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Aborto: por um debate enfim democrático e republicano

Sem título, Marco Noreña

Na recente queda do chanceler Ernesto Araújo, nem uma palavra sobre a desastrosa política externa brasileira relativa aos direitos humanos das mulheres. Silêncio. Calaram a indignação que a diplomacia brasileira suscitou nos fóruns multilaterais de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos desde a posse do governo Bolsonaro. Nos debates travados nas Comissões de Relações Exteriores do Senado e da Câmara condenando a atuação do ex-chanceler e exigindo seu afastamento, faltou denunciar sua defesa do alinhamento do Brasil a países como Arábia Saudita e Afeganistão, onde mulheres são cidadãs de segunda categoria, a quem se negam direitos individuais elementares.

As críticas e a pressão concertada do parlamento e de setores poderosos da economia levaram à destituição de Ernesto Araújo que, por suas convicções político-ideológicas descabidas, contrariou interesses comerciais do agronegócio e influiu negativamente na crise sanitária ao criar empecilhos diplomáticos para a aquisição de componentes indispensáveis à fabricação de imunizantes contra a covid-19.

Entretanto, na contestação desta política externa, nada se ouviu com relação aos interesses das mulheres, contrariados sistematicamente pela pauta de moral e costumes que, desde a eleição de Bolsonaro, impregna a tóxica atuação do Brasil no cenário internacional.

Há duas possíveis respostas para este silêncio: as instituições políticas, o empresariado, as forças armadas, a imprensa, e a sociedade em geral não atribuem importância aos direitos humanos das cidadãs brasileiras, ou ― mais grave ― parcela significativa destes setores apoiam o desmonte destes direitos. Ambos os casos caracterizam um cenário de negligência e, portanto, de perigo crescente para as mulheres e meninas deste país.

A investida contra os direitos e a dignidade das mulheres é ardilosa e combina estratégias agressivas tanto em âmbito multilateral quanto internamente. As mudanças ministeriais recentes não colocaram em xeque a estratégia acordada entre o Ministério da Família (MMFDH), o Ministério da Saúde e o Ministério das Relações Exteriores, cujo objetivo é desconstruir parâmetros normativos e políticas públicas nacionais, e negar compromissos internacionais no campo dos direitos e da saúde sexual e reprodutiva.

Por ocasião do Dia Internacional da Mulher, o Brasil se recusou a endossar uma Declaração conjunta de sessenta países, apresentada no Conselho de Direitos Humanos da ONU. Esta atitude é coerente com o fato de que, desde 2020, o Brasil integra uma coligação de países ultraconservadores, cujo propósito, expresso no Consenso de Genebra, é impedir que suas cidadãs tenham acesso ao aborto seguro, em qualquer circunstância. O atual governo pretende apagar direitos adquiridos pelas mulheres e colocar o Brasil na liderança de um reduzido grupo de países que proíbem interromper a gravidez seja por estupro, risco de morte da mãe ou anencefalia do feto, como afirmou recentemente a Ministra Damares em reunião da ONU.

Essas nações, que agridem os parâmetros mais elementares da saúde e dignidade humana das mulheres, representam apenas 5% dos países do mundo. Para lá caminhamos, em ritmo acelerado, sem alarde.

Seguimos o exemplo de Honduras, cujo parlamento aprovou uma cláusula pétrea para barrar o direito a um aborto seguro e anular por completo a livre escolha das mulheres para decidir sobre seus corpos e suas vidas, e preservar sua dignidade. Não apenas é proibido interromper uma gravidez em caso de estupro, incesto, malformação do feto ou risco de morte da mulher, mas tal interdição só poderá ser anulada no futuro com maioria de ¾ do Parlamento. Honduras registra a segunda maior taxa de gravidez adolescente na América Latina (uma em cada três), em grande medida causada pela violência sexual que sofrem as meninas vítimas de estupros e incestos.

