O calcanhar de Komarov
Ensaio sobre artefatualidade catastrófica
1.

Um objeto tridimensional disforme protagoniza uma cena. É um volume que poderia ser descrito de muitos modos, mas que ainda assim não me ajuda a identificá-lo. A atenção depositada sobre o objeto me faz pensar que ele carrega alguma narrativa particular; a imagem me faz lembrar de outros momentos em que ficamos perplexos frente a um objeto em alguma situação expositiva. De início, não descarto que ele possa ter vindo do espaço; um meteorito de dimensões abastadas seria um objeto digno de receber a solenidade dessa cena.
2.
Em 1967, o cosmonauta soviético Vladimir Mikailovich Komarov protagonizou o primeiro acidente que matou uma pessoa em um voo espacial. A imagem que acabo de narrar ilustra o momento fúnebre onde seus restos mortais estão sendo apresentados aos outros companheiros cosmonautas, servindo como prova de que seria inadequado fazer um funeral com o caixão aberto. Fazia parte da missão da Soyuz-2 duas naves se encontrarem em órbita para realizarem uma troca de tripulação via caminhada espacial e retornarem juntos à Terra. O evento aconteceria em comemoração aos 50 anos da revolução bolchevique e havia certa pressão de que ela ocorresse ainda naquele ano. A primeira nave seria pilotada por Komarov, e a segunda seria lançada no dia seguinte para completar a missão, com os cosmonautas Bykovskii, Eliseev e Khrunov a bordo. Tão logo o cosmonauta entrava em órbita, os problemas técnicos começaram a se apresentar. Devido à impossibilidade de orientação do módulo da nave por falhas nos painéis solares, que seguiu-se de inúmeros outros pequenos problemas, decidiu-se pelo seu retorno imediato e a suspensão da missão. O acidente que matou Komarov aconteceu efetivamente devido a um problema menor dos inúmeros superados em órbita: após a reentrada bem-sucedida, uma falha em um sensor de pressão impediu o acionamento do paraquedas e a nave se espatifou no solo a 144 km/h, matando o cosmonauta na explosão do impacto, perto da cidade de Orenburg, na URSS, às sete da manhã do dia 24 de abril de 1967. O corpo de Komarov foi consumido pela explosão da queda e de dentro dos destroços fumegantes foi recuperado um amontoado reduzido de forma irregular que imaginou-se ser parte de seu corpo carbonizado, descrito pelo tenente-general da Força Aérea Nikolai Kamanin como “um caroço preto disforme”.1 Os restos mortais de Komarov foram cremados e suas cinzas muradas nas paredes da Necrópole da Muralha do Kremlin, na Praça Vermelha. Um memorial foi erguido perto do local da queda, onde mais tarde outras partes de seu corpo foram descobertas e enterradas. Komarov foi condecorado duas vezes, com a Ordem de Lênin e com o título de Herói da União Soviética. Uma cratera no lado oculto da Lua foi batizada com seu nome. Sabemos agora que os espectadores veem algo que sabem ser um pedaço de um homem que caiu do espaço.
3.
Olho para este objeto inserido na construção cênica da imagem. A solenidade me remete a uma cena muito presente no imaginário dos ocidentais: o berço sagrado da manjedoura sendo visitado pelos três reis magos guiados pela estrela cadente. Passou-me também pela cabeça que o suporte poderia ser o berço do bebê de Rosemary,2 ao redor do qual estão reunidos seus vizinhos. Lembro então das bandejas que se ofereciam às cabeças dos monarcas decapitados e às guilhotinadas dos rebeldes; desta imagem, vêm-me à mente as mesas dos mágicos fatiadores de corpos, repletas de partes separadas do todo. Penso na relação entre a escultura e sua base, que durante muito tempo foi seu palco. Imaginei que o objeto pudesse ser aquele que está ausente na famosa fotografia de Paul Nougé, O nascimento de um objeto, ou que os homens que o cercam estão surpresos como aqueles que viram pela primeira vez um ready-made. Penso no ateliê do escultor Constantin Brancusi sendo montado com o compacto bronze Prometeu sob condições específicas de luz e sombra para receber um visitante. Penso então em outros momentos em que ficamos perplexos frente a um objeto extraordinário em alguma situação expositiva; e em como essa perplexidade se relaciona com o enfrentamento da morte quando nos vemos em um cadáver, me levando a fazer uma aproximação entre museus e funerais.
A tridimensionalidade retirada pela fotografia nos é devolvida pela situação cênica criada pela imagem: completamos um círculo de atenção em torno dele, mais de cinquenta anos depois de sua morte. E o motivo pelo qual este objeto nos faz imaginar uma situação expositiva diz sobre sua forma enquanto um excedente histórico, como um resquício reduzido de uma grande narrativa que de tempos em tempos retorna, em fragmentos.
4.
Segundo informações imprecisas que reaparecem em diversas e suspeitas fontes, nos restos mortais disformes de Komarov foi identificado uma lasca do osso de seu calcanhar. Não parece absurdo pensar que os rumores de um osso de calcanhar, mesmo incertos, contribuem para a sobrevivência dessa história. Inclusive, poderia ser aquilo o que veem os cosmonautas ao redor do caixão, na zona inacessível para onde convergem suas miradas.
