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O dia é de Mistral enquanto as outras foram à praia

Cícero Portella.

Há um vento gerado por uma corrente elétrica dentro de um
círculo plastificado pintado de prata que faz um barulho de mosca

Essa pobre corrente de vento soprado pela tomada

emudece frente ao Mistral, que é, por sua vez, gerado por uma corrente muito antiga cuja tomada é o mar

Mediterrâneo,

uma corrente contra a qual os europeus ainda não conseguiram inventar uma fronteira ou outras formas de limite,

e ela sopra.


Ela sopra como a voz de Pasolini navegando do telefone até o fundo do meu sono.

Além do som do ventilador

E do som do Mistral

O vento forte que sopra da boca do Pasolini

Enche o quarto onde eu durmo

porque as formas como o real

a corrente mais profunda que remonta à superfície em forma de linguagem

e que é mais forte que os fascistas

Era sua especialidade. Isso segundo uma conversa que tive com uma antiga amante e uma poeta

A última vez que estive próxima da realidade era uma chamada de Zoom

(Pasolini foi para a África)


Fora isso, a linguagem também é o que falamos quando voltamos para a mesma náite

Que da última vez. Sentamos no meio da poeira enquanto homens grandes e fortes guardam a porta.

(Isso também é militarismo)

Quem viria nos atacar em nosso tranquilo e branco interlúdio?


Larry Mitchell, Tussy Marx, Cynthia Enloe, Dani Ellis e eu

(Há um certo constrangimento entre Tussy e eu. Durante a quarentena, ela me chamou para ficar na casa dela. Eu e a mãe dela nos demos muito bem. Bem até demais.)


Larry Mitchell, Tussy Marx, Cynthia Enloe, Dani Ellis e eu

Conversando sobre como escapar do salariado com Foucault. Tussy diz, escuta só, Foucault (pronuncia-se “fucáute”), tu é mais alienado

Do que a caixa do supermercado.


Ele é. Falando sobre como aprendeu, depois de muito treino, a perder tempo —

Em vez de escrever, ele sai à tarde, vê os amigos, olha o curso do vento

Se masturba excitado com o barulho do Mistral

Como se tudo isso, e voltar no dia seguinte dar palestra no colégio de França

Fosse destruir o Capital. Larry diz: para quem são feitos

universidade, família, produtividade

— Para quê aprendemos a escrever?

(Isso também é militarismo)


Cynthia diz: a moda esse ano não é mais camuflagem, a moda é esportiva

Eu: decidi que quero ficar forte, para poder combinar com os shorts adidas que comprei em promoção. Como é bom viver na Europa. Baixei um aplicativo.

(Não sei se isso é militarismo. A parte de baixar o aplicativo obviamente é.)


Tem algumas outras coisas óbvias, que saltam aos olhos como uma publicidade num feed de atualidades: acabar com o orçamento, queimar casernas, tomar decisões por comitê. Isso é fácil, quem quiser, dá pra começar amanhã, dizem que nos Estados Unidos até já estão começando. (Isso é antimilitarismo.)


Mas tem a coisa do vocabulário. Fazer esse velho português catarrento e todas as línguas inventadas por colonos

Falar do lugar onde a carne do meu punho é mais macia e como ela faz o movimento ideal contra o seu grelo exatamente quando eu empurro meus dedos é o equivalente sintático da minha mão fechada contra a cara de um caboco safado, pode ser até do Foucault

(isso talvez seja antimilitarismo)


Tanta coisa cabe na boca,


Os fascistas abandonam a pátria – não no sentido de trair, mas no sentido de ir embora mesmo.


Os fascistas partem do país

Os fascistas saem daqui

(foi o que me disse a poeta que recomendou Pasolini)


Foda-se a metáfora, eu quero incorporar o poema. Como faz? A gente sequestra ele? A gente amarra? O que a gente faz com ele? E com todos os outros? A gente trata como os nossos exes irritantes? Como os estupradores que circulam nos nossos meios? Como que a gente trata eles?

No prefácio de Barbara Ehrenreich para o livro de Klaus Theleweit sobre o Freikorps (isso, definitivamente, é militarismo), a imagem central desse poema que expulsa os fascistas do país

É um fluxo, um pântano, é alguma cena profundamente erótica na qual todo mundo se banha num tipo de líquido viscoso até que as fronteiras dos nossos corpos se tornem difíceis de discernir e mesmo os prédios e as portas das casas e tudo é intensamente erótico e viscoso

Acho que estou descrevendo o mistral

E a minha ciprina


Inimigo é aquilo no que queremos nos tornar


A imagem central desse poema é as Guerrilheiras de Monique Wittig e é um filme e o filme se passa no sertão do Ceará junto com os dinossauros do Geopark


Larry Mitchell, Tussy Marx, Cynthia Enloe, Dani Ellis e eu

Organizamos uma chamada soirée de soutien. Algumas mulheres fazem greve

(controle pelas mães dos meios de reprodução. Próxima etapa: matriarcado sem mães

Isso é antimilitarismo)

Algumas mulheres são mães — quer dizer, grevistas.

