uma alienação do sujeito em relação à sua própria verdade. Seriam estas meras coincidências entre o pensamento de Frantz e Gonzalez? O que explica tais convergências e os detalhes de suas diferenças?

II.

Em parte, a presença de tais ideias em Lélia Gonzalez se explica pelo fato de ser ela uma leitora de Frantz Fanon e não o oposto: quando do passamento do martiniquense, a pensadora ainda cursava sua graduação em filosofia. Até onde avançou nosso levantamento, suas primeiras referências diretas a Fanon são do início da década de 1980, momento no qual, de acordo com Deivison Faustino (2015, p. 54), a leitura de Fanon passa a sofrer um giro no qual ganham ênfase suas análises culturais e psíquicas em detrimento de seu horizonte revolucionário, com o qual foi originalmente lido no início dos anos 1960. Não há indicativos que Gonzalez tenha tido contato com produções fanonianas outras que não Os condenados da terra e Pele negra, máscaras brancas,3 possivelmente por serem, à época, de difícil acesso.

Em um artigo que discute a invisibilização do trabalho de intelectuais negras brasileiras no campo dos fanonismos, Rosânia do Nascimento afirmará que:

A necessidade de afirmar as contribuições de Lélia González e Neusa Santos Souza ou pensá-las como leitoras de Frantz Fanon (1968 e 2008), é propor uma reflexão sobre a importância da circulação das traduções deste martinicano no país, e afirmar que trata-se de uma agenda política protagonizada por mulheres negras que desenvolveram teoricamente os debates raciais no Brasil no período de 1980 a 1990.

(2019, p. 172)

Na mesma esteira, Silva afirmará que:

A relação que essas intelectuais [Lélia González e Neusa Santos Souza] estabeleceram, prioritariamente, com as ideias de Fanon, a partir dos seus escritos e da sua crítica ao colonialismo e ao racismo, não só influenciaram o que sistematicamente produziram como conhecimento em suas áreas de atuação, mas incidiram também na maneira como elas passaram a se ver no mundo. Ambas mergulharam na proposição de uma descoberta pessoal e intelectual contra a alienação do estado psicológico do ser humano. Foram capazes de, em seus projetos intelectuais, subverter a não lógica circundante no “Ideal do Ego” em estado produtivo da experiência negra. Sem dúvida, são duas experiências femininas e negras, no contexto intelectual brasileiro, que desafiaram tornar o sujeito negro um ser de ação, conforme preconizou Fanon.

(2020, p. 148)

Notemos como nas duas comentadoras repete-se uma unificação no que tange o tipo de influência que Fanon teria tido em Souza e Gonzalez. Poderíamos argumentar, assim, que ambas se interessam por Fanon na medida em que é este um autor que fala da experiência vivida do negro a partir de seu sofrimento psíquico, leitura esta corroborada por Cláudia Pons Cardoso, quando afirma: “Um dos principais traços do pensamento de Fanon, que identifico na obra de Lélia, diz respeito à abordagem dos danos psicológicos causados pela relação de dominação/exploração entre colonizador e colonizado” (2014, p. 968). Mas qual de fato é o uso que Gonzalez faz da letra de Frantz, tanto declarada quanto sub-repticiamente?

Curioso é notar que, a despeito das afinidades conceituais — em especial da espessura psicológica do racismo — Gonzalez não se refere muitas vezes a Frantz mais extensamente de maneira direta. Exceção feita ao seguinte trecho de Uma viagem à Martinica I:

[…] pondo o dedo na ferida da alienação do negro, encontra-se a dramática figura de Frantz Fanon, o jovem psiquiatra que se destacou na Guerra de Independência da Argélia. Crítico da noção de negritude, escreveu Os condenados da Terra e Pele negra, máscaras brancas. Este último é uma das mais acuradas análises dos mecanismos psicológicos que induzem o colonizado a se identificar com o colonizador. Na sua perspectiva, a desalienação do negro está diretamente vinculada à tomada de consciência das relações socioeconômicas. Sua posição crítica diante do que considerava uma acomodação de seus conterrâneos para com a política assimilacionista francesa o levou a exigir que, após sua morte, fosse enterrado na Argélia. E assim foi feito.