Encontrar um fragmento figurativo em uma massa amorfa também foi a escolha de Honoré de Balzac para narrar o desfecho do conto “La Belle Noiseuse”,3 quando dois pintores, Poussin e Porbus, param na frente do quadro desastroso de um pretensioso amigo e descobrem, como que surgindo “de entre os escombros de uma cidade incendiada”, “a ponta de um pé nu que saía daquele caos de cores, de tons, de matizes indecisos, espécie de bruma sem forma”. A escolha descritiva de Balzac, curiosamente, é a de delegar ao amorfismo do quadro semelhança com a ruína, para que pudesse ser possível saltar dela um pedaço sobrevivente do corpo que flexionasse a história. Lembro aqui do poema “O joelho”, de Christian Morgenstern, que depois inspirou o cineasta e escritor alemão Alexander Kluge a construir o personagem narrador do filme A patriota, de 1979. O poema de Morgenstern, ex-combatente de guerra, apresenta grotescamente um joelho solitário que vaga pelo mundo, parte restante de um soldado aniquilado: “Na batalha, há muito tempo, um homem/ foi crivado por completo./ Só o joelho escapou ileso/ como se fosse um tabu./ Desde então, vagueia um joelho solitário./ É apenas um joelho, só isso./ Não é uma tenda, não é uma árvore,/ é só um joelho, só isso”.4 A relação entre o todo amorfo e a parte nítida que se torna autônoma se repete no filme de Alexander Kluge, que conta sobre uma professora de história, Gabi Teichert, que teima por narrar a história dos mortos da Alemanha do pós-guerra além de contar a dos vivos. O narrador é um joelho que apresenta o filme repetindo as palavras do poema de Morgenstern e continua adicionando outras pistas de seu motivo em continuar a existir, mesmo depois de morto, na forma de um bizarro joelho vagante:
Sou o joelho que sobrou da perna ou do corpo do cabo Wieland ou a pessoa a quem anteriormente pertenci até 29 de janeiro de 1943 quando ele caiu ao norte de Stalingrado. Eu sobrevivi. Gostaria de corrigir algumas coisas e rodar o mundo e também falar pelo cabo Wieland porque ninguém está simplesmente morto quando morre. Não podem simplesmente nos desvalorizar: os desejos, as pernas, os vários membros, costelas, a pele que congela. E se não sobrar nada, exceto eu, o joelho, então eu tenho que falar, falar, falar. 5
Penso em quão convergente para a construção da narrativa que ronda a morte de Komarov é a contingência de ter restado justo um osso de calcanhar pois acessa, através de Aquiles, herói de Tróia, o que pode haver tanto de vulnerável quanto de mítico na figura do cosmonauta, a personificação da humanidade técnica. O calcanhar de Aquiles, a única parte do corpo que fica de fora ao ser banhado no rio da imortalidade, é onde este herói falta para que possa nascer o mito. Se o calcanhar de Aquiles é a única parte que o torna mortal, o de Komarov é a única coisa que sobra do seu desaparecimento total, a parte que sobrou para falar algo que ainda não foi dito. O calcanhar é a parte humana que restou em ambos os heróis: em Aquiles, o que o torna mortal, e no cadáver de Komarov, o índice do humano que salta de dentro do todo amorfo. Se em Aquiles o calcanhar é o que falta, o que está desprotegido para que ele morra e se torne o herói Aquiles, em Komarov é o que sobra da destruição total, colocando seu heroísmo em crise.
5.

Komarov é a experimentação literal do acidente da forma. É essa morte, que transita por inúmeras questões de ordem simbólica, política e estética, costurada pela ideia de que este cadáver foi produzido por uma capacidade construtiva, que chamei de artefatualidade catastrófica. O calcanhar é um objeto que é limítrofe em relação a sua classificação como artefato: isto porque, afinal, ele foi de fato produzido. Mas esconde a sua feitura dentro de sua forma, e que por isso nos faz pensar em coisas dadas pela natureza, como um tronco ou uma pedra, ou como cogitado no início do texto, um meteorito. Podemos lembrar algo que Kazimir Malevich um dia escreveu: “os cientistas dizem que o broto de uma planta cresce com tamanha velocidade que não é comparável a nada nesse mundo. Mas nós não percebemos isso, não vemos; parece que a forma guarda a corrente dentro de si e não nos transmite”. Paul Valéry falaria acerca das conchas, algo que reconhecemos em Komarov: “Admitimos a construção desses objetos e é através disso que eles nos interessam e conservam-nos; não concebemos sua formação, e é através disso que eles nos intrigam”. A analogia entre calcanhar de Komarov e o meteorito se faz, portanto, não somente através da semelhança formal entre os dois objetos, mas porque, de maneira antagônica, eles apresentam ausência de humanidade. A ausência de humanidade se diferencia em suas naturezas constitutivas: enquanto o meteorito é o objeto construído em um só tempo pela queda, sem projeto, e carrega informações de uma ausência da humanidade, o calcanhar de Komarov é feito em dois tempos, lançamento e queda, fruto de “projeto, ato e resultado”, mas aparenta a inumanidade das coisas naturais em sua forma final. É produto da humanidade mas oculta o artifício dentro de si, escondendo a sua artificialidade na semelhança com a natureza. Ou seja, ele é possuidor não de uma inumanidade intrínseca, mas de uma inumanidade produzida pelo ser humano e traz o problema morfogenético da catástrofe técnica.
6.

Angelus Novus, 1920, Paul Klee.
