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O corpo apesar

Narcisse — exercício de me ver II, 1980, Hudinilson Jr.

Imagem: família Hudinilson Jr. e Galeria Jaqueline Martins.

O documento a ser copiado apoia sobre a superfície de vidro grosso e transparente. Seu conteúdo é focado sobre uma chapa carregada eletricamente, e as cargas reagem às zonas escritas e claras do papel apoiado. As partes claras destroem a carga positiva, relegando-a às zonas escritas. O pó de carga negativa que reveste essa chapa adere à carga positiva e depois se transfere para uma folha de papel em branco na qual se fixa por calor. Assim se faz uma cópia. Essa tecnologia foi patenteada em 19381 pelo físico norte americano Chester Carlson, que naquele momento inventava a fotocopiadora, máquina de produzir cópias. O aparelho funcionava por um arranjo entre campos magnéticos, e sua reação às zonas claras e escuras nos documentos orientava os lugares de fixação da impressão a seco sobre o papel em branco.

Dez anos mais tarde, nascia como marca a Xerox, então propriedade da empresa Haloid, responsável pelo desenvolvimento e produção dessas máquinas. A partir de 1949 entra em gestação o projeto de um dos modelos mais notáveis da história da companhia, a Xerox 914. Seu nome, 914, refere-se à sua capacidade de realizar cópias com dimensão de nove por catorze polegadas.

Esse modelo foi o responsável por confirmar de uma vez por todas o sucesso da empresa, que em 1961 passou a ser Xerox Company e a figurar em quase todos os andares de escritórios de edifícios em Manhattan, se espalhando pelos Estados Unidos e, sem demora, por países de todo o mundo. A possibilidade inaugural de utilizar papel comum para produzir cópias a seco aproximou de imediato o universo de uso desse aparelho ao do escritório, e rapidamente a máquina se tornaria um símbolo de eficiência e modernidade dentro desse meio.2 Nesse sentido, a máquina ganha um protagonismo ligado ao campo das vias, dos contratos, dos protocolos, das cópias fiéis de documentos atrelados à burocracia empresarial de uma realidade ligada não mais ao ofício na indústria, mas à prestação de serviço atrás de uma desk com ramal próprio.

O equipamento chega logo ao Brasil, durante a década de 1960, momento no qual se instalam em território nacional as primeiras multinacionais, incluindo o braço Xerox do Brasil S.A da empresa norte-americana, que coloca os primeiros equipamentos em circulação no mercado interno. Nos anos 1980 o país já tinha o terceiro mercado do mundo em potencial de comercialização das máquinas de reprodução, mas foi antes disso, na década de 1970, que alguns artistas passam a enxergar na novidade um potencial de atualização de meios importante para o circuito. A condição de apropriação da máquina burocrática para a prática artística esteve circunscrita a algumas capitais ou aos centros financeiros do país, lugares onde se concentravam as sedes de empresas e o aparato burocrático do Estado, grandes consumidores dessa tecnologia.

De forma geral, o interesse artístico se ligava ao uso da copiadora por dois eixos principais. Por um lado, as possibilidades de reprodução de imagens em alta velocidade que a máquina representava funcionavam como uma via para driblar a censura e as estratégias de repressão do Estado no cerne dos anos de acirramento do regime militar que governava o país desde 1964. Desassociar a produção de seus meios tradicionais de circulação permitia aos artistas se apropriarem de uma cadeia operacional pública, a dos Correios, para fazer rodar a maior quantidade de trabalhos possível, estabelecer diálogos entre aqueles preocupados com a manutenção da produção cultural em um momento de coação e, mais diretamente, não parar de produzir. Outro caminho ao qual a máquina servia com grande potencial investigativo foi aquele adotado por artistas empenhados em tensionar os limites da própria ideia mitológica da obra de arte ligada à tradição acadêmica, submetendo a prática a meios que permitiam lidar com a técnica de um jeito novo. A própria qualidade contemporânea do manejo com a máquina talvez tenha mobilizado uma série de trabalhos e, sem dúvidas, pelo menos nas duas décadas que seguem a chegada das xerox no Brasil, a moda pegou.3

Em 1984 essa produção foi reunida sob o mote da exposição Arte Xerox Brasil, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria do artista paulistano Hudinilson Urbano Jr.