(Gonzalez, 2020, p. 272, negritos nossos)

Temos aí um resumo da perspectiva que, a meu ver, guiará a apropriação gonzaleana de Fanon: a importância de uma análise que leve em consideração a espessura psíquica da alienação do negro (e do branco) ao sistema de dominação racial. No entanto, diferentemente do que poderíamos supor, essa análise 1) não coloca em primeiro plano o sofrimento e 2) não tem como objeto especificamente o indivíduo negro, ainda que possa, neste caso, interpretar a vivência do homem Frantz como dramática. Estes dois pontos já a diferenciariam, por exemplo, do uso que Souza faz de Fanon. Mas qual seria seu interesse, então, em uma teoria psíquica já que o objetivo não seria detalhar a saúde mental da população negra?

Um ponto que chama a atenção nas esparsas referências diretas feitas pela antropóloga ao psiquiatra é a maneira peculiar de trazer seu nome à baila. Um exemplo é quando Gonzalez, ao comentar a “Apresentação dos Cadernos Negros”, afirma: “Ecoam nesse texto sonoridades que nos remetem às vozes de um Frantz Fanon, de um Agostinho Neto, de um Amílcar Cabral, de um Malcolm X, de um Solano, de um Abdias e de tudo que eles representam” (Gonzalez, 2018, p. 152). Perdido entre um negro mar de referências, encontramos não o grande Fanon de 2021, redescoberto despois de décadas de silenciamento, mas um Frantz Fanon entre outros, forma esta de referir-se ao autor que irá se repetir um punhadinho de vezes.

Ainda que possa parecer anedótico, este movimento nos mostra que Gonzalez era uma intelectual com um arcabouço teórico eclético (Rios e Lima, 2020, p. 14), na melhor acepção do termo: para dar conta do complexíssimo problema do racismo no Brasil e na América Latina, a autora precisou, em sua originalidade, mesclar referências que iam desde mitos, passando pela tradição brasilianista clássica, intelectuais americanos e africanos, psicanálise, filosofia, sem esquecer ditos populares, piadas e, no limite, a cultura brasileira como um todo. Assim, é difícil defender que Gonzalez seja uma fanoniana no sentido estrito do termo, por mais que possamos compreender seus diálogos com o pensamento de Fanon para além de suas referências diretas, já que, como lembra Raquel Barreto, “A referência a Frantz Fanon foi constante nos movimentos negros de Brasil e EUA” (2005, p. 86).

III.

Muitas seriam as formas de empreender um estudo sobre as influências fanonianas em Gonzalez: desde o lugar da ancestralidade, passando pelas semelhanças e diferenças do racismo entre Brasil e colônias francesas, o lugar da revolução, as questões de gênero, as estratégias de superação do racismo etc. Minha leitura, no entanto, não se deu a partir de uma vivência na militância, nem propriamente da filosofia, mas, marcadamente a partir da psicanálise. E é sob esta ótica que gostaria de apresentar alguns pontos que julgo relevantes na construção do pensamento de ambos.

Analisemos a maneira pela qual se iniciam alguns textos centrais para a compreensão do pensamento de Frantz e Gonzalez, em especial no que se refere à explicitação de suas perspectivas metodológicas. Nas primeiríssimas páginas da introdução de Pele negra, máscaras brancas, dirá Fanon:

De fato, acreditamos que apenas uma interpretação psicanalítica da questão negra pode revelar as anomalias afetivas responsáveis pelo edifício complexual. Trabalhamos para uma lise completa desse universo mórbido. Consideramos que um indivíduo deve se inclinar a assumir o universalismo inerente à condição humana. […] A análise que realizamos é psicológica. […] Esta obra é um estudo clínico.

(2020, p. 24, negritos nossos)

Já em Gonzalez, encontraremos as seguintes passagens:

Este texto resulta de uma reflexão que vem se estruturando em outros que o antecederam, e que se enraíza na retomada das ideias de Bety Milan desenvolvidas por M.D. Magno. Trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação histórico-cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo, da ordem do inconsciente, não vem a ser o que geralmente se afirma: um país cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias e brancas. Ao contrário, ele é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve trocado o t pelo d para, aí sim, ter seu nome assumido com todas as letras: Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência). Nesse contexto, todos os brasileiros (e não apenas os “pretos” e os “pardos” do IBGE) são ladinoamefricanos. Para um bom entendimento das artimanhas do racismo acima caracterizado, vale a pena recordar a categoria freudiana de denegação (Verneinung)”.