A construção simbólica da ideia do cosmonauta comunista ecoa os projetos de imaginação cósmica, política e artística anteriores à própria Revolução Russa. Sua queda acontece em plena Guerra Fria, fim de um intervalo histórico que concedeu ao mundo as mais memoráveis catástrofes humanitárias, em contradição com épicas conquistas espaciais e científicas. É dentro de um arco temporal que perpassa a imaginação de novos começos, seguido de aceleração técnica e consequentes desastres que acometeram o século XX, que ele repousa. Ele de certo modo é uma forma excedente, algo que salta de uma narrativa temporal e de uma continuidade histórica. Também talvez por ser um excedente, ele se ofereça como um objeto da cultura, no sentido de ter poder, como um objeto cultural tem, de “reter o fluxo da história e abrir o tempo para novas visões alternativas”,6 como elabora Susan Buck-Morss. O conhecido Angelus Novus de Paul Klee7 que Walter Benjamin traz como alegoria em “Sobre o conceito de história”,8 texto de 1940, anuncia esse mesmo contexto histórico-político onde uma história da destruição é narrada amalgamada à história do progresso. O anjo é empurrado do Paraíso olhando perplexo para os escombros e ruínas que a história produziu, empilhados atrás de si, enquanto uma ventania — chamada progresso — o empurra para o futuro. Benjamin frequentemente associa imagens alegóricas para dar a ver sua concepção arruinada do progresso: o anjo é a imagem ao mesmo tempo profética, messiânica e revolucionária que Benjamin usará para alertar a chegada do fascismo na Europa. Komarov de uma certa maneira flerta com essa alegoria, porque ele é o Ícaro da era das catástrofes: se ele também interrompe uma continuidade é porque talvez possamos imaginá-lo — como o anjo de Paul Klee — convocando também um messianismo-revolucionário,9 como aponta Michel Löwy, mas um messianismo-revolucionário gore, um retorno do paraíso como um anjo monstruoso que cai do céu, disforme.
O imaginário do monstro ou do extraterrestre da modernidade, caracterizados frequentemente em filmes como massas informes, gosmas deglutidoras ou incorporadoras, substâncias químicas viscosas,10 deram forma ao imaginário do horror de proporções globais que começam aparecer no século das experimentações técnicas: bombas atômicas, holocausto, genocídios, acidentes nucleares, procedimentos industriais, e manipulação, sintetização e exploração de elementos químicos, bombardeios monumentais, explosões e acidentes aéreos foram novidades que, como pensado por Nelly Schnait,11 inauguram um tipo de escala de destruição que não encontrara forma de ser representada, mas passam a construir um novo repertório no imaginário da artefatualidade humana. A monstruosidade que se insinua em Komarov pode até querer se associar com o horror cósmico. Mas essa associação talvez só faça sentido quando pensada como resultado colateral dos esforços tecnológicos envolvidos no plano do progresso, acelerado no século XIX com a Revolução Industrial. A criatura de outro mundo é o oposto de Komarov: ela é o irreconhecível porque provém de um fora, e isso explica sua incognoscibilidade. Komarov é parte desse mundo, produzido por este mundo e o impressionante é ele ser deste mundo e ser mais inumano do que o extramundano.
7.
Os acidentes técnicos são uma categoria à parte dentro da história do progresso técnico. Convivemos com o acidente na mesma medida que convivemos com o veículo e com a máquina. Eles respondem proporcionalmente à força motriz da máquina e não à força motriz humana. Pensamos na etapa evolutiva técnica do resultado da exteriorização dos órgãos da tecnicidade pensadas pelo paleoantropólogo André Leroi-Gourhan em que se encontra Komarov: ele não morreu de fato no espaço, mas em decorrência dele. “A mão humana é humana em função do que dela decorre, e não por aquilo que ela é”,12 escreve Gourhan. Se nas etapas evolutivas o utensílio é a extensão da mão e a máquina é a extensão do gesto, o que decorre da mão portanto, é uma sucessão de desencadeamentos evolutivos que aceleram a tecnicidade de uma forma que não é possível prever. “A mão desencadeia o processo motor, só intervindo depois para o alimentar ou suspender sua ação. Depende do homem aumentar-lhe a potência ou distribui-la por máquinas-ferramentas que executam todos os trabalhos para os quais o seu pensamento as preparou.”13 Todos os relatos encontrados sobre Komarov falam do que sua morte representara simbolicamente para o mundo soviético, mas não falam do que realmente ele inaugurou: o cadáver do acidente espacial, que merecia ser exposto ao lado de sua nave em um hipotético museu de história espacial ou até mesmo de um museu de arte, conferindo, como diz Paul Virilio, “à dimensão formadora do acidente, o seu lugar de direito”.14 O cadáver de Komarov é produto tão específico de uma investida técnica quanto a própria máquina que o criou, e pede para ser questionado “epistemo-tecnologicamente”,15 afinal, “cada tecnologia produz, provoca, programa um acidente específico”, como bem lembraria Virilio: “A invenção do barco foi a invenção dos naufrágios”.16 Não por menos, a resposta do acidente à altura da tecnologia empregada para vencer a gravidade no voo de Komarov nos devolve ironicamente um cadáver em forma de carvão, o elemento combustível das máquinas a vapor que foi responsável pelo catastrófico salto evolutivo técnico da história da humanidade iniciado na Revolução Industrial.
8.