Entre 1975 e 1977, Hudinilson cursou artes plásticas na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) em São Paulo, mas foi depois desse período, a partir de 1978, que seu interesse pelas possibilidades do xerox começou. Incentivado pela professora Maria Irene Ribeiro, ele inicia sua familiarização com a técnica junto a uma extensa produção que se acirra quando a professora Regina Silveira lhe concede acesso a uma máquina da Universidade de São Paulo. A partir desse momento, dentro da sala da reitoria, com plenas possibilidades de utilizar o equipamento sem um técnico intermediário, o artista se lança à exploração empírica do meio e, paralelamente, a uma formação técnica empenhada, fazendo cursos de capacitação promovidos pela própria Xerox que lhe forneceram conhecimento aprofundado de funcionamento, mecanismos, peças e operações intrínsecos ao aparelho.4 Esse repertório que o artista desenvolveu, permitiu que seu trabalho lidasse com o limite da máquina, e, nesse sentido, sua abordagem tensionava essa fronteira visualmente. Ao longo de sua trajetória, essa aproximação se deu por caminhos diversos, produzindo resultados também diferentes.

É de 1980 Narcisse — Exercício de me ver II, produzida por técnica xerográfica. Na imagem, vê-se cinco retângulos de tamanhos diferentes organizados em um eixo vertical. É possível reconhecer essas formas geométricas apesar da ausência de linhas na imagem, são unidades sobre um fundo. Cada unidade dessas tem uma grande presença de preto e cinza em contraste com manchas brancas, as quais formam áreas mais claras do conjunto, que revelam figuras também formadas por mero contraste. Essas figuras parecem mais claras conforme o olho navega das margens para o centro das unidades, e assim fica evidente que, na verdade, existem dois tipos de unidade que se repetem e se combinam de formas diferentes, como duplas circunscritas ao perímetro dos dois retângulos combinados, e uma vez como unidade solitária, que rompe o limite da margem superior da obra.

Conforme o olho prossegue, a qualidade abstrata dessas unidades vai dando espaço a certo grau de figuratividade, e as manchas em contraste sugerem algumas formas conhecidas. Olhar para os dedos, faz ver as unhas e insinua a mão. Não são mãos realistas, mas mãos distorcidas com rugas na pele, como se o peito delas apoiasse sobre um anteparo que se explicita ao esmagar e destacar as falanges e a pele dos dedos que pressiona as unhas. Entre as mãos há uma zona clara marcada pela presença de branco e de finas linhas e manchas pretas que se encontram e se afastam organicamente, formando partes mais concentradas e mais escuras, e partes menos densas, mais iluminadas, que se espalham em sua condição possível de liberdade restrita aos perímetros das formas geométricas, negociando sua organicidade com uma sugestão de modulação. A ressonância entre a forma, como se materializam as cores dessa zona em relação às partes das mãos, faz pensar que se trata de alguma outra parte do corpo humano sobre o anteparo esmagador, talvez o abdômen, o umbigo. O limite entre o que se pode reconhecer e aquilo que se apresenta como manchas e marcas gráficas convoca à imagem um espaço da dúvida: um corpo está ali, presente, mas pouco como representação, já que sua presença não conjura um caráter figurativo à imagem, tampouco estabelece uma noção clara de representação ou narrativa sobre ele. Ao mesmo tempo, não se trata de uma imagem plenamente abstrata que revoga os referenciais e se lança exclusivamente à materialidade e expressividade das formas, linhas e cores. A imagem final apresenta esse jogo ambíguo como potência expressiva, assume que os mesmos elementos que sugerem o corpo se transformam em marcas plásticas, materialidade, e se entrega à mudança de aspecto das partes que a compõem.

