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À decisão de endereçar-se e a outras indecisões — em torno de Isto não é um documentário, de Marcos Siscar 1

Coleciono epígrafes para o texto que agora escrevo:

A câmera esconde o assassino.
A câmera é seu assassino.
A câmera sou eu.
Olhe para mim.

(Marcos Siscar)

Ou:

Tive vontade de voltar à casa
e, por isso, retomei o filme.

(João Moreira Salles apud Marcos Siscar)

Não sei.

Aquilo que passeia não se dirige a você.
A você especialmente.
Não saiu de casa para falar com você.
Não diz aos ouvidos
o que você gostaria de ouvir.

(Marcos Siscar)

Talvez:

Percebo ainda que sou eu que sou vivida,
sou eu que sou grafada,
sou eu também que escuto
em surdina
o velho discurso que me grafa.

(Ana Cristina Cesar apud Marcos Siscar)

Talvez esta:

Ninguém nunca me ofereceu algo assim.
Quase um documentário.
Nem mesmo um documentário.

(Marcos Siscar)

Ou essa:

É que ele não era apenas meu personagem,
eu não era apenas um documentarista.

(João Moreira Salles apud Marcos Siscar)

Não sei ainda.

Já não sabemos se sutil ou canastrão.
Se carrega no corpo a personagem.
Ou a memória do próprio nome.

(Marcos Siscar)

Não sei.

Vejam como faço.

(Marcos Siscar)

Notei que não posso me decidir por nenhuma delas em particular. Tento ser razoável. Talvez eu deva assumir o protagonismo desta escrita. Então é como se eu escutasse uma voz impessoal, que poderia ser a voz vinda de um manual de retórica. Poderia também ser a voz do meu professor de redação do ensino médio. Como num filme (uma voz em off). Poderia ser a voz do próprio Marcos Siscar, para quem eu decidi escrever este texto. Mas não. A voz é mesmo sem timbre definido, nenhuma precisão que me faça desejar situá-la, e o que ela diz é o seguinte: que eu não devo utilizar, num texto sobre o livro do Marcos Siscar, as epígrafes que o Marcos Siscar utilizou no livro sobre o qual pretendo falar. Nesse caso eu deveria eliminar os trechos do João Moreira Salles e o da Ana Cristina Cesar. Mas não estou certa disso. Gosto muito desses trechos. Tento ser razoável mais uma vez. Agora já penso diferente, sem deixar de pensar o que pensei há poucas linhas. Talvez fosse preciso dizer que agora penso a mais. Algo se acumula neste movimento incessante em que as palavras tocam a percepção. Como num filme (mesmo que seja mudo). Agora eu penso o seguinte: eu penso que os trechos do João Moreira Salles e o trecho da Ana Cristina Cesar que o Marcos Siscar escolheu como epígrafes para as diferentes partes do seu livro são essenciais. Como é essencial a cor em cada coisa vista. Como num filme (mesmo que seja em preto e branco). E que seria péssimo se eu optasse por eliminá-las. Afinal, há um diálogo evidente entre as epígrafes do João Moreira Salles e da Ana Cristina Cesar que o Marcos Siscar selecionou para as diferentes partes do seu livro e as epígrafes do Marcos Siscar que eu selecionei para escrever este texto sobre o livro do Marcos Siscar. Penso simultaneamente nas duas coisas e penso ainda que um texto que não se pretende muito extenso, não fica bem com tantas epígrafes assim. Mas por que não? (Por que o texto não se pretende muito extenso? Ou por que um texto que não se pretende muito extenso não fica bem com tantas epígrafes assim?) Não posso de fato me decidir. Nem tenho todas as respostas. Sequer fiz todas as perguntas. Não me agrada a ideia de mantê-las todas. Digo, as epígrafes. Nem de decidir por uma(s) e não pelas outras. Não tenho vontade de colocá-las no “corpo do texto”, como se diz daquilo que não é nem epígrafe nem epílogo. Como se o texto possuísse mãos. Como num filme (“As coisas exigem das mãos uma linguagem. […] O filme é o corpo o erro o destino da mão”). Tampouco eu ficaria satisfeita em eliminá-las todas. Seria um verdadeiro horror. Como num filme (mesmo que propositadamente interrompido: “O fim do filme é metonímia de outro filme”). Mas me parece que ainda é cedo para mencionar o fim, sugerir o fim, induzir ao fim.