Estamos, com o calcanhar de Komarov, pensando a história de uma gênese de um objeto que não reconta a sua história, pois ela é uma continuidade que apaga os traços de sua continuidade. Komarov é interrompido de uma temporalidade própria para ser, subitamente, entregue à outra. A compressão ou distensão temporal de um evento impresso em um objeto está relacionado à aceleração ou retardo entrópico da matéria que o forma: o calcanhar de Komarov, além de ser um acúmulo formado por uma condensação matérica, simbólica, histórica e estética, parece ser formado por uma compressão temporal que tem como causa a aceleração de sua entropia, que por final, forma outro sistema. Outro objeto nos ajudaria a pensar nessa disjunção temporal histórica de Komarov, pensando na compressão de tempo que ele carrega: um cérebro vitrificado de uma vítima do Vesúvio, em Pompeia, recém descoberto por arqueólogos. Devido a alguma reação específica e rara, o calor vulcânico, ao contrário de destruir o tecido cerebral, operou um processo de fossilização, mais especificamente de vitrificação do tecido mole do cérebro da vítima, passando do tecido mole para o mineralizado em uma brusca transformação, relembrando o que o filósofo Manuel Delanda inicia escrevendo em seu Mil anos de historia não linear:
No mundo orgânico, por exemplo, o tecido mole reinou até 500 milhões de anos atrás. Nesse ponto, alguns dos conglomerados de matéria e energia que eram seres biológicos sofreram repentinamente uma mineralização, e assim surgiu um novo material para a construção de seres vivos: o osso.17
Nesse intercâmbio de matérias, onde seria possível ver os estratos evolutivos morfogenéticos da matéria no decorrer do tempo inscrito no corpo, encontramos um objeto que conecta mais de um mundo. “É quase como se o mundo mineral, que servia de substrato para o surgimento de seres vivos, estivesse se afirmando, confirmando que a geologia, longe de ter permanecido como um estado primitivo da evolução da Terra, coexistisse totalmente com os materiais macios e gelatinosos recentemente formados.”18 Poderíamos dizer que a explosão plástica que cria o calcanhar de Komarov o faz adquirir a forma lenta das rígidas dobras das rochas, cristais e troncos através do método instantâneo da catástrofe. Toda parte mole, viscosa, úmida e gordurosa, inerente e característica dos órgãos e tecidos celulares humanos se torna imediatamente calcinada, mineralizada, devolvida à história geológica que formou o mundo ao qual ele fez parte antes de retornar como um caroço preto disforme com um osso de calcanhar aparente. É esta aceleração que impede acompanhar sua formação que identificamos na formulação do cadáver de Komarov: ele impede o acesso ao seu meio de produção, chegando até o fim de sua transformação sistêmica sem pistas de sua trajetória, mais ou menos como formularia Marx, no capítulo VII d'O capital, a respeito do trabalho capitalista:
O gosto do pão não revela quem plantou o trigo, e o processo examinado nada nos diz sobre as condições em que ele se realiza, se sob o látego do feitor de escravos ou sob o olhar ansioso do capitalista, ou se o executa Cincinato lavrando algumas jeiras de terra ou o selvagem ao abater um animal bravio com uma pedra.19
O surgimento do osso e a consequente mineralização do corpo mole, tendo sido capaz de complexificar e diversificar os organismos, também é aquele que junto da força do músculo, é exteriorizado para o gesto da máquina, que substituiu a força muscular do trabalho mas que continua de outras maneiras ainda escravizando o indivíduo que a opera. Mas o organismo não dá saltos largos evolutivos como os utensílios e as máquinas, como alertou Leroi-Gourhan. A evolução humana presencia uma “separação cada vez mais acentuada entre o desenvolvimento das transformações do corpo, que permaneceu na escala do tempo geológico, e o desenvolvimento das transformações dos utensílios ligado ao ritmo das sucessivas gerações”20 que culminam hoje nas continuidades que apagam os traços da continuidade. A extrema similaridade formal entre o calcanhar de Komarov e o cérebro do jovem de Pompeia nos força a imaginar que essa ligação desenha um diagrama vertical que liga a cabeça aos pés. A verticalização do homo sapiens, resultado da liberação das mãos da função de sua locomoção bípede marca o início da atividade técnica do homem: o uso da mão como uma ferramenta, recipiente utilitário capaz de coletar e levar o alimento à boca, foi possível graças a conquista da postura ereta, que ao mesmo tempo em que deu liberdade para os membros superiores, significou o desenvolvimento do cérebro. A transferência do eixo horizontal para o vertical foi lembrada por Bataille no texto “O dedão do pé” como uma consequência do uso dos pés unicamente para se equilibrar na postura ereta: “a função do pé humano consiste em dar um alicerce firme à ereção de que tanto se orgulha o homem (o dedão, deixando de agarrar os ramos, é aplicado ao solo no mesmo plano dos outros dedos)”.21 O lançamento e a queda, movimentos geradores do calcanhar de Komarov, são operações que se realizam no eixo da verticalidade, que parece ter sua origem mais antiga naquilo que decorreu da liberação da mão e o uso dos pés para o equilíbrio. Bataille relacionaria a baixeza e o escárnio associado ao dedão do pé, à elevação da mente:
[…] pode-se imaginar que um dedo do pé, sempre mais ou menos danificado e humilhante, é psicologicamente análogo à queda brutal de um homem — em outras palavras, à morte. A aparência horrivelmente cadavérica e ao mesmo tempo ruidosa e orgulhosa do dedão do pé corresponde a este escárnio e dá uma expressão muito aguda à desordem do corpo humano, aquela produção da violenta discórdia dos órgãos.22
Os pés nos lembram que o ser humano está ligado à morte enquanto o cérebro, “pronto para relembrar as grandezas da história humana, como quando seu olhar ascende a um monumento que testemunha a grandeza de sua nação”23 se liberta do chão, se lança, conquista, voa, realiza, modifica, constrói, destrói, almeja o céu, que no entanto o rejeita, “interrompido no meio da luta por uma dor atroz no dedão do pé porque, embora o mais nobre dos animais, ele no entanto, tem calos nos pés”.24 O cérebro de Pompeia, índice e artefato da catástrofe natural, do indivíduo que precisa fugir da natureza porque ainda não pode dominá-la, vem ao encontro do calcanhar de Komarov, índice do efeito colateral dessa dominação depois de conquistada. Os dois acidentes, separados por milhares de anos, agem sobre o corpo mole, corpo veloz, apto a correr e se elevar, mas que dessa vez, fracassa, resultando em artefatos mineralizados, fossilizados, devolvidos à lenta história geológica subterrânea da Terra.