(Gonzalez, 2020, p. 127, itálicos originais, negritos nossos)

E, em outro texto,

Os textos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva sócio-econômica que elucidava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará) sempre um resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar. Exatamente a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali, nos martelando com sua insistênciaNosso suporte epistemológico se dá a partir de Freud e Lacan, ou seja, da Psicanálise.

(2020, p. 77, negritos nossos)

Iniciemos pelas convergências das passagens. Em primeiro lugar há, claro, uma franca assunção da psicanálise como suporte da análise de ambos. O que não implica, é claro, que se trate de trabalhos exclusivamente psicanalíticos, dado que há outras interlocuções igualmente importantes, mas a centralidade da perspectiva freudiana (e lacaniana, para Gonzalez) é aqui incontornável.

Outro ponto relevante diz respeito ao lócus de emergência dessas declarações: ambas são feitas na introdução dos textos. Este detalhe da arquitetura dos escritos poderia parecer negligenciável não fosse, justamente, a especificidade da temporalidade e do ordenamento em psicanálise, oriunda da lógica freudiana do trauma: o a posteriori. Em outras palavras, é como se o trauma — e por extensão qualquer verdade do sujeito — só pudesse emergir a partir de uma significação posterior. De maneira mais poética, poderíamos nos servir do aforismo nagô retomado por Emicida em seu documentário AmarElo: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje”.

Digamos, assim, que a importância da psicanálise na destruição do racismo é essa pedra ontem, que vai sendo jogada ao longo das diferentes análises nas obras de Fanon e Gonzalez, e retornam a estes inícios do texto pois é aí que se condensam quatro razões da escolha da psicanálise junto ao empreendimento antirracista:

  1. a profundidade inconsciente da racialização,
  2. a noção de sujeito dividido pelo Outro e pela linguagem,
  3. a substituição de uma substancialidade epidérmica por uma processualidade subjetiva, e
  4. a perspectiva metodológica de utilizar a psicanálise para realizar uma diagnóstica do laço racializado.

Por mais que as discussões possam avançar para as mais diversas frentes, é importante lembrar que este parece ser um importante ponto de partida da análise de ambos, postura esta que não é partilhada por todas as perspectivas antirracistas (Ambra, 2020). Se Exu é aquele que acerta o ontem ao jogar a pedra sobre o ombro de hoje, fundando a própria temporalidade num ato que dissolve a ilusão de linearidade ocidental (Ferreira dos Santos, 2020, p. 14), a retomada de Gonzalez e Fanon nos últimos anos — fruto do árduo trabalho de pesquisadores e, principalmente, pesquisadoras negras —, pode ser pensada como uma forma de acertarmos (as contas com) o ontem a partir de problemas de hoje. Exu, por ser também o Orixá da encruzilhada, “parece funcionar como um operador semântico da alteridade africana na sua interseção com a cultura brasileira” (Nunes, 2020) e representaria também o próprio processo de amefricanização do Brasil, seja na vertente das potencialidades culturais, seja naquelas das feridas abertas da escravização.

Lidar com o atravessamento de um trauma cuja elaboração não cessa de não se inscrever é uma das principais tarefas de uma psicanálise, mas seu lugar nessa discussão não se resume à já citada teoria da temporalidade traumática — que subverte a lógica de linearidade sequencial, ponto que, inclusive, será explorado por uma outra pensadora pós-colonial e leitora da psicanálise, Grada Kilomba, para pensar a extensão do trauma colonial (2019). É preciso pensá-la também enquanto um saber situado que, ainda que tenha compromissos inconfessos com o racismo, pode ser reinterpretado à luz tanto de nossa contemporaneidade quanto das leituras de Fanon e Gonzalez. Em outras palavras, ler Jacques depois de Gonzalez é redescobrir Lacan, assim como Sigmund pode ser um novo Freud depois de Fanon. A contemporaneidade dessas autorias cruzadas só pode ser pensada a partir de retomadas que não pensam o conhecimento pela via de uma lógica cumulativa e progressista, mas como um ciclo. “A perspectiva é a de que a gente abra alguns caminhos e a gente tem que ter aí a consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa, vem e passa no sentido de passar mesmo e passa também a nossa experiência para quem está chegando. Aí é que me parecem que os africanos podem ensinar muito.” (Gonzalez, 2020, p. 333). Nossa responsabilidade na transmissão é também uma responsabilidade de reler o ontem para procurar o amanhã, na medida em que nossas mãos são guiadas pelas mãos dos que vieram antes de nós e, com sorte, nossas mãos guiarão outras num futuro distante. Enquanto analistas, comprometidos com uma ética na qual a lógica da dominação deve ceder lugar aos desejos verdadeiramente singulares, é nossa responsabilidade reconhecer e recolher as pedras no meio do caminho, sabendo que elas não são propriamente nem de ontem, nem de hoje, mas são nossas e de todes e, por isso, cabe também a nós seja carregá-las, seja lançá-las a um tempo outro, na esperança de, um dia, acertar o pássaro do racismo em cheio.