Caso eu me decidisse por manter mais de uma, ou até mesmo todas, eu não saberia como ordená-las, as epígrafes. Que espécie de prioridade poderia hierarquizá-las no tempo/espaço do fluxo gráfico da leitura? O Marcos Siscar divide seu livro em quatro partes. Umas vêm antes das outras e outras acabam por vir depois, e assim por diante. Mas nem tanto assim, pois são apenas quatro partes. Há densidade.

“A câmera esconde o assassino. A câmera é seu assassino. A câmera sou eu. Olhe para mim”. Eu gosto muito das histórias de assassinato. Tem sempre um amor envolvido na trama, ou um desamor, e já não podemos decidir se é de amor ou de desamor de que se trata. Tenho a impressão de que sou sempre eu a assassina de todos os filmes de (des)amor. Mas eu nunca sou a protagonista, sou sempre a espectadora de um filme como esse.

É um recorte bastante arbitrário. Digo, a indecidibilidade em relação a esse trecho para epígrafe. Digo, esse trecho é arbitrário. A indecidibilidade também. Como num filme (mesmo que se trate de um roteiro clássico). As epígrafes são sempre arbitrárias? Eu, quando leio a epígrafe que alguém escolheu para um texto, tenho a sensação de que a epígrafe é necessária. Brutalmente necessária. Mas essa, que seria uma epígrafe potencial para o texto que estou escrevendo, vem de um contexto específico. Toda a epígrafe é retirada de seu contexto específico e recolocada em outro contexto? Digo, o contexto outro em que ela é recolocada é tão outro assim? Há rupturas ou continuidades? Não sei. Alguém diz: depende do caso. Alguém diz: as duas coisas. Nesse caso, essa, que é uma epígrafe potencial, foi retirada de um poema chamado “Nada além de nós” (grafado assim, em negrito, no topo da página, seguido por um bloco de texto que não utiliza vírgula, só ponto, um bloco de texto que não versifica conforme a quebra de linhas. Ainda assim é um poema?). Esse poema é o 16º ou o 17º poema da segunda parte do livro que se chama Isto não é um documentário. A segunda parte do livro se chama “Cinema”, vem depois da primeira parte, que se chama “Jardim das simplicidades”, e vem antes da terceira e da quarta partes, que se chamam, respectivamente “Endereços” e “Traduções impertinentes”. Todas as partes possuem um título autoexplicativo. Mas será que algum título pode ser realmente autoexplicativo? Eu, por exemplo, me chamo Ana. Esse, por assim dizer, é o meu título. A coisa não para por aí, há nuances: Ana Cristina Joaquim. A coisa se complica. O que será que esse título explica sobre mim? Mas dirão: esse é o seu nome, não é o seu título. Se este fosse um texto sobre o meu nome (ou sobre o meu título), é muito provável que eu usasse a seguinte epígrafe: “Já não sabemos se sutil ou canastrão. Se carrega no corpo a personagem. Ou a memória do próprio nome”. Mas este não é um texto sobre o meu nome ou sobre o meu título. O que eu tenho a ver com isso? O que meu nome ou meu título tem a ver com este texto que agora escrevo? O que ele tem a ver com essa epígrafe, pela qual não pude, enfim, me decidir? “Aquilo que passeia não se dirige a você. A você especialmente. Não saiu de casa para falar com você. Não diz aos ouvidos o que você gostaria de ouvir”. Mas este não é um texto sobre o meu nome ou sobre o meu título. E mesmo assim eu cogitei usar essa epígrafe neste texto que agora escrevo.

