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Poesia intransitiva (João Cabral de Melo Neto)

Fotoformas, Geraldo de Barros.

Quero rever as ideias de João Cabral de Melo Neto em sua palestra de 1954 sobre a poesia moderna. Como sabemos, em Baudelaire, a vida é que era moderna para o pintor; mas o objetivo de Cabral agora é esclarecer “a função moderna da poesia”, com o qual não é a poesia que é moderna, mas sua função. Em outras palavras, a modernidade, para João Cabral, surge definida, logo no título da alocução, como uma função. A questão filia-se ao debate sobre a técnica, no imediato após-guerra, a partir do qual fica claro que os instrumentos críticos nada mais são do que meros desenvolvimentos de próteses de sensibilidade, memória e expressão que se projetam para além do humano. A conclusão é que é tão difícil pensar a técnica quanto pensar a vida, como atestam pensadores da segunda metade do século XX, como Foucault, Deleuze ou Agamben.

Sabemos, a partir de Leroi-Gourhan, que, desde a Renascença, assistimos à autonomização do instrumento com relação à mão do homem. João Cabral associa esse fenômeno com a vocação de Joan Miró de assassinar a pintura, isto é, abolir a supremacia da causa instrumental, primeiro passo no processo de rebaixar a pintura a mera tecnologia. Ao autonomizar-se da causa final, que vincula um instrumento ao corpo que o utiliza, a arte torna-se instrumento para um fim imanente, ou seja, uma função nela mesma autônoma. A emergência da poesia como função significa o abandono dela como uso, como prática, sem qualquer intercorrência com o sujeito. Os corpos que deixaram para atrás seu uso (político ou poético), em nome de uma função moderna, são functa corpora, corpos defuntos, “iguais em tudo e na sina: / a de abrandar estas pedras / suando-se muito em cima, / a de tentar despertar / terra sempre mais extinta, / a de querer arrancar/ algum roçado da cinza”. Enquanto o antigo uso evocava um ethos e uma forma-de-vida, a função moderna de um dispositivo põe entre parênteses a implicação do sujeito nesse ato. A leitura hegeliana depositara na consciência a separação entre uso e função; os pós-nietzscheanos e pós-heideggerianos tornam a pensar essa cisão biopolítica fundamental, a partir de uma filosofia que resgate o local originário da separação entre natureza e cultura. Em suma, o desafio, para estes pensadores da biopolítica, seria inoperar a inoperância, recuar arqueologicamente ao instante primordial, antropogenético, para analisar a técnica, a função, na sua relação poética (e política) com o corpo de que ela emana. Há uma consequência desta situação geral que, a meu ver, destaca-se dentre as demais no raciocínio de João Cabral:

Escrever deixou de ser para tal poeta atividade transitiva de dizer determinadas coisas a determinadas classes de pessoas; escrever é agora atividade intransitiva, é, para esse poeta, conhecer-se, examinar-se, dar-se ao espetáculo; é dizer uma coisa a quem puder entendê-la ou interessar-se por ela. O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória.

Vejamos a primeira questão: “escrever é agora atividade intransitiva”. Cabral aborda a questão da comunicação, que é assunto levantado por Antonio Candido e continua problemático na tradição brasileira, como apontado por Marcos Siscar, mas tem, sem dúvida, uma trajetória própria. Sem nos remontarmos à condenação da “reportagem universal” de Mallarmé, lembremos que Sartre (certamente, nos antípodas de Faulkner, quem ouviu, ou melhor, deveria ter ouvido a palestra de Cabral) já diferenciara écriture de littérature em O que é a literatura? (1947). Um ano depois, um jovem crítico sartreano que se ocupara de Queneau e Blanchot, Alexandre Astruc, estampa La naissance d´une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo, sorte de manifesto da Nouvelle Vague. Roland Barthes retoma a questão em O grau zero da escritura (1953) e a seguir em seu ensaio “Littérature objective” (mais tarde incluído em Crítica e verdade), mas estampado inicialmente no número 10 da Critique, em julho-agosto de 1954, pouco antes, portanto, do congresso de São Paulo, em que João cabral apresenta a sua tese. Barthes só desenvolveria o tópico da intransitividade escriturária, em “Écrire, verbe intransitif”, muito depois, em 1966, no colóquio estruturalista de Johns Hopkins, “The Language of Criticism and the Sciences of Man”, organizado por René Girard, Richard Macksey e Eugenio Donato, em Baltimore, onde sua fala foi muito apreciada por Lacan e por um jovem convidado de Donato, Silviano Santiago. Nasce ali o rótulo pós-estruturalista, dado pelos norte-americanos à French Theory, e as ideias ali debatidas consolidam o trabalho de alguns críticos de Johns Hopkins, como J. Hillis Miller ou Paul de Man que, poucos anos depois, migrariam a Yale, e de outros, como Sylvère Lotringer, Judith Butler ou Gayatri Spivak, que se seguiram.