IV.

Vejamos agora alguns detalhes do uso da psicanálise por Fanon em Pele negra, máscaras brancas. A passagem na qual o autor, de alguma maneira, pretende avançar em relação a Freud estrutura-se a partir da constatação de que a psicanálise teria o mérito de considerar a perspectiva ontogenética em detrimento das teses filogenéticas, à época correntes, como a teoria da degenerescência. Ou seja, Fanon reconhece em Freud o mérito de uma desnaturalização, mas entende que tal projeto necessitaria de um passo a mais na questão da raça, pois, além da desconstrução do natural, seria necessário um questionamento do objeto de análise: não mais o indivíduo, mas o próprio laço no qual ele se socializa e, portanto, se subjetiva: “Veremos que a alienação do negro não é uma questão individual. Além da filogenia e da ontogenia, existe a sociogenia. Num certo sentido, em resposta à exortação de Leconte e Damey, digamos que se trata, neste caso, de um sociodiagnóstico” (Fanon, 2020, p. 25).

Temos aqui uma importante novidade metodológica que será aproveitada por Gonzalez anos mais tarde: reconhecer a importância da psicanálise não para psicanalisar seja o negro, seja o racista, mas para promover um diagnóstico de cunho social. Este expediente não é de todo alheio à psicanálise — basta pensar em textos como Psicologia das massas, Mal-estar na civilização e Totem e tabu — mas aqui parece ser utilizado com maior liberdade, diálogo com outras disciplinas e com um objetivo político distinto dos textos psicanalíticos até então.

No que diz respeito ao lugar do “tratamento”, algumas diferenças maiores se impõem. Se é bem verdade que o objetivo de Fanon é promover uma desalienação do negro, o que poderia ser compreendido também como o objetivo de toda psicanálise, as maneiras pelas quais essa libertação se dá parecem ser mais distantes daquela. Seja pelo movimento teórico no desenrolar do Pele negra, onde vemos um crescimento da importância da dialética hegeliana e da filosofia sartreana, seja pelo projeto posterior Os condenados da terra, vemos que a perspectiva de transformação de Fanon se afasta da psicanálise: focam-se aí a luta contra o colonizador, a libertação do colonizado rumo a um verdadeiro universal na qual, no limite, branquitude e negritude desapareceriam e um futuro no qual seja possível uma verdadeira comunicação (Fanon, 2020, p. 242). Em outras palavras, se da psicanálise extrai-se a ótica a partir da qual se dá sua hipótese diagnóstica e uma teoria do sujeito processual e antiessencialista, seu tratamento irá mobilizar outras ferramentas políticas e teóricas.

Outro capítulo importante do lugar da psicanálise para Fanon encontra-se na interlocução crítica estabelecida com o trabalho de Octave Mannoni. Contrapondo-se ao psicanalista francês, Fanon critica a ideia de um complexo de inferioridade que seja anterior ao processo colonial, amalgamando duas críticas em uma: por um lado, não adere à patologização do conflito (2020, p. 100) e, por outro, continua sua saga na demonstração de uma certa ficcionalidade de uma ancestralidade intocável pelo processo colonial. Fanon sabe que o negro é uma invenção do branco e não existe fora de uma racionalidade já marcada pela exploração do território, ainda que numa anterioridade hipotética. Encontramos novamente um cruzamento entre a questão da temporalidade e a epistemologia: é como se cada tentativa branca de erigir uma verdade num suposto estágio de natureza anterior a sua própria chegada fosse solapada por uma pedra de Exu jogada do presente.