Baseado em fatos reais

Não sou narrador. Ou pouco. Você não vê minha face. Nem mesmo estou oculto por um travelling de paisagem por um objeto por um animal de estimação pelos afazeres da personagem. Não sou a voz off que explica o visível. Nem aquela antecipando o que será esclarecido. Tampouco. Aqui não há narrado. Não há visível. Mas talvez me entenda se eu disser que é baseado em fatos reais. Pois é. Senão veja. Não apenas baseado nos fatos. Colado. Mesclado. Embebido em sangue e esperma. Em promiscuidade cuidadosa em atrito beligerante com os fatos. Não é um documentário. O filme sou esse. Imperfeito. Inacabado. Ou ao contrário mais que acabado. Documentado. Publicado. Devassado. Para mim é tarde demais. Não tive roteiro. Quis a imagem e o movimento. Disposto a expor as manchas. A sentir os ritmos as sobreposições os encontros. Quis proximidade. O arrepio convergiu com as razões do percurso. Aí entrou você. Tarde demais para cuidar da minha imagem.

Digo, esta epígrafe: “Já não sabemos se sutil ou canastrão. Se carrega no corpo a personagem. Ou a memória do próprio nome”. Por razões diferentes. Seriam dois contextos completamente diferentes: um seria com um propósito tal, o outro não. E vice-versa. O outro seria com um propósito diferente. Pois toda epígrafe tem sempre um propósito. Que é dado pelo contexto. E todo contexto é diferente. Nada nunca se repete, disse alguém: “Le cinephile est celui qui sait que ce qu’il regarde est en train de disparaître”.

Essa epígrafe é utilizada no livro do Marcos Siscar, mas não como epígrafe. Essa epígrafe é utilizada no texto do Marcos Siscar como um verso. Digo, esta epígrafe (e retomo o ponto de onde parei): “A câmera esconde o assassino. A câmera é seu assassino. A câmera sou eu. Olhe para mim.” Por não ser usada como epígrafe, essa epígrafe não vem assim entre aspas, mas vem num bloco de texto todo alinhado sem vírgula ou outro tipo de pontuação que não seja o ponto final (que, entretanto, não se encarrega de dar um fim ao poema na maior parte dos casos, a não ser quando o poema de fato acaba). A segunda parte que se chama “Cinema”, onde podemos ler o poema “Nada além de nós”, é precedida por uma epígrafe que diz o seguinte: “Le cinephile est celui qui sait que ce qu’il regarde est en train de disparaître.” (Serge Daney) Essa epígrafe é de fato utilizada como epígrafe. Todavia, no livro do Marcos Siscar, ela não vem entre aspas, e sim acompanhada por uma colagem muito bonita. Eu não conheço o contexto original de sua situação. Digo, da situação dessa epígrafe escrita pelo Serge Daney. Eu nunca li o Serge Daney. Mas é mesmo possível conhecer a origem de qualquer coisa que seja? Exatamente como num filme (mesmo que o cinema tenha tido sua origem com a invenção do cinetoscópio).

A segunda parte do livro se chama “Cinema”. Eu vou então explicar esse título autoexplicativo. Não. É melhor que o próprio Marcos Siscar explique (afinal, foi ele que escolheu esse título, e foi ele que compôs os poemas que não possuem versos visíveis mas sim audíveis e imagináveis, e foi ele, sobretudo, que escolheu a epígrafe que inicia essa segunda parte do livro Isto não é um documentário. A epígrafe que, embora não esteja entre aspas, diz o seguinte: “Le cinephile est celui qui sait que ce qu’il regarde est en train de disparaître”. (Serge Daney). É assim:

