Violência política de gênero

Isola, Christiana Moraes.
É dezembro e, como em todo ano eleitoral, neste mês ocorre a diplomação das parlamentares eleitas. Vale recordar que, neste ciclo democrático, a primeira incisão da violência política de gênero aconteceu nesta circunstância, no dia 16 de dezembro de 1998.
Era fim de tarde em Maceió, Alagoas, quando a deputada federal recém-eleita pelo PSDB, Ceci Cunha, organizava sua festa de diplomação. Na varanda de casa, junto ao marido, o cunhado e a sogra, Ceci festejava a conquista do mandato, quando o pistoleiro Chapéu de Couro assassinou a família a tiros. O crime bárbaro não ficou impune. Em pouco tempo, os investigadores descobriram o mandante: Talvane Albuquerque, o primeiro suplente da bancada do PSDB no estado. O motivo torpe que levou Talvane a matar era seu desejo de assumir a vaga de Ceci. Os demais assassinatos aconteceram para que não restassem testemunhas.
A brutalidade do crime impeliu a Câmara dos Deputados a definir o destino político de Talvane, antes da investigação ser concluída, ainda em 7 de abril de 1999. Na pauta estava sua cassação graças às relações do parlamentar com o matador — e ao fato disso infringir o código de ética da Câmara. O acusado não apareceu para fazer a própria defesa, mas houve quem o fizesse. O então deputado Jair Bolsonaro subiu ao púlpito para discursar em favor do colega.
Em sua fala, Bolsonaro relativizou o fato de Talvane ter admitido o contato com o pistoleiro Chapéu de Couro, para “contratar seguranças”, antes do crime (ponto central da denúncia que provou sua ligação com a chacina). “Quero saber aqui quem nunca teve contato com um marginal”, justificou Bolsonaro, antes de reforçar sua benevolência a favor de seu colega de parlamento: “Por isso, como o processo na Justiça sobre a investigação da morte de Ceci Cunha ainda está em andamento, com a possível inocentação (sic.) do deputado, todos que votarem pela cassação se sentirão culpados”, disse. Foi voto vencido. Talvane acabou cassado e condenado a mais de um século de prisão.
Mas Bolsonaro não desistiu de sua cruzada. Meses depois, em uma entrevista para a TV, o então deputado levantou suspeitas sobre Ceci Cunha, ao sugerir que a parlamentar teria participado de um esquema de venda de partido ao então candidato à reeleição para o governo de Alagoas, Manoel Gomes de Barros, do qual Ceci desistiu de ser vice. Para Bolsonaro, não bastava Ceci ter sido morta, ainda era preciso matar sua reputação.
À época, não se falava em violência política de gênero — embora o uso da violência para limitar ou inibir a ocupação de espaço pelas mulheres seja estratégia milenarmente conhecida. O debate e o termo são do século XXI e emergem concomitantes ao avanço das mulheres nos espaços da política. Segundo documento produzido pelo National Democratic Institute for International Affair, em 2015, “um número crescente de relatórios em todo o mundo — de ativistas, políticas, jornalistas e acadêmicas — indicam que, à medida que as mulheres avançam para reivindicar seu direito de participar da política, elas são atingidas por atos que abrangem abuso psicológico e agressão física ou sexual. Essa reação está ocorrendo por várias razões — talvez de fato porque as mulheres tenham avançado — e descreve o fenômeno da violência política de gênero”, diz o NDI.
A violência política de gênero é a resposta do establishment às mulheres que pretendem alargar o sentido da experiência democrática ao ocupar cadeiras que historicamente pertencem aos homens brancos e proprietários. Se existir algo como a “nova política”, certamente ela não virá da onda conservadora que inundou o Brasil em 2018, mas das minorias políticas, historicamente marginalizadas, que conquistaram espaço nas assembleias municipais no pleito de 2020. Virá das mulheres em toda a sua pluralidade e das pessoas negras e periféricas, não por uma questão identitária, mas por estes grupos representarem agendas e expectativas antes excluídas do debate — e colocarem temas centrais no centro, como o racismo. Estas agendas quando pautadas tendem a provocar mudanças. Inibir o florescimento da nova política é a função da violência política de gênero. Razão pela qual ela só cresce, no Brasil e no mundo.
Por aqui, a violência política de gênero se estabeleceu como estratégia de guerra contra mulheres na política, sobretudo a partir do ciclo que levou Dilma Roussef a ser impichada, em 2016. A escalada coincide com o avanço do bolsonarismo. Não à toa. Bolsonaro sempre foi, e é, um dos seus próceres. Mas a reação feminista não demorou a chegar, e emergiu do movimento de mulheres para se tornar uma agenda transversal, capaz de alinhar direita e esquerda.
Em 2017 criei e editei, com Manoela Miklos e Ana Carolina Evangelista, o especial sobre violência política de gênero publicado no blog Agora é que são elas, hospedado na Folha de S. Paulo. No ano seguinte, o tema definitivamente entra para o debate público após a execução bárbara de Marielle Franco. Em 2019, na segunda edição do festival Agora, realizamos oito mesas sobre violência política de gênero, com a participação de feministas e políticas. O termo passou a ser usado por parte da imprensa e das redes. No final deste mesmo ano, a comissão da mulher, da Câmara dos deputados, lançou uma campanha de sensibilização sobre o assunto. E quando, em 2020, a deputada federal Talíria Petrone expôs as ameaças de morte que sofreu, a agenda tornou-se ainda mais urgente. Contudo, é da direita que surge um projeto de tipificação da violência política de gênero, pelas mãos da deputada Rosângela Gomes (Republicanos). A votação do PL 349/15 ocorreu em dezembro, 22 anos depois do assassinato de Ceci Cunha e foi uma vitória necessária em um contexto de avanço na reivindicação do direito das mulheres de participar da política.