Para escapar das linhas de um passado escrito com letras de um presente, Fanon parece apostar num horizonte de dissolução que encontraria, no dia seguinte, um mundo no qual fosse possível, após lutas que levariam a uma dissolução identitária, uma compreensão mútua. Em Racismo e cultura, afirmará que:

O fim do racismo começa com uma súbita incompreensão. A cultura espasmada e rígida do ocupante, liberta, oferece-se finalmente à cultura do povo tornado realmente irmão. As duas culturas podem enfrentar-se, enriquecer-se. Em conclusão, a universalidade reside nesta decisão de assumir o relativismo recíproco de culturas diferentes, uma vez excluído irreversivelmente o estatuto colonial.

(Fanon, 2018, p. 90, negritos nossos)

Em Pele negra, lemos: “O negro não existe. Não mais que o branco. Ambos têm que se distanciar das vozes desumanas dos seus respectivos ancestrais, para que possa surgir uma autêntica comunicação” (p. 242). Ou seja, para Fanon a incompreensão é parte de um processo de dissolução que culminaria na possibilidade de uma irmandade na qual fosse possível um relativismo recíproco e horizontal tanto da força das culturas quanto da própria linguagem, já que só a partir daí uma verdadeira comunicação seria possível. Mas seria este o estatuto da linguagem e da comunicação para Gonzalez?

IV.

Como mencionamos, Frantz e Gonzalez utilizavam-se da psicanálise a partir de um lugar de bastante apropriação e liberdade, talvez pelo fato de não precisarem se preocupar em “serem psicanalistas” (o que, na verdade, é algo extremamente importante para a clínica, já que quando tentamos “ser analistas” nas intervenções quase sempre erra-se a mão). Isso porque furado não é apenas o sujeito que se deita no divã, mas o próprio lugar da psicanalista, donde a ideia de que em análise nos guiamos pela falta-a-ser. Lacan insiste na ideia de que não há metalinguagem, pois não há uma linha de fuga a partir da qual poderíamos falar neutralmente da linguagem: ela não é só nossa lente para enxergar o mundo, mas o próprio olho, o pescoço que orienta a direção do olhar e, no limite, o próprio corpo que se crê, por vezes, não linguageiro. Daí que a analista não pode ser alguém que detém a verdade sobre a analisante e dá dicas de comunicação não violenta para que ela possa melhor se compreender e expressar seus sentimentos. Pois tudo o que há numa análise só pode ser extraído das verdades descompassadas da linguagem e não de seus supostos referentes. O sujeito psicanalítico é, assim, aquele que emerge da errância, da impossibilidade de transparência. “Nossos atos falhos são atos que são bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam.” (Lacan, 1979, p. 302) E é esta a noção de linguagem em jogo para Gonzalez.

A partir daqui, começam a delinear-se diferenças importantes entre a autora e o autor. Não exatamente por seu horizonte político, pela crítica do colonialismo ou pela desconfiança de uma substancialidade epidérmica, mas justamente pelas diferenças em suas teorias do sujeito. Até agora falamos em psicanálise no singular, mas é preciso negritar nesse ponto uma importante diferença: a psicanálise utilizada por Gonzalez é de extração predominantemente lacaniana, ao passo que Frantz comenta Lacan de maneira muito pontual e com o objetivo de discutir uma questão hegeliana por excelência que é o reconhecimento (Fanon, 2020, p. 174). As décadas que separam ambos fizeram com que Gonzalez tivesse uma apreensão muito mais ampla de Lacan e, mais ainda, seu mergulho na psicanálise é digno de nota: em 1975 publicara A propósito de Lacan, uma espécie de elaborado fichamento dos seminários de Antônio Sérgio Mendonça e M.D. Magno, tornando-se este último um grande interlocutor; no ano seguinte, publica a tradução do livro “Freud e a Psicanálise” de Octave Mannoni; em janeiro de 1977 o Jornal do Brasil a entrevista na qualidade de uma das fundadoras do Colégio Freudiano, que iniciaria em março daquele ano seu curso de formação em psicanálise, no qual Gonzalez ministraria o módulo de Freud, nesse que seria um dos primeiros espaços de formação lacaniana no Brasil; o que explica, talvez, a extensão de sua apropriação e utilização da psicanálise em dois de seus textos mais fundamentais: Racismo e sexismo na cultura brasileira e A categoria político-cultural da amefricanidade.