Filme é o que está diante dos olhos. Poderia olhar para essa tela a vida toda. Como para páginas de livros. Não é o filme que está dentro da vida. A vida é a tela na qual o filme é transparência viva, em movimento. O que vivo é o que vejo. E o que vejo, vivo. Quero conhecer os meandros da visão. Os dispositivos de um filme são minha linguagem. A linguagem que invento para acompanhar o que se agita ao meu redor. No meio de uma cena anódina, encontro o mundo inteiro. Poderia olhar para essa tela a vida toda. Vivê-la como filme. Escrever o que vejo, ou deixar que me grave, me grafe, me escreva. Por isso mesmo, Cinema é um projeto, por definição, inacabado. O exercício era livre. Por algumas semanas, vi filmes e escrevi textos. Nem sempre um texto para cada filme, nem sempre textos sobre filmes, mas geralmente às voltas com filmes. A maioria, recentes. Alguns premiados em festivais. Com esse método, relativamente arbitrário, poderia continuar para sempre. Quando me ocorreu essa ideia, parei. Quis continuar desaparecendo pessoalmente. Foi o que fiz. Saio daquele filme e entro neste.

Nossos filmes geralmente acabam assim

Nossos filmes geralmente acabam assim. Tensos mas grávidos de possibilidades. Cheios de espanto. Descendo até o chão. No meio do capim. Com a cara na matéria. Apenas um raio de sol. Nossos filmes geralmente começam assim. Grávidos de possibilidades mas tensos. Emanando de objetos anônimos e sem história. Até que uma porta se abra. E durante muitos dias carregamos uma pedra no estômago e a poeira da estrada. Até que o toque de uma dama nos acenda novamente queimando no talo. Não sei como explicar tudo é tão doloroso e tão delicioso. O que mais desejamos e repudiamos com a força da convicção com a força da paixão. O que nos acontece é o começo e é o fim. É a história toda. Sem ela o que somos? E o que seria dela se não?

O Marcos Siscar escolheu os títulos dos seus próprios poemas. Dos poemas que tiveram origem a partir dos filmes que ele assistiu. Mas é mesmo possível saber a origem de qualquer coisa? Por isso mesmo, Cinema é um projeto, por definição, inacabado. Mas isso me deixa bastante confusa. Porque, afinal, foi o Marcos Siscar que escolheu os títulos dos poemas que ele mesmo compôs. Os títulos dos filmes que ele assistiu (e que deram origem aos poemas que ele escreveu) não foram usados como títulos autoexplicativos. Os títulos dos filmes que ele assistiu (que deram origem aos poemas que ele escreveu) aparecem no final da segunda parte do livro Isto não é um documentário, intitulada “Cinema”. São o epílogo, vêm em itálico. Mas o Marcos Siscar não chama de epílogo. O Marcos Siscar chama de Créditos. Eu chamo de Poema. O epílogo é o que vem depois da epígrafe. O epílogo vem também depois do “corpo do texto”. Exatamente como num filme: “As coisas exigem das mãos uma linguagem. […] O filme é o corpo o erro o destino da mão”. O epílogo vem depois de tudo, mas não é o fim, pois ainda há duas partes: “Endereços” e “Traduções impertinentes”. O livro só chega ao fim quando ele de fato acaba, bem depois do epílogo. Mas não é hora ainda de mencionar o fim, sugerir o fim, induzir ao fim. Nesse epílogo que vem depois de tudo o que já veio e antecede a outra metade do livro, por assim dizer, lemos títulos de filmes em vários idiomas. É uma lista, o epílogo. Nesse epílogo, em que são listados os títulos dos filmes que o Marcos Siscar viu e que não correspondem aos títulos dos poemas que o Marcos Siscar escreveu, a ordem de aparecimento dos filmes é alfabética. Ordena os títulos no idioma original. Mas onde é que vamos parar com isso? Uma completa loucura, uma insanidade escandalosa. A ordem alfabética seduz o leitor em torno de uma ideia de revelação. Por que será…? Eu sempre tenho essa impressão de que quando colocamos as coisas em ordem, algo se revela. Como num filme (mesmo que não se trate de uma narrativa linear). A ordem alfabética, por exemplo, diz algumas coisas sobre o que deve vir antes e o que deve vir depois. É necessariamente assim. Ou será que é arbitrário? Digo, o fato de que o “A” vem antes do “B” se rege por qual espécie de necessidade? A ordem alfabética seduz o leitor em torno de uma ideia de revelação. Mas essa sedução é uma promessa que fica por se realizar. Como num filme (mesmo que tenha um final feliz). Mas não acho que seja o caso, ainda, de mencionar o fim, sugerir o fim, induzir ao fim. Acho que agora é o caso de falar sobre o epílogo. Que o Marcos Siscar não chama de epílogo, ele chama de Créditos (assim grafado, em negrito, no topo da página, exatamente como os títulos dos poemas). Uma completa loucura, uma insanidade escandalosa. Trata-se de uma decisão. O Marcos Siscar decidiu, nos epílogos, escandalizar o leitor. Porque os títulos dos filmes que ele lista em ordem alfabética não correspondem à ordem dos títulos dos poemas que são o corpo do texto, por assim dizer, como se diz de um filme (“O filme é o corpo o erro o destino da mão”). Por sua vez, os títulos dos poemas que o Marcos Siscar escreveu não correspondem ao títulos dos filmes que o Marcos Siscar viu. Tampouco os poemas estão ordenados alfabeticamente. Acontece que eu não assisti a todos os filmes a que o Marcos Siscar assistiu para escrever os poemas que ele escreveu. Acontece que eu não escrevi os poemas que o Marcos Siscar escreveu depois de assistir aos filmes a que o Marcos Siscar assistiu (mas eu não). Por outro lado, é verdade que eu li todos os poemas que o Marcos Siscar escreveu a partir dos filmes a que ele assistiu. Eu assisti apenas a alguns dos filmes que o Marcos Siscar assistiu para escrever os poemas que ele escreveu. Em ordem alfabética, segue a lista dos filmes a que eu assisti: Captain fantastic, Elle, Farenheit 451, Paterson, Pierrot le fou e Vénus à la fourrure. Mas esse texto não é sobre os filmes a que eu assisti e sim sobre os filmes — digo — poemas, que o Marcos Siscar escreveu a partir dos filmes a que o Marcos Siscar assistiu. Isso importa? Digo, importa que eu não tenha assistido a todos os filmes que compõem o último poema que o Marcos Siscar escreveu (e que ele intitula Créditos)? Se eu tivesse, ao contrário, assistido a todos os filmes a que o Marcos Siscar assistiu para escrever os poemas que o Marcos Siscar escreveu, talvez este texto que estou escrevendo agora fosse um outro texto. Talvez. Não sei. Mas o livro do Marcos Siscar ainda seria o mesmo livro.