É segredo de polichinelo que o estupro e o incesto estão por trás dos dados alarmantes de gravidez precoce na América Latina. Não por acaso, na Argentina, a lei que legaliza o aborto até 14 semanas, aprovada em dezembro de 2020, prevê que menores de 13 anos possam interromper uma gravidez involuntária acompanhadas de um responsável, enquanto adolescentes na faixa etária 13–16 anos só precisarão de autorização em caso de risco à sua saúde. A lei foi aprovada por deputados e senadores tanto pertencentes à maioria do governo, quanto da oposição conservadora.

No Brasil, em 2018, foram declarados 66 mil estupros, sendo que 53,8% das vítimas tinham até 13 anos. O número oficial de estupros segue em alta ― notadamente nestes meses de pandemia e confinamento forçado, quando explode. Essa calamidade traz recordação recente da barbárie entre nós, quando uma menina de 10 anos, estuprada desde os seis, procura socorro frente a uma gravidez indesejada e de alto risco e encontra barreiras do executivo federal, de entidades de saúde pública de seu estado, e mesmo de setores da justiça para ter acesso ao aborto legal. Não esqueçamos a atuação de integrantes do Ministério da Família que, abusando da função pública que ocupam, tentaram impedir a aplicação da lei em concordância com o desejo da menina e de sua avó.

O atual governo usurpa o sentido do que é ser conservador para justificar, perpetrar e perpetuar a violência do estupro e impedir avanços nos permissivos legais para a interrupção voluntária da gravidez, coerentes com a dignidade e a saúde das mulheres.

No plano nacional, em meio a uma crise sanitária sem precedentes, que redefine prioridades em função da emergência, o Ministério da Saúde, na sua sanha desconexa, editou portarias para criar barreiras e constrangimentos ao acesso a serviços de saúde reprodutiva e interrupção legal da gravidez, atendendo a demandas de entidades antiaborto. Em paralelo, a bancada evangélica e a Frente Parlamentar Mista Contra o Aborto e em Defesa da Vida, com o beneplácito do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), se movimentam para levar à votação medidas mais restritivas e punitivas de realização de abortamento, atentando contra a dignidade humana das mulheres, como a Bolsa-Estupro (PL 5345/2020).

A dimensão legal e segura de um direito é, assim, contestada, abrindo espaço para criminalizá-lo mais facilmente. O resultado esperado é conhecido: tal como na Nicarágua e Honduras, ao buscar interromper uma gravidez indesejada, mulheres acabarão encerradas no sistema prisional por anos, ao lado de muitas outras, que, em caso de aborto espontâneo, conhecerão a mesma sorte. Em matéria de abortamento, não há prova de inocência. E, sem paralelo, as estatísticas de mortalidade materna crescerão exponencialmente, afetando sobremaneira as mulheres mais pobres e negras.

Cabe perguntar: o que nos levou a um quadro de ameaça iminente para mulheres, adolescentes e meninas brasileiras? Um conjunto de fatores contribui para esta situação: a apatia da sociedade, a atuação de um Congresso Nacional dominado por bancadas que desrespeitam princípios democráticos de pluralismo e se guiam por conveniências eleitoreiras, cálculos de oportunidade, interpretações religiosas que deveriam limitar-se a escolhas individuais, um judiciário patriarcal, lento e dividido.

Estes são os atores institucionais que, há décadas, delimitam e dão as cartas no debate sobre o direito ao abortamento no Brasil. Correndo por fora, em campo minado, ouvem-se as vozes de feministas tentando inserir este debate no âmbito do direito à saúde, defesa da vida das mulheres e sua autonomia reprodutiva. E ouvem-se vozes, poucas, de profissionais de saúde, que apesar dos petardos que recebem quotidianamente, provêm o aborto seguro nos casos previstos em lei.