Em sua intervenção no colóquio da Johns Hopkins, de natureza prospectiva e não conclusiva, Roland Barthes começa por admitir a separação entre Literatura e Retórica, disciplina arrasada quando o racionalismo se transformou em positivismo, no fim do século XIX. A articulação entre literatura e linguagem permaneceu então restrita à obra de uns poucos pioneiros, como Mallarmé, que inauguram o caminho logo percorrido por escritores como Proust e Joyce, fazendo de suas obras uma busca do Livro total; por outro lado, a própria Linguística, depois de Roman Jakobson, desenvolveu-se no sentido de incluir no seu escopo a poética, ou seja, os efeitos ligados à mensagem e não à sua referência. Barthes denomina essa nova união entre a literatura e a linguística de semiocrítica, uma vez que implica a escritura como sistema de sinais e o estudo das relações entre o escritor (scripteur, não écrivain) e a linguagem, com um evidente retorno às verdades, mesmo provisórias, da antropologia linguística. A semiocrítica não persegue o arcaísmo da psique, via pela qual o escritor retornaria à origem da linguagem, mas, ao contrário, afirma que a linguagem é a origem para ele. A língua, portanto, não é instrumento utilitário ou decorativo do pensamento e o homem não precede à linguagem. Mais ainda: a cultura, em todos os seus aspectos, é uma linguagem. Não vou me deter na questão da temporalidade, abordada por Barthes na conferência, mas na da pessoa.

Toda língua organiza as pessoas em dois amplos pares de opostos: uma correlação de pessoalidade que opõe a pessoa (eu ou tu) à não-pessoa (ele), o signo da ausência; e, dentro deste primeiro par de opostos, uma correlação de subjetividade que opõe duas pessoas, o eu e o não-eu (o tu). Decorrem desse esquema algumas questões. Em primeiro lugar, a polaridade das pessoas, embora seja uma condição fundamental da língua, é peculiar e enigmática, pois não envolve nem igualdade, nem simetria: eu está sempre numa posição de transcendência em relação a tu, uma vez que eu é interior ao enunciado, e tu lhe é exterior; contudo, eu e tu são reversíveis. A segunda questão é a de que o eu linguístico pode e deve ser definido de modo estritamente apsicológico: eu é apenas a pessoa que enuncia esta ocorrência de discurso contendo a ocorrência linguística eu. A terceira questão é que o ele, ou não-pessoa, nunca reflete a ocorrência de discurso; ele situa-se fora dela. Essas premissas serão decisivas, não só para os desenvolvimentos de Foucault, mas para a biopolítica italiana, em particular, as análises de Roberto Esposito.

Isto posto, Barthes afirma que o esforço de certos escritores contemporâneos, ao tentarem distinguir, no nível da estória, a pessoa psicológica e o autor do texto, mostra que o eu do discurso não pode mais ser um lugar em que uma pessoa previamente depositada seja inocentemente restaurada. Em outras palavras, o eu de quem escreve eu não é o mesmo eu lido pelo tu. Há aí uma evidente dissimetria da linguagem, que leva Barthes, finalmente, a se colocar quando foi que o verbo escrever, especificamente, começou a ser usado como intransitivo, deixando o escritor de ser aquele que escreve algo, para ser aquele que simplesmente escreve. Esta passagem do verbo escrever de transitivo para aparentemente intransitivo é certamente sinal de uma importante mudança de mentalidade. O verbo escrever parece ter-se tornado intransitivo no momento em que seu objeto – o texto – adquiriu uma importância toda especial. Portanto, e para além das aparências, não é no aspecto de intransitividade, argumenta Barthes, que é preciso buscar a definição do verbo escrever contemporâneo. Talvez uma outra noção linguística seja a saída ao impasse: a noção de diatese, ou voz (ativa, passiva, média). A diatese designa o modo pelo qual a ação (procès) afeta o sujeito do verbo. “Seguindo o exemplo clássico, apresentado por Meillet e Benveniste, o verbo sacrificar (ritualmente) é ativo se o sacerdote sacrifica a vítima por mim, e está na voz média se, tomando a faca das mãos do sacerdote, eu mesmo executo o sacrifício”. Apoiado em Benveniste, portanto, Barthes está roçando a questão do homo sacer, que muito mais tarde Agamben levantaria como indício da intransitividade contemporânea. Alguém está incluído na forma de uma exclusão. Barthes conclui então que a voz média (nem ativa, nem passiva) não exclui a transitividade. Assim definida, ela corresponde exatamente à situação do verbo escrever: hoje, escrever é fazer-se centro da ação da fala, é ativar a escritura, afetando-se a si mesmo: é deixar o escritor no escrito, não como sujeito psicológico, mas como agente da ação.