9.
Ainda não mencionamos a especificidade que carrega o fato deste corpo pertencer a um cosmonauta, e não a um astronauta. Os termos têm o mesmo significado: são aqueles que viajam para o espaço sideral. Mas por trás delas, um desejo de diferenciação estava implícito quando URSS e EUA disputavam as conquistas da exploração espacial. A nomenclatura americana dá preferência ao termo “astro”: o astronauta viaja em direção a um objeto concreto, onde ele pode pousar. Os soviéticos adotam o “cosmos” em referência ao espaço sideral como um todo, que abarca inclusive o vazio. A figura mítica do cosmonauta, aquele explorador implicado com as utopias sociais que alimentou o imaginário da expansão da humanidade para o cosmos parece não resistir muito tempo depois da dissolução da URSS. Hoje a imaginação da conquista espacial reaparece no imaginário coletivo — menos interessante do que poderia ser a despeito das capacidades tecnológicas atuais —, direcionada mais ao empreendendorismo cósmico do que à imaginação de um universo comum. Um exemplo bastante explícito dessa reorientação é o automóvel, dirigido por um manequim de astronauta batizado de Starman que o empresário Elon Musk enviou ao espaço como carga de teste do foguete Falcon Heavy aproveitando-o como estratégia de marketing de uma de suas marcas de carros elétricos, a Tesla. O artefato permanece em órbita sem data de retorno ou previsão de desintegração, mesmo que ainda na Terra não tenhamos visto carros elétricos substituirem a economia da gasolina e derivados do petróleo. Musk e a Space X, sua agencia espacial, é a primeira organização privada a fazer parceria com programas espaciais estatais, como a Nasa, inaugurando a iniciativa público-privada para a exploração espacial. A nova orientação parece ficar explícita ao lermos a declaração que o atual administrador da Nasa fez na ocasião do lançamento da missão conjunta: “Imaginamos um futuro, no qual a órbita baixa da Terra estará completamente privatizada, onde a Nasa será apenas um cliente entre outros”.25 Por sua vez, a mensagem que Starman, o motorista-boneco de Musk carrega no automóvel, diz: “Feito na Terra por humanos”; ele, como Komarov, também é um artefato. É um manequim que encena dirigir um carro elétrico. Promete um futuro onde a propaganda vem antes do sonho. Se o cadáver de Komarov é artefato catastrófico na queda, o de Starman parece ser seu retorno ao espaço em forma de um corpo estereotipado, narcísico, plástico, provável futuro lixo espacial, que tem algo a dizer a respeito dessa atualização. O motorista-boneco, signo afetivamente identificado com a sociedade motorizada do acidente, atualiza simbolicamente a relação da economia libidinal com o cosmos. Ele substitui a imaginação do futuro comum e a investigação política do espaço, pelo atual empreendendorismo sideral e pela capitalização do sonho. A queda de Komarov, ídolo da Guerra Fria, anuncia o fim daquele investimento criativo do tempo pré-revolucionário. Susan Buck-Morss analisa o movimento de sonho e ruína dos projetos políticos do início daquele século constatando que “a viagem interplanetária foi a forma preferida da expressão utópica social”.26 Se essa expressão utópica retorna agora na forma de catástrofe, tanto pelas ruínas que o capitalismo vêm produzindo quanto pelas que foram deixadas do que não funcionou do projeto comunista, isso não desmerece aquilo que foi imaginado e sonhado antes de ser realizado e fracassado. “Submeter-se à melancolia seria conferir ao passado um todo que nunca existiu, confundindo a perda do sonho com a perda da realização”,27 escreve a autora. O impasse do artefato catastrófico da imagem que vemos reside nesse limiar entre uma imaginação que redefine o limite dos possíveis e uma imaginação que não é capaz de antecipar quais são seus efeitos colaterais. O prometeísmo nos devolve uma hesitação que antes de ser combatida na escolha de um dos lados, deveria ser afirmada como cerne da questão humana: a retroalimentação entre imaginação e realidade, que para além de deixar “resíduos fantasmáticos” das catástrofes produzidas através dos tempos, redefiniria os limites não somente do real, mas também da própria imaginação, como diz o filósofo Ray Brassier: “a razão é alimentada pela imaginação, mas também pode refazer os limites da imaginação”.28
10.