A forma como esse limiar opera dentro da imagem, revelando um corpo, isolando-o de uma apreensão plenamente narrativa, e fazendo-o por uma relação de contrastes sobre um anteparo, sem aparente traço de profundidade, é exemplar em termos da maneira como Hudinilson Jr. se apropriou das possibilidades da xerografia. Seu trabalho individual5 lidou com um repertório visual ligado ao corpo nu masculino,6 seja em seus cadernos7 de recortes de revistas e jornais, que formam um verdadeiro atlas da representação do corpo e de tudo que orbita nesse campo temático, seja nos trabalhos de xerox que, via de regra, variavam entre três caminhos diferentes. No primeiro deles, a opção era recorrer aos próprios recortes e destaques retirados de outras mídias e reformulá-los, recombinando partes, recortando e juntando pedaços, a partir do processamento via máquina fotocopiadora, que, nesses casos, servia também às colagens produzidas pelo artista durante toda a sua carreira. Outra opção era submeter à xerox fotografias reveladas de seu próprio corpo e assim organizá-las e fragmentá-las infinitamente, quase como em uma busca pela recomposição do corpo real fotografado no campo da imagem fotocopiada.

Narcisse gesto 2, 1986, Hudinilson Jr.

Imagem: família Hudinilson Jr. e Galeria Jaqueline Martins.

A terceira via de abordagem, mais radical e elucidativa das razões de retorno ao trabalho do artista, refere-se aos casos em que Hudinilson chegava perto da máquina, tirava suas roupas, se apoiava sobre ela e, em um ato carregado de erotismo e tensão sexual, literalmente, trepava com o equipamento. Foi o caso da maioria dos trabalhos xerográficos do artista a partir de 1978, com as séries de Exercícios de me ver e as Xerox Action.8 O caminho do contato direto fazia de seu corpo a matriz das imagens — pensando nos termos ligados à tradição da gravura e reafirmando a pertinência da técnica — e esse processamento lidava com o próprio corpo enquanto imagem. A máquina das cópias era fim e meio, era a própria possibilidade de repetir as práticas infinitamente, de copiar não mais para criar uma reprodução técnica e burocrática, mas para acessar todas as possibilidades de ação sobre o corpo-imagem. O artista se mune da máquina, e a máquina do artista, e essa simbiose é algo que a imagem carrega enquanto informação, repetidamente.

Assim como Narcisse — Exercício de me ver II, esse é o caso de grande parte de sua produção dos anos 1980, que convoca a temática do corpo sempre em função de seu processamento pelo programa9 da máquina, com operações de fragmentação e decomposição que deram o tom de grande parte das obras que saíram dessa terceira via. Hudinilson subverteu a autonomia da máquina ao criar um jogo de tensão entre a intenção da matriz, seu corpo, e a intenção da própria máquina, da cópia. Nisso parece residir seu interesse, nas expectativas que esse tensionamento fornece à leitura do corpo, lançadas à possibilidade de repetir tais operações infinitamente.

Um grande ponto é que a forma como o processamento acontece, escancarando os limites dessa relação plasticamente. Gesto IV, xerografia de 1986, é um políptico composto de 32 partes. Cada uma dessas partes tem dimensões iguais, medem 20,5 centímetros por 23,5 centímetros, e estão organizadas como uma trama cartesiana, com eixos perpendiculares entre si. Apesar da rigorosa recorrência à geometria na organização dos pedaços, cada um deles carrega uma informação diferente em termos de cores e manchas, e sua correlação faz pensar que são partes de uma imagem total. Em termos de disposição e formato, Narcisse — Gesto II, do mesmo ano, se aproxima diretamente da primeira, e uma comparação entre elas é esclarecedora do que se pretende aqui com tensão.

Os quadrantes de Gesto IV apresentam, em sua maioria, uma grande predominância de branco, do próprio papel, em relação às zonas de preto. O que salta aos olhos em um primeiro golpe são as manchas que se espalham sobre a superfície, o preto se contrapondo ao branco do plano. Quando se observa o todo, o preto parece se concentrar em uma linha vertical que atravessa o conjunto de cima a baixo, formando um caminho que se dissolve em direção ao perímetro, sempre por linhas e manchas também pretas que se distribuem organicamente. Nos trechos que emanam mais afluentes, formam-se duas zonas de concentração de preto transversalmente, no sentido horizontal, com um alto grau de contraste em relação ao branco. Mais do que identificar a matriz dessa imagem, vale aqui destacar o contraste, a presença quase exclusiva de branco e de preto. Não se pode dizer o mesmo sobre Narcisse — Gesto II. Nesse caso, todas as unidades que formam o todo da imagem apresentam algum tom intermediário da escala que vai do branco ao preto. Mais do que isso, quase nenhuma das partes escuras é plenamente preta, tampouco as claras são plenamente brancas, e o resultado disso é a apreensão de uma imagem total com o reconhecimento de uma profundidade, cheia de cinzas, quase como se fosse possível falar em termos de “fundo” nesse exemplo. Os cinzas intermediários, nesse caso, são a condição para que o olho de quem observa conjugue um contorno ao redor da matriz, uma mancha gradativamente mais escura, que gere a ideia de volume, de uma figura que se diferencie por profundidade do plano homogêneo do anteparo.