Será? Seria para mim o mesmo livro? Mas, afinal de contas, o que eu tenho a ver com isso? O que eu tenho a ver com o livro que o Marcos Siscar escreveu? Esse texto não deveria ser sobre mim. Sobre o meu nome ou sobre o meu título. Exatamente como num filme (mesmo que omita a apresentação). “Aquilo que passeia não se dirige a você. A você especialmente. Não saiu de casa para falar com você. Não diz aos ouvidos o que você gostaria de ouvir”. Não diz? Talvez eu tenha algo a ver com o livro que o Marcos Siscar escreveu. Não sei. “Ninguém nunca me ofereceu algo assim. Quase um documentário. Nem mesmo um documentário”. Nem mesmo um documentário me ofereceu algo assim. Isso não é nem mesmo um documentário, não é de fato um documentário. Isso é um livro. Isso é algo que o Marcos Siscar me ofereceu. Mas isso não se dirige a mim. A mim especialmente. Não saiu de casa para falar comigo. Não me diz aos ouvidos o que eu gostaria de ouvir. Isso é algo que nem mesmo um documentário me ofereceu. “Tive vontade de voltar à casa e, por isso, retomei o filme”. Foi por isso que retomei o filme. Digo, o livro. Retomei o livro porque tive vontade de voltar à casa. Por isso retomei o filme.