A imaginação de um universo comum foi uma das grandes utopias do início do século XX. Mas os discursos cósmico-utópicos apareceram na União Soviética antes mesmo da revolução de 1917. A capacidade imaginativa advinda da euforia do desenvolvimento técnico e da própria iminência da Revolução toma corpo em muitos projetos artísticos, políticos e educacionais da vanguarda soviética. Aqui resgatamos, por exemplo, algumas das ideias do chamado biocosmismo, um movimento artístico-científico que acreditava que o desenvolvimento técnico e científico deveria estar comprometido com ideais políticos e sociais já conquistados pelo projeto revolucionário. Os cosmistas russos, ou biocosmistas, foram artistas, cientistas, escritores, teóricos e filósofos influenciados por Nikolai Fedorov, um bibliotecário e filósofo que prognosticou e especulou sobre um gênero humano imortal como projeto político. Fedorov escreveu a Filosofia da tarefa comum,29 que defendia que o futuro deveria estar pautado na criação de condições tecnológicas para a conquista do Universo tendo como ideia principal a imortalidade humana, a ressuscitação dos mortos, o rejuvenescimento dos vivos e a colonização do Universo como derradeira realização do projeto comunista, devendo ser alcançado através da combinação da luta revolucionária com o trabalho criativo. Fedorov tratou de pensar a humanidade como um grande corpo que não se encerraria na Terra, mas que se expandiria evolutivamente através do conhecimento técnico e científico pelo cosmos como uma matéria intercambiante e comunitária. Na leitura que Boris Groys faz de Fedorov, tomar o corpo como matéria física e cósmica e insubordiná-lo ao destino da morte natural deveria ser o último passo do comunismo, posto que aceitá-la seria uma contradição interna do materialismo marxista, já que isto suporia considerar que o corpo humano era diferente de outra matéria que pudesse ser conservada eternamente. O comunismo precisaria, para ser realmente justo, dar oportunidade aos homens que teriam lutado por sua implementação desfrutarem desta sociedade conquistada, e, portanto, somente alcançando a imortalidade a humanidade conseguiria “purificar completamente a sociedade do ‘idealismo’, substituindo a imortalidade da alma garantida por Deus por uma imortalidade do corpo garantida pelo Estado”30 através da ciência. Além do mais, a morte representava a última manifestação da propriedade privada existente a ser ultrapassada: a propriedade do tempo individual e pessoal da vida. Com a imortalidade, o tempo seria um só, coletivo. Esta biopolítica do tempo pré-revolucionário era regada de uma imaginação que fermentava junto com as descobertas da ciência, e mesmo quando se confundia com ficção, não deixava de ter resultados reais aplicáveis na vida cotidiana. O desenvolvimento da tecnologia do foguete de três estágios de Konstantin Tsiolkowski foi só uma dessas conquistas, por exemplo. A questão da imortalidade presente na imaginação científica dos soviéticos se estende culturalmente no trabalho de preservação do corpo de Lênin, quase cem anos após sua morte. Imediatamente ao seu falecimento, uma intensa mobilização começou para que o corpo fosse preservado através de técnicas baseadas nos ritos funerários dos faraós egípcios por tempo suficiente para que fosse possível buscar soluções biocósmicas para a ressurreição do líder. Na altura, Leonid Krasin, contratado para supervisionar a conservação do corpo de Lênin, havia escrito: “Estou seguro que chegará o dia que a ciência se fará onipotente, que será capaz de recriar um organismo falecido. Estou seguro que chegará o dia em que se poderá usar os elementos da vida de uma pessoa para recriar a pessoa física e ressuscitar grandes figuras históricas”.31 A já existente Comissão de Funeral passou a se chamar Comissão para a Imortalização e a criação e projeto dos sarcófagos e mausoléus foi responsabilidade dos artistas. Kazimir Malevich sugeriu que o caixão fosse em formato de cubo, em alusão ao seu quadrado preto, ícone do suprematismo, justificando: “O cubo já não é um corpo geométrico. É um novo objeto com o qual tentamos representar a eternidade, criar um novo conjunto de circunstâncias com as que podemos manter a vida eterna de Lênin, derrotando a morte”.32 Mas o quadrado preto de Malevich, fazendo sua estranha aparição no contexto hiperrealista da conservação de uma imagem eterna do cadáver de Lênin, começa já a dar os ares de uma bifurcação de intenções: o novo objeto com o qual o artista quer representar a eternidade certamente não é a figuração do corpo finito de Lênin expandido no infinito do tempo, mas a dissolução espacial do cubo suprematista na imaginação criativa. A distinção dessa expansão é sutil, mas precisa: as formas simbólicas da expansão revolucionária da arte e progressistas da política acabariam por serem fundamentalmente diferentes.
11.

Fig. 1. Alogmisme 29. Aldeia, 1913–4, Kazimir Malevich.
Há experimentos poucos conhecidos na obra de Malevich que sugerem uma conceitualidade mais aguda, e esses trabalhos de fato operam uma semiologia baseada em palavra. Kazimir Malevich deveria também ser resgatado como esse artista que propôs tais operações de linguagem e que, ao lado de René Magritte e Marcel Duchamp, viria a influenciar a arte contemporânea e sua dimensão descritiva, verbal. Em seus trabalhos da época Fevralista encontramos uma série de desenhos que chegaram somente há poucos anos ao público ocidental,33 em que o artista insere nos trabalhos legendas instrutivas, empregando uma correspondência entre a palavra e a imagem. Um exemplo é o desenho em que o artista delimita um quadrado em uma folha de papel, dentro do qual escreve a palavra “aldeia”, sintetizando agora por meio da instrução, a formação de uma imagem mental (fig. 1). Abaixo do desenho, como uma anotação, Malevich completa: “em lugar de desenhar cabanas de recantos da natureza, melhor escrever ‘aldeia’ e ela vai aparecer a cada um com os mais finos detalhes compreendendo a aldeia inteira”.34

Fig. 2. Composição com Mona Lisa (Композиция с Джокондой), 1914, Kazimir Malevich.