Não haverá avanços na sociedade brasileira enquanto a interrupção voluntária da gravidez não for pautada como um tema republicano, democrático e transversal, de interesse de toda a sociedade. Porque o aborto não é e nunca foi uma pauta da esquerda, nem foi tampouco bandeira da maioria dos partidos desse campo. Sua criminalização tampouco é uma pauta da direita. Ser neoliberal e conservador não é incompatível com reconhecer o direito de uma mulher interromper a gestação em determinadas circunstâncias.

Da mesma maneira, é compatível defender valores progressistas, mas excluir do seu escopo, por conveniência, o direito ao aborto, em nome de agendas e articulações políticas vistas como prioritárias. Políticos de esquerda e de direita preferem, em nome de velhas práticas políticas negacionistas no que tange o direito das mulheres, não “mexer” com este tema agora. Um agora que se renova a cada ciclo eleitoral. Assim tem sido no Brasil.

Timidez e silêncio por conveniência política de parlamentares de esquerda, direita, centro ou lateral e de ocupantes do poder executivo e judiciário que, mesmo reconhecendo que o acesso ao aborto seguro é uma questão de saúde pública, de autonomia e justiça reprodutiva, recuam diante da estridência dos que se articulam para tornar crime o que é direito, em uma bem-sucedida estratégia de calar a boca de todos em nome de alguns, invocando dogmas de fé em espaços públicos seculares, demonizando as mulheres e a quem ousar levantar a voz e afirmar a legitimidade deste debate.

Estas forças políticas têm sido exitosas em colocar o aborto no rol dos temas malditos onde não há espaço para uma narrativa baseada em princípios de laicidade, ciência, saúde, direitos humanos, pluralismo, democracia. Onde o aniquilamento moral do outro substitui a argumentação, o diálogo, a discussão política.

Até quando o debate sobre o direito ao abortamento vai continuar comprimido nas vozes de feministas quando esta não é uma pauta exclusiva do feminismo, e sim uma questão que diz respeito a toda a sociedade brasileira pois sua criminalização ameaça mulheres adultas, assim como adolescentes e meninas cidadãs deste país? Uma pauta que afeta as famílias, pois a morte materna causada pelo aborto inseguro deixa incontáveis órfãos cujas mães, principalmente mulheres negras e pobres, foram vítimas de procedimentos letais.

A ciência está do lado das mulheres. A criação da pílula anticoncepcional e seu uso massificado a partir da década de 1960 mudou por completo suas trajetórias de vida, redefinindo seu universo existencial, profissional, afetivo, seus vínculos familiares, resgatando uma sexualidade que era aprisionada e expropriada. Da mesma maneira, hoje, a ciência nos permite abortar apenas tomando um comprimido, em casa, após indicação médica. Não há intervenção cirúrgica, a incidência de riscos foi praticamente eliminada e os custos para a saúde pública e para as famílias foram igualmente anulados. A retórica contra o aborto, onde prevalece, se escora exclusivamente na negação do direito à livre determinação das mulheres, um pressuposto inaceitável no século XXI.

A conjuntura deflagrada pela pandemia da covid-19 é marcada no Brasil por imensos retrocessos no campo dos direitos fundamentais da cidadania. E os direitos das mulheres não escapam a essa investida de forças conservadoras e obtusas que se servem do luto, do sofrimento e da desmobilização da sociedade sob ameaça, para aniquilar quatro décadas de conquistas no campo dos direitos reprodutivos.

Como chegamos a esta situação de temor, hipocrisia e desamparo neste debate? Por que não assentar as bases de uma narrativa sobre o direito ao aborto de forma democrática, entendendo que serão respeitadas todas as mulheres que, em nome de suas crenças e valores individuais jamais fariam um aborto, justamente, porque, num estado laico e numa sociedade diversa e plural, a liberdade de escolha individual, o respeito aos princípios do bem comum e da integridade de cada um, não se pautam pela dominação?

Ainda é tempo. Tempo de criar uma frente ampla em defesa dos direitos reprodutivos nos quais se insere o aborto legal, seguro e gratuito. Em nome da vida das mulheres.