A questão não era ignorada pelo leitor João Cabral em 1954. Pensemos que Nathalie Sarraute editara Tropismes em 1939 e Robbe-Grillet publica Les Gommes em 1953 e, um ano depois, Passage de Milan. Mais ainda, afirma Barthes que a distância entre o escritor e a língua diminui assintoticamente no verbo escrever de voz média, uma vez que uma escrita subjetiva, como a romântica, é o que é ativa, pois nela o agente não é interior, mas anterior ao processo de escrever. Aqui, aquele que escreve não escreve para si, mas, como se fosse um procurador, para alguém que é exterior e antecessor. No verbo escrever atual, de voz média, o sujeito é contemporâneo do texto, sendo criado e afetado por ele, tal como o narrador em Proust, que só existe ao escrever. Em suma, o campo do escritor não é outro senão o da escritura, não enquanto “forma “ pura, concebida por uma estética da arte, mas, de modo muito mais radical, enquanto único espaço daquele que escreve.

Em outras palavras, Barthes, retomando a lição de Nietzsche, está transformando a tensão ativo-passivo, eu-tu, num devir, que nunca é imitar, nem fazer como outrem, nem se conformar a um modelo. Não há um zero do qual partir, nem um infinito ao qual se deva chegar. Conforme algo se transforma, aquilo em que ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Não sendo fenômeno de imitação, nem de assimilação, mas de “duas águas”, para retomar o título da antologia poética de Cabral, ou seja, de dupla captura, a poesia é uma evolução não paralela, de interrelacionamento recíproco entre dois domínios. Deleuze derivaria dessa ideia outras consequências. Um devir não é uma generalidade, porque não há devir em geral, mas devir é uma realidade porque, longe de se assemelhar ao sonho ou ao imaginário, o devir constitui o real, uma vez que marca a união de dois termos heterogêneos que se “desterritorializam” mutuamente. Não se abandona o velho para, em função de imitação ou identificação, se devir outra: altera-se uma outra forma de viver e de sentir. Emanuele Coccia explora esse universo em Metamorfoses.

No debate que se seguiu à apresentação de Barthes, destacam-se as colocações de Jean Hyppolite sobre le pacte de parole; a de Jean-Pierre Vernant, sobre a voz média (a voz média seria uma involução literária?) e, notadamente, a de Jacques Derrida, quem a partir da frase “je suis mort” (e lembremos que estamos em Baltimore, onde morreu Edgar Allan Poe), argumentou que quando se diz je coloca-se em jogo uma originalidade absolutamente original, porque sempre nos encontramos ausentes de nossa linguagem ou ausentes dessa suposta experiência do novo e da singularidade. Derrida, no fundo, contesta a segurança do pacte de parole de Barthes e refuta a oposição, formulada por Jean Hyppolite, por meio de quem Derrida, aliás, chegara a esse colóquio, para esse pacto funcionar de maneira oposta ao fantasma, porque ele já intui, como desenvolverá mais adiante em inúmeros textos, que no momento da escrita, mais do que saber se a ação é ou não transitiva, de per se, trata-se de elevar a decisão a partir de um fundo de indecidibilidade da própria linguagem. E essa é, sem sombras de dúvidas, uma decisão política.

Mas há uma segunda parte, na definição de João Cabral, que interessa resgatar: “O alvo desse caçador não é o animal que ele vê passar correndo. Ele atira a flecha de seu poema sem direção definida, com a obscura esperança de que uma caça qualquer aconteça achar-se na sua trajetória”. Poderíamos traduzir a ideia através de uma correlação entre poesia e prosa. A poesia está para a prosa como a dança está para a corrida. Valéry menciona-a numa palestra de 1927, Propos sur la poésie (1928), e numa conferência em Oxford, em 1939 (Poésie et Pensée abstraite), onde ao paralelo caminhar / dançar acrescenta-se, no caso de uma criança, a corrida. Retorna a questão na conferência sobre La liberté de l’esprit (1939), sempre evocando a ideia primigênia de Mallarmé quem, em Ballets, nos disse que a dançarina não dança, sugerindo, pelo prodígio de abreviaturas ou élans, com uma escrita corporal, o que exigiria parágrafos em prosa tanto dialogada, quanto descritiva, para ser expresso através da redação: “poema isento de todo o aparelho do escriba”. Mais rápido, portanto, que a marcha e mesmo que a corrida, o poema, com toda a sua contingência, é uma flecha que atinge o alvo sem premeditação definida. É anti-char, uma trincheira anti-tanques, mas equivocamente anti-Char, René Char, e também anti-chat, avessa ao blá-blá-blá. Blanchot viu a poesia de Char, em A conversa infinita, como poesia do neutro porque, a partir dessa experiência, a própria poesia passa a brilhar como um fato, mas levando em conta esse acontecimento, precisamente, o de que todo fato torna-se pergunta e mais ainda, pergunta poética.

Poesia intransitiva,
sem mira e pontaria:
sua luta com a língua acaba
dizendo que a língua diz nada.

É uma luta fantasma
vazia, contra nada;
não diz a coisa, diz vazio;
nem diz coisas, é balbucio.

—João Cabral de Melo Neto, Anti-Char, em Museu de tudo