Fig. 3. Um homem inglês em Moscou (Англичанин в Москве), 1914, Kazimir Malevich.

Fig. 4. Quadrado negro (Черный супрематический квадрат), 1915, Kazimir Malevich.
O artista já estava nessa altura às voltas de procedimentos de escrita e elementos gráficos que dariam origem ao Suprematismo, à redução da imagem figurativa em experimentos gráficos e pictóricos que trariam uma nova energia pra. Em 1915, um pouco antes de ter participado da construção cênica da ópera futurista Vitória sobre o sol,35 de M. Matiushin, A. Kruchenykh e V. Khlebnikov, Malevich fez alguns quadros em que incluía palavras e formas geométricas eclipsando figuras, como em Composição com Mona Lisa36 e Um homem inglês em Moscou37 (fig. 2 e 3), onde incorporava a expressão “partial eclipse” junto da composição. As cortinas feitas para a ópera futurista viriam posteriormente ficar conhecidas como a gênese do Quadrado negro (fig. 4), como identifica Shatskikh;38 representavam o eclipse parcial que tapava o sol, como um elemento gráfico de superação do “velho conceito aceito de sol bonito”,39 como disse Matiushin, em referência ao teatro naturalista e simbolista que os artistas da vanguarda futurista queriam combater com a “superação” do Sol. Esses desenhos precederam em poucos dias a feitura do Quadrado negro, que nasceu como um insight para onde todas as etapas anteriores de sua pintura estavam se direcionando. O eclipse foi gradativamente aumentando em importância na consciência do artista até chegar ao eclipse total, que culminou no Quadrado negro: o cubo substituindo o círculo, com as bordas brancas vazando a coroa solar. A aparente declaração negativa do Quadrado negro, como estamos acostumados a olhar, é a transição de um mundo de figuração para um mundo de uma abstração interessada no absoluto, certamente influenciado pelo pensamento cósmico e astronômico de Malevich, que bebeu de toda fonte de inspiração cósmica da vanguarda pré-revolucionária.40
Uma imagem apropriada para ser resgatada aqui seria a gravura que Robert Fludd, filósofo místico inglês, publicou em 1617, em seu tratado cosmológico Utriusque cosmi maioris scilicet et minoris Metaphysica, physica atque technica Historia41 (Fig. 36), uma obra hermética sobre o macro e o microcosmos, fruto de seus estudos sobre ocultismo, religião, medicina e ciência. Fludd usou da legenda como recurso para a imagem na gravura que representaria o início do Universo: um quadrado preto com bordas brancas. Nas quatro bordas da gravura, Fludd colocou a inscrição et sic in infinitum: o nascimento do Universo partiu de um quadrado preto que se expandiria ao infinito, sem direção. A aldeia de Malevich reaparece séculos depois reafirmando o uso da palavra como poderoso elemento imaginativo, mas sustentando também que a grade seguiria sendo a delimitação do objeto artístico, a partir de onde o mundo se separa da representação. Mesmo que dispensando a imagem em prol de uma legenda, é ainda a partir do quadro que o texto aparece para adicionar à planaridade da pintura o início de sua expansão para o espaço. Mas esse espaço só saltaria da tela muito mais tarde quando o quadrado preto começa a sugerir uma pintura não compositiva, que cai na direção do espectador, invadido pela opacidade da (não) cor.
Se retomarmos à origem do Quadrado negro como cortina na ópera Vitória sobre o sol,42 percebemos que ele adquire um sentido mais apocalíptico do que a mera negação da figuração. A cortina que eclipsa o Sol tem como objetivo também dar as bases do novo, interromper as velhas aspirações, destruir para renovar, compilar para propagar, anunciar o espírito da expansão da humanidade para a totalidade cósmica material. Malevich entendia e percebia os ares catastróficos daquele mundo que ele ajudou a idealizar, e acreditava que a arte só acompanharia o tempo, e estaria no tempo, se aceitasse acompanhar as reviravoltas que o mundo lhe apresentava. Uma arte que existe com as mesmas leis que regem o Universo, em uma nova sociedade regida, sem Deus, pelos homens, deveria, como todas as outras coisas, ter seu tempo de desaparecimento. A hipótese de se pensar o quadrado preto como um ícone do suprematismo para a superação da arte representativa suscita certas perguntas que atestam a persistência das referências à obra até hoje como um marco artístico. A redução a um único e enigmático ícone nomeado de Black Square levou o quadrado de Malevich a ser propagado por décadas, permanecendo, poderíamos dizer, até hoje, misterioso e inesgotável. O compacto quadrado, que possui 80 centímetros por 80 centímetros, não evoca essa quantidade de perplexidades à toa, e aqui ele ganha, além do sentido de redução, o sentido da condensação. A soma de todas as formas em uma forma, relembrando Pound sobre Brancusi, aparece em Malevich como um “embrião de infinitas possibilidades”, como escreve Stoichita: “Cobre a representação, mas é uma imagem indeterminada, é a imagem das infinitas possibilidades da representação. Sabemos — porque disse Malevich — que nesta ‘terrível potência’ reside a soma de toda as imagens do Universo que esperam ser formadas.”43 O quadrado preto alude ao mesmo tempo aos começos pela sua condensação negra de infinitas possibilidades mas também aos fins que poderá vir revelar em seu apocalipse.