Se em Frantz a psicanálise é uma interlocutora permeada por tensões e críticas (como é o caso da crítica a, justamente, Octave Mannoni), em Gonzalez o cenário é outro, pois ela se serve da sua leitura da psicanálise para enfrentar o problema do racismo no Brasil e não perdia tempo com as leituras mais conservadoras da psicanálise de então. E, olha, havia muitas! Não espanta, assim, sua aproximação com um MD Magno, um dos pioneiros do lacanismo no Brasil, que se preocupava em realizar uma recepção antropofágica e local da psicanálise de inspiração francesa. Ele foi quem, inclusive, lansô a braba sobre a amefricanidade no Brasil em seu seminário de 1980 — sobre a feminilidade em Lacan, o que não é uma coincidência —, tendo Gonzalez a levado muito mais longe a partir da eleição da mulher negra não só como seu assunto, mas como sua perspectiva, o que, novamente, a diferencia de um relativo universalismo analítico presente em Fanon. O autor martiniquenho, claro, não ignora a questão de gênero — haja vista que dedica dois capítulos do Pele negra às relações entre homens e mulheres pautados pela incidência do racismo — porém não parece que leva esta perspectiva ao coração de seu método, diferentemente de Gonzalez.

A meu ver, a sacação que toma a mulher negra como analítica da sociedade brasileira não se refere apenas à experiência vivida de Lélia, mas também a essa quase mea culpa feita por Lacan sobre a sexualidade feminina a partir de 1971, na qual se positiva a experiência de malemolência, como dizia Lélia, face à norma fálica, nessa que pode ser considerada uma de suas grandes críticas ao universalismo simbólico.4 Mais ainda, é também por conta destas discussões que Lacan passará a valorizar um registro da linguagem conhecido como Alíngua, não surpreendentemente citado por Gonzalez na abertura de Racismo e Sexismo.

Pode-se compreender que, neste texto, a hipótese de Gonzalez segundo a qual o racismo no Brasil é estruturado como um sintoma da neurose cultural, cujo signo clínico baseia-se no lugar da mulher negra na sociedade, é uma continuidade e, ao mesmo tempo, apresenta uma novidade em relação ao projeto fanoniano. A autora, logo no primeiro parágrafo, reconhece que Fanon teria analisado muito bem a identificação do dominado com o dominador, porém negrita não haver ainda uma discussão sobre (1) a hipótese etiológica da dominação; (2) suas especificidades brasileiras; (3) o processo a partir do qual o racismo se implanta e se mantém; (4) a relação entre o que se mostra e o que se oculta e (5) o lugar conferido à mulher negra no mito da democracia racial (Gonzalez, 2020, p. 76).

A psicanálise lacaniana é, assim, o suporte teórico que permitirá Gonzalez realizar esse desdobramento singular e inovador da perspectiva fanoniana de uso da psicanálise para a compreensão do racismo. As noções, oriundas da psicanálise, de lugar, fala, neurose, sintoma, negativa, significante, objeto a, lixo, lógica, resto, infans, consciência, memória, agressividade, culpabilidade, desejo, entre outras, servem a autora para tentar propor um método inovador de análise da sociedade brasileira no qual a verdade seja buscada não a partir de seu conteúdo manifesto, mas do conteúdo latente. O que se esconde quando se fala o que se fala?

Retomemos à questão da linguagem. Se para Fanon o racismo impunha uma espécie de entrave à comunicação verdadeira e horizontal, para Gonzalez, a fala, estruturalmente, é desencontro, motivo pelo qual gera sujeitos necessariamente cindidos. Daí a importância do pretuguês: lá onde Fanon lia um déficit de reconhecimento do eu pelo Outro, Gonzalez lê uma denegação da verdade presente na língua, oriunda de um recalque do desejo do branco pelo negro (mas não só). A crítica fanoniana ao petit nègre, que diminui o negro por meio de um exercício de poder da língua colonial, não se aplicaria necessariamente ao Brasil pois, para Gonzalez, a ideia de que há entre nós quem fale um puro português é equivocada: seríamos todos ladinamefricanos e falantes do pretuguês. O racismo seria uma tentativa disfuncional e com efeitos violentos de esbranquiçar esta verdade. Tal qual um sintoma neurótico, o sujeito não reconhece ali algo da sua verdade e, muitas vezes, projeta no outro seus descompassos. Afinal, o Brasil não é o país no qual ninguém é racista, mas todo mundo conhece um?