O flerte entre figuração e abstração também está presente nas duas imagens, e embora seja difícil afirmar categoricamente quais foram as matrizes que produziram cada uma delas, é evidente a diferença na reação da máquina a uma e a outra, e a forma como se materializa essa reação — conhecendo as entranhas do funcionamento do equipamento — é pela cor. Quando Chester Carlson inventou a máquina de cópias, previu que seu funcionamento ideal aconteceria quando um documento bidimensional, de superfície regular, com textos e informações objetivas a serem copiadas se apoiasse sobre a superfície. Depois disso, a reação da máquina se desencadearia por um caminho lógico, ótico e preciso, que produziria uma reprodução rigorosa, neutra e correta, “preto no branco”, do objeto real apoiado.

Quando Hudinilson se debruça sobre a máquina, nada disso parece possível. A fixação de pigmento pela identificação de contrastes na matriz fica submetida às condições do corpo, “documento” tridimensional, de superfície irregular, sem textos e, menos ainda, informações objetivas a serem copiadas. O artista usa a máquina de copiar para produzir imagens inéditas, mas nelas sempre está implicada a forma como se dá, caso a caso, a reação corpo-máquina e máquina-corpo.

Gesto IV tem mais branco e preto do que cinzas porque a parte do corpo utilizada como matriz da imagem tem características mais próximas às da superfície do papel sulfite para o qual a máquina foi projetada.10 Nesse caso, a matriz desencadeia uma reação mais familiar ao equipamento, que consegue articular seu programa de forma a gerar uma imagem com maior contraste. Isso faz pensar que se trata de uma superfície plana e ampla do corpo, sem muitas reentrâncias, possivelmente barriga e peitos de um homem magro. A imagem produzida é nítida, limites são identificáveis apenas nas pequenas manchas, sem formar uma apreensão de unidade de figura, e isso produz um sentido de maior passividade no confrontamento entre matriz e equipamento, em relação a Narcisse — Gesto II. Neste caso, a grande gama de cinza na imagem e a configuração de uma profundidade sugerem que aquilo que se apoia sobre a superfície da máquina é uma parte menos plana do corpo, que evidencia a pele enrugada pela pressão do peso sobre o anteparo em alguns quadrantes, pontos de apoio rígidos, ossos, algumas articulações do que parece uma mão fechada que apoia seu peito sobre o vidro. A impossibilidade do corpo enquanto matriz ideal se traduz mais claramente à medida que a reação da própria máquina revela suas condições de produção de imagem: a máquina reclama o campo do plano homogêneo ao qual a mão fechada não responde, manchando o conjunto e revelando o contorno da figura.

A tensão entre o corpo apoiado e a máquina vai se evidenciando conforme um desafia o limite do outro no transparecer da imagem final. Quanto mais incompatíveis ou distantes de uma matriz ideal à cópia, mais as partes do corpo produzem respostas diversas no trato com o equipamento, distantes do acerto passivo das cópias, lançadas à manifestação visual do erro, do curto-circuito no programa, o que produz um tipo específico de expressividade e novidade a cada recorrência do encontro entre intenções inconciliáveis, o que abre a gama de possibilidades de composição ao incalculável. Entender a forma como Hudinilson Jr. se valeu dessas possibilidades passa impreterivelmente pelo reconhecimento desse exercício como procedimento repetido. Ele passou praticamente a década de 1980 inteira se debruçando sobre a máquina e estabelecendo uma verdadeira parceria criativa com o aparelho, que permitia processar seu corpo real e conjugá-lo enquanto corpo-imagem. Essa mediação entre sujeito da obra e o real se dá, repetidamente, através da imagem.