Making of

Um fotopoema e uma caixa preta. Quando eu fechar os olhos tudo desaparecerá? Imagem parada. Dispositivos. Roteiros. Voz over. Notações de cena. Travellings. Cena número tal. Detalhe tal. A gota escorre na lanterna do carro. Uma gota que escorre é coisa de cinema. Alguém espera. Metonímia tom tensão. Cenas numeradas. Horário de filmagem. Descrição do cenário. Cenas internas e externas. Diálogos. Indicação para atores. Entonação e atitude corporal. Começa como um sonho. Um rumor de avião no meio da tarde. Radicalidade dos meios. Écfrase e hipotipose. Ler e ser lido. Modalidade particular de tradução. O cinema é minha prosa. Meu passe livre. Durante a discussão a vítima de 67 anos argumentou que “a única literatura verdadeira é a prosa”. Revoltado o amante de poesia o esfaqueou até a morte. O cinema é minha poesia. Minha paixão da linguagem. Ninguém nunca me ofereceu algo assim. Quase um documentário. Nem mesmo um documentário.

Depois de pensar sobre mim (os títulos, os poemas, o epílogo — que o Marcos Siscar chama de Créditos e eu chamo de Poema), eu quero voltar a pensar nas epígrafes. Me sinto mais tranquila quando falo das epígrafes. Eu gosto bastante das epígrafes. Não dessas em particular. Mas eu também gosto muito dessas epígrafes em particular. Das que o Marcos Siscar escolheu para compor o seu livro e das que eu não consegui escolher para compor este meu texto. Gosto de todas elas, sem exceção. E de outras mais, que não caberiam neste espaço, pois trata-se de um texto que não se pretende muito extenso, sem qualquer razão particular. Não tenho nada a dizer sobre as epígrafes que o Marcos Siscar escolheu para as partes do seu livro. Nem mesmo sobre a epígrafe que ele escolheu para epigrafar todas as partes do seu livro e que funciona como a epígrafe de todas as outras epígrafes e que é uma epígrafe da Ana Cristina Cesar. Coincidentemente, eu também estive prestes a escolher essa epígrafe para epigrafar este texto que escrevo agora. No entanto, não pude me decidir sobre qual epígrafe utilizar. Ou sobre quais epígrafes utilizar. Não pude sequer me decidir sobre este fato elementar: se seria apenas uma epígrafe ou se seria mais de uma epígrafe (nesse caso seriam duas? três? todas?). Eu poderia ter me decidido por não usar nenhuma epígrafe também, que mal há? Há a epígrafe das epígrafes, a epígrafe que o Marcos Siscar usou como epígrafe de todas as outras epígrafes (“Percebo ainda que sou eu que sou vivida, sou eu que sou grafada, sou eu também que escuto em surdina o velho discurso que me grafa.”). Sobre esta epígrafe, junto com as demais epígrafes que o Marcos Siscar escolheu para as diversas partes do seu livro (que são, precisamente, quatro) eu não tenho nada a dizer. Foi o Marcos Siscar que escolheu essas epígrafes, que são, ao todo, cinco, num livro que se divide em quatro partes. Por que será que o Marcos Siscar escolheu essas epígrafes? Eu não tenho todas as respostas, sequer fiz todas as perguntas. O livro sim, faz muitas perguntas às respostas todas que há. Mas o Marcos Siscar… ele saiu daquele filme, digo, daquele livro, ele entrou neste filme agora. “Onde se entra, é ali por onde se sai”.

Por vezes acho difícil continuar este texto. Eu escrevo um texto sobre o livro do Marcos Siscar. O livro se chama Isto não é um documentário. É dividido em quatro partes e possui cinco epígrafes. Não escrevo um texto sobre os poemas que ele escreveu no livro. Embora eu pudesse escrever um texto sobre os poemas que o Marcos Siscar escreveu nesse livro. Não escrevo um texto sobre as epígrafes que ele escolheu para o livro. Não pude me decidir por qual ou quais epígrafes utilizar no texto que ora escrevo. E se eu me decidisse por alguma(s) da(s) epígrafes? Um gesto peremptório e pronto. A decisão teria sido tomada. Esta ou estas epígrafes, mas não aquela ou aquelas outras. Nesse caso, meu texto seria um outro texto. Mas o livro do Marcos ainda seria o mesmo livro. Não me decido por fim e meu texto acaba por ser este mesmo texto. “Escrever o que vejo, ou deixar que me grave, me grafe, me escreva”.