Por fim, é possível especular que estas diferenças de cunho diagnóstico levariam também a distinções no horizonte de tratamento possível para o racismo. Se Fanon parece ser mais claro em relação a o que fazer para promover o fim da ocupação territorial, social e psicológica do racismo, em Gonzalez as indicações são mais escassas. Mas, compreendendo Gonzalez a cultura brasileira como neurótica, lacanianamente teríamos algumas dicas da direção de seu tratamento rumo a uma libertação de nosso fantasma colonial.

A primeira é a dissolução do sujeito-suposto-saber, esse momento final do tratamento no qual a analista é destituída de seu lugar de onipotência imaginária e a cura encontra seu termo. Uma outra versão deste final de análise aparece por vezes sob a ideia de uma queda do objeto a, posto que analista seria aquela que faz semblante de objeto a. Ora, se a autora compreende que a mulher negra é situada no discurso da cultura brasileira justamente como este objeto — que, ao mesmo tempo e paradoxalmente, é o abjeto e a própria causa do desejo —, o fim do racismo coincidira com a queda dela deste lugar. Em um futuro não racista, existiriam mulheres negras em suas singularidades, claro, mas “A mulher negra” não, justamente porque este lugar inflacionado pela lógica da dominação sofreria uma queda, que libertaria a sociedade brasileira de sua alienação.

Mas haveria alguma passagem em Gonzalez que permitiria uma interpretação desta ordem? Vejamos como a autora caracteriza uma das principais figuras da mulher negra na cultura brasileira:

coube à mãe preta, enquanto sujeito-suposto-saber,5 a africanização do português falado no Brasil (o “pretuguês” como dizem os africanos lusófonos) e, consequentemente, a própria africanização da cultura brasileira

(Gonzalez, 2020, p. 54, itálico original, negritos nossos)

Ora, compreendendo a análise como um processo de instauração, elaboração e dissolução do lugar do sujeito suposto saber, temos mais uma vez como horizonte transformativo o esvaziamento do acúmulo de funções e investimentos desta figura, que por vezes é quadruplamente explorada no Brasil: como mulher, como mãe, como trabalhadora e como negra. Na canção Mãe, Emicida resume esta problemática e seu possível horizonte de resolução:

Não esqueci da senhora limpando o chão desses boy, cuzão/ Tanta humilhação não é vingança, hoje é redenção/ Uma vida de mal me quer, não vi fé/ Profundo ver o peso do mundo nas costa de uma mulher/ […] O sonho é um tempo onde as mina não tenha que ser tão forte

(Emicida Part. Dona Jacira e Anna Tréa, 2015, negrito nosso)

Não basta, no entanto, apenas se dar conta e bradar uma dissolução da identidade, de uma suposição de saber e do lugar do objeto. Se assim fosse, nem precisaríamos de análise: bastaria ler alguns textos e aprender que a analista é só uma pessoa sem saberes e poderes mágicos! Este é um processo que precisa ser atravessado a partir tanto de uma experiência vivida quanto de um percurso dialético no qual a queda do objeto é o resultado de uma consumação. A esta longa jornada dá-se o nome de travessia da fantasia, na qual as problemáticas são exploradas à exaustão, muitas vezes topando com momentos tensos e de muita angústia, pois, na compreensão freudiana, o sintoma irá piorar, se intensificar e debater-se justamente quando começamos a nos aproximar de sua resolução. Atravessamento este que se faz numa tensão entre a suposição de universal da linguagem e a criação duma modalidade própria de lida com a língua e o corpo. Do ponto de vista cultural, portanto, tratar-se ia não mais de rechaçar o pretuguês, mas de assumi-lo com toda sua a potência e verdade, podendo com isso fazer algo que não ignore o passado, mas que também não nos reduza a uma repetição sem fim do trauma colonial. Daí que o fim de análise lacaniano não é propriamente um se livrar do sintoma, mas uma identificação e um manjar do sintoma. Nesse sentido, com Gonzalez, seria possível construir uma plataforma de transformação na qual o objetivo fosse não apagar a colonização, rumo a um passado miticamente imaginado (seja ele puramente europeu ou puramente africano), mas radicalizar o fato de que somos, irremediavelmente, amefricanos e ladinos. Trata-se de habitar a travessia.

Falando nisso, há um Orixá que, justamente, zela pelas travessias, cruzamentos e contradições. É também a mesma entidade que cuida da linguagem e da comunicação, mas entendendo de partida que a fala é ambígua, pois a encruzilhada não está nem lá, nem cá, nem no passado, nem no futuro. Ganha uma pedrinha quem adivinhar seu nome…