Essa possibilidade inaugurada no campo visual faz retornar ao papel da máquina fotocopiadora, agora para desvelar seu sentido no jogo das formas de ver. É a máquina a via para o fragmento nas xerografias. Ver pelo fragmento confere à imagem uma qualidade sugestiva, fazendo-a circular no imaginário que aponta para o que está oculto e se deixa ver em parte, pela fresta da porta entreaberta ou pelo buraco da fechadura.

Narcisse gesto 4, 1986, Hudinilson Jr.

Imagem: família Hudinilson Jr. e Galeria Jaqueline Martins.

A adesão a certa insuficiência em busca de uma recomposição possível na superfície, vale-se da máquina xerox como um espelho que retarda a imagem, processa e devolve o reflexo, nesse caso, como fragmento. A relação corpo-máquina produz em si mesma também uma relação corpo-corpo, pensando no primeiro como o corpo possível no mundo, e o segundo como corpo possível na imagem. De certa maneira, o confronto com as formas de registro e representação do corpo e a possibilidade encontrada no plano da imagem, são ainda enfatizados pela forma como se apresentam essas obras. A qualidade de fragmento transborda de dentro da expressão do conteúdo da imagem para a forma de apresentá-la, mais uma vez em pedaços, em quadrantes formados pelas molduras individuais evidentes, pretas, com espessura suficiente para mantê-las continuamente no campo visual. Essa operação de organização rigorosa e geométrica dos módulos de tamanhos iguais é também um segundo momento de intervalo na elaboração sobre o corpo. Especular sobre o deslocamento de um único módulo nos exemplos apresentados abre possibilidades diversas e um diálogo provavelmente para além do que se consegue tratar aqui, mas sem dúvidas, o rompimento da lógica ortogonal, o hiato, anuncia o jogo.

O caso de Hudinilson Jr. mobiliza uma leitura que invariavelmente se depara com a repetição de uma operação que, por sua vez, coloca a posição do sujeito constantemente em questão. Na circunstância de seu trabalho xerográfico, a mediação sujeito-real pela imagem produz uma obra que sugere um ciclo de fragmentação e recomposição do corpo como tema desses exercícios repetidos. A recorrência desse objeto temático submetido a seu processamento pela máquina sugere um traço de fixação. A cada vez que Hudinilson Jr. se apoiava sobre a xerox, a imagem resultante do exercício funcionava como resposta enunciada do ímpeto que o colocava nesta posição.

Esse ímpeto repetido anuncia também uma impossibilidade de elaborar sobre seu corpo em confronto com a máquina de forma diferente, com algum esgotamento.

A postura assídua adotada por ele no fazer de seu trabalho, “[…] ampliando os detalhes do detalhe, retalhando ainda mais, para depois ampliá-los novamente, e assim por diante, até aumentar de modo descomunal o que restava de uma imagem — privilegiando os poros, a textura, os fios de cabelo e as reentrâncias do seu corpo”,11 só era possível quando amparada pela ação repetitiva e promovida em coautoria com o programa da máquina. Se do ponto de vista da imagem final, o artista se mune da máquina e a máquina do artista, do ponto de vista da subjetividade enunciada na imagem, essa simbiose aponta para um sujeito que se reconhece em sua insuficiência.

Não se trata aqui de um sujeito que existe no mundo, mas de um sujeito na imagem, no caso das xerografias ligado à presença de um corpo sobre o anteparo que produz a imagem mecanicamente. E aí mesmo reside esse reconhecimento, na impossível desassociação em relação à máquina, escancarada pela tensão dessas imagens que incorporam os limites do confronto que as produz: o contraste limitado a uma escala tonal monocromática, à fragmentação em partes, à ausência de linhas de contorno nas formas, que são geradas exclusivamente por contraste, o enquadramento do anteparo etc. E em sua incansável adesão ao jogo, se distingue no trabalho xerográfico do artista brasileiro, um tipo de sujeito que reconhece e tensiona seu próprio limite na representação e na repetição uma certa adesão a essa insuficiência, que corrobora no fato da máquina trabalhar apesar dele.