Isto não é um documentário

o modo como vivi me confundiu com o que acontecia
viver era a transformação implacável de eu em nós

desde o início essa distância dentro de nós
um por não saber em que resultava
outro por não entender o que sucedia
um não era apenas personagem tampouco o outro documentarista

a memória fiel dos começos e o sabido atrativo dos fins
não firmaram quem era o mordomo de quem
de quem era a dívida ou a quem se servia

no chiaroscuro dos pronomes, estampado no meio da tela
vê-se agora um corte uma cicatriz
ou inversamente
um rasgo para a plateia

Por vezes, acho mesmo difícil continuar este texto. Se fosse possível precisar um contexto qualquer, talvez as coisas se tornassem mais fáceis. Talvez eu me sentisse capaz de me decidir por alguma das epígrafes. “É que ele não era apenas meu personagem, eu não era apenas um documentarista”. O que leio no livro que o Marcos Siscar escreveu se oferece para mim como nem mesmo um documentário jamais se ofereceu, “sou eu também que escuto em surdina o velho discurso que me grafa”. Eu não assisti a todos os filmes a partir dos quais o Marcos Siscar escreveu seus filmes — digo, seus poemas — que estão na segunda parte do seu livro Isto não é um documentário, a que ele decidiu dar o título de “Cinema”. Mas todos os filmes que vi e todos os livros que li estão neste texto que agora escrevo. Mas como? Mesmo que eu não tenha feito uma lista em ordem alfabética com os títulos, eles estão aqui. Mas onde? Mesmo que eu não me lembre de todos os filmes que vi e de todos os livros que li. Mas como? Seria preciso um contexto, qualquer que fosse. Por exemplo, uma coisa abstrata. A admiração. A partilha. A amizade. A vida. O filme. O livro. Uma coisa verdadeiramente abstrata, como a ideia de vida, a ideia de filme ou a ideia de livro. Ideias. Ideias que me pudessem servir como um contexto para que as epígrafes se acomodassem. Mas eu poderia também me decidir por uma coisa concreta. Poderia, não poderia? Eu não me decidi por nenhum desses contextos, tendo, ao mesmo tempo, me decidido por cada um deles. Talvez involuntariamente. Uma decisão involuntária é algo que se pode conceber? Eu não tenho todas as respostas. “Tive vontade de voltar à casa e, por isso, retomei o filme”. É por isso que escrevo. Digo, escrevo, pois tive vontade de voltar à casa e, por isso, retomei o livro. A casa é onde passeiam os livros e os filmes que admiro. “Aquilo que passeia não se dirige a você”. A você especialmente. Por exemplo, a casa é onde passeiam os filmes do Marcos Siscar. Digo, os livros. Uma coisa bem concreta. Um contexto. A casa é onde estou só. “A solidão é um dos casos da convivência”. Uma partilha. Eu assisti a alguns dos filmes a que o Marcos Siscar assistiu para escrever os poemas que ele escreveu. Uma partilha. Eu também assisti a outros filmes a que o Marcos Siscar assistiu e que não resultaram em poemas escritos pelo Marcos Siscar. Ao menos, não que eu tenha lido. Eu escrevi e li e-mails, eu falei e escutei sobre alguns dos filmes a que o Marcos Siscar e eu assistimos, sobre alguns filmes que ele assistiu e eu também. Mas que não estão no epílogo do Marcos Siscar (a que ele chama Créditos e eu chamo Poema). Uma amizade. “É que ele não era apenas meu personagem, eu não era apenas um documentarista”.

É preciso haver uma decisão que seja. Como num filme (mesmo que a câmera esteja voltada para o espectador). Um coisa concreta ou abstrata, um endereço ou um endereçar-se: a uma pessoa concreta ou a uma ideia abstrata.


EPÍLOGO: Vejam como faço.


PS.: Por isso mesmo, Cinema é um projeto, por definição, inacabado.


PS. 2: Onde se entra, é ali por onde se sai.