Algumas mulheres são sindicalistas

Algumas fazem soirée de soutien

(onde, finalmente, todo mundo perde o sutiã e acaba dançando de peito de fora.)

(Isso é antimilitarismo?)

Mas quando todas se encontram as sindicalistas falam mais do que as grevistas, que agradecem muito as sindicalistas e as dessutianizadas (porque tiraram seus sutiãs para dançar) estamos um pouco constrangidas,


Nessa náite — soarrê — nenhum homem grande e forte estava lá para proteger a porta

E antes da festa acabar, grevistas e sindicalistas já tinham ido embora.


Movemos nosso movimento até o bar onde um grupo de homens demora muito tempo no banheiro

Os homens querem uma carreira

As mulheres querem só mijar

Tussy Marx reclama, o homem em plena carreira reclama

Tussy quer bater no cara da carreira. Ela se irrita e grita

— você tem bem cara de estuprador

O homem da carreira fica puto. Tussy ainda quer bater no homem da carreira. Cynthia, Dani, Larry e eu queremos acalmar.

Cynthia tempera, mandando ele ir embora:

Quantas você chamou de puta

E elas engoliram em seco e deixaram pra lá?

Bota na conta de uma lição bem aprendida e vai pra casa

O homem com sua carreira insiste em tirar satisfações:

Como ousam o insultar!

Tussy, ainda assim, quer bater. Veja só, apesar de tudo, Cynthia, Dani, Larry e eu estamos tentando evitar.

Mas o tal homem, cuja carreira ainda jaz sobre a porcelana da pia,

quer satisfações.

Isso não pode, não pode insultar

Aí é que Cynthia perde a calma e diz

Meu amigo você não sabe ouvir um não, deixa a mulher que ela tá nervosa e não vai se desculpar

(Talvez não estivéssemos evitando tão bem assim.)

— ela tem razão, você é um caralho de um estuprador

Dani tenta acalmar

E eu também

Mas Tussy, e agora Cynthia também, quer bater. O cara da carreira quer que ela peça desculpas.

Dani, Larry e eu estamos com preguiça de recorrer à violência, mas todo mundo desaprendeu a pedir desculpas.

Teve uma correria, ninguém conseguiu o que queria, alguém perdeu um óculo


a história acabou duas e cinquenta e cinco da manhã.

Na casa de Tussy Marx, onde todas as náites terminam, com todo mundo enchendo o cu de ketamina,

Depois de estarmos parados meia hora no meio da rua

em frente ao bar,

com Larry Mitchell que brandia uma bandeira do arco-íris tremulante na noite e

cantava o hino dos vestes amarelas.


Dani Ellis é engenheira com os voluntários das brigadas internacionais lutando pelos curdos. Eu comecei a seguir o perfil de Dani Ellis para ter informações sobre a resistência autônoma federalista que não apenas se opõe aos autoritários etnocidários de Síria, Turquia, Iraque e Europa, mas à toda lógica do Capital e do Estado-nação — isso eu sei que é antimilitarismo.

Twitter é uma plataforma azul e plácida

Como o mediterrâneo

E que recobre com frequência um bocado de gente se afogando.

Dani Ellis navega.

Theno certeza de que ela é lésbica.

Ela retuitou uma piada muito engraçada e tão obviamente gay!

Gostaria de reproduzí-la aqui, mas agora já esqueci,

mas por favor confiem em mim.

Dizem que deixar essa isca assim no twitter é a prática mais antiga do movimento estudante: panflertagem

Panflertagem à mão armada.

(Use sua libido em prol do antimilitarismo.)


Uma mãe é igual à renda preta, a unhas manicuradas, uma mão é uma mãe! que diabo de descrição é essa.

Uma mãe é uma Medeia,

mas tipo muito louca

não do tipo estátua longilínea que lê Holderlin no mármore, mãe é o outro mediterrâneo, não esse supostamente clássico, mas o que é negro ou bem bronzeado:

eu digo que nele a gente não tem medo de se afogar

mas quem é a gente

quem tem medo de se afogar

quem pintou as unhas dessa mãe de preto

ela usa as unhas

pretas

esperando

o filho sair da prisão


Marselha, 07/08/2020