12.

Fig. 5. Campo ultra profundo do Hubble (Hubble Ultra-Deep Field), 2003–2012, Nasa.
Entre 2003 e 2012, o Telescópio Hubble produziu a maior e mais profunda fotografia do Universo feita com a montagem de diversas imagens tomadas ao longo do trajeto de quatrocentas voltas da órbita ao redor da Terra. O seu enquadramento é uma pequeníssima região do espaço localizado na direção da constelação de Fornax. A distância alcançada pelo telescópio Hubble no programa do Hubble Legacy foi de treze bilhões de anos-luz, ou seja, alcança imagens do Universo como ele era há treze bilhões de anos, cerca de 400–800 milhões de anos após o Big Bang (fig. 5). O recorte escolhido poderia ter sido inclusive a realização em imagem da gravura da criação do Universo de Robert Fludd: apontando o telescópio para um área totalmente vazia, literalmente para a vastidão do infinito, o Hubble permaneceu por cerca de quinze dias com seu obturador aberto até que as primeiras imagens começassem a se formar, indicando que o vazio para o qual o telescópio apontava estava saturado de galáxias de formas diversas datadas do início da formação do Universo.44 Essa imagem profundamente cadavérica contém informações dos primeiros momentos de sua formação, e revela muito do que não sabíamos sobre a densidade de seu vazio inicial. Ela possui uma resolução total de 1,5 bilhão de pixels e, fosse impressa no tamanho real, teria a medida aproximado de um campo de futebol. É possível pinçar de dentro dela um ou vários quadrados pretos de 80 centímetros por 80 centímetros em que, como legenda, poderemos escrever “aldeia”, como queria Kazimir Malevich. Se dentro da borda é a aldeia, e fora da borda é o infinito, a borda pertence à aldeia ou ao infinito? Essa questão irresolúvel só existe porque a grade insiste em aparecer como recurso para delimitação de dentro e fora. Mas é desse pixel que também surge o calcanhar de Komarov. Ele está intimamente ligado ao quadrado preto porque também tem início em seu catastrófico fim. No entanto, enquanto o primeiro irrompe de uma totalidade por uma janela bem delimitada, o segundo cai dessa totalidade: o calcanhar de Komarov é literalmente o que rasga, fulminante, a planaridade da grade do quadrado preto.
13.
A etimologia da palavra cadáver provém do Latin, cadere, cair, tombar em combate, que também tem parentesco com o adjetivo cadente, usado para designar o estado de corpos celestes que saem de suas órbitas para cair em objetos maiores, atraídos por seu campo gravitacional. Também no grego o cadáver e a queda estão associados. Komarov é literalmente cadente. Presumo que sua queda particular esteja formalmente mais próxima da cadência dos corpos celestes do que dos cadáveres. E que talvez ele seja um exemplar único a merecer o nome literal do cadáver que é. A proximidade entre estrela cadente e cadáver foi feita pelo revolucionário comunista francês Louis August Blanqui, em 1871, que nomeou os meteoritos e asteroides de “cadáveres gelados” e que daria à ele a metáfora mais rica da relação entre cosmos e política do seu tratado A eternidade pelos astros. Auguste Blanqui passou ao todo 37 anos preso por conta de suas intensas atividades políticas. Durante o período em que esteve isolado no Forte do Taureau, só lhe era possível ver as estrelas se movendo acima de sua cabeça. Então ele escreveu um tratado cosmológico dotado de analogias e referências à insurreição, imaginando uma relação entre o ciclo dos corpos celestes e os ciclos políticos. O que poderia parecer apenas uma aproximação formal entre as terminologias dos dois campos, afirma uma relação ainda mais estreita entre eles: a necessidade de uma organização das massas revolucionárias segundo a lógica organizacional entrópica do cosmos. Ele percebeu que a lei da gravidade, mesma lei que mantinha a revolução dos astros em sua harmônica alternância, também era a que ameaçava esses astros, através das quedas desordenadas dos meteoritos, e que seriam responsáveis pelos “choques ressucitadores” de mundos apagados. “Quando os astros são volatilizados por um encontrão sideral, todas as substâncias se confundem numa massa gasosa que jorra do choque. Depois se rearranjam lentamente, segundo as leis da gravidade, pelo trabalho de organização da nebulosa”.45 Os “choques ressuscitadores” são parte da organização cósmica, necessários para tirar os corpos celestes estáveis de seu destino fatal: o resfriamento e a morte térmica, a entropia final. Eles são a oportunidade para a matéria se misturar e gerar outras configurações, dado que se o Universo é feito de matéria finita e de eternidade, e que só se mantém vivo por possuir um movimento constante de alternância entre continuidade e interrupção, um estado somente de equilíbrio o levaria aniquilação e apagamento. É essa ordem regida pelas lei da gravidade e interrompida pelos eventuais efeitos desordenadores dos corpos celestes também regidos pela mesma lei que tornaria possível o Universo não “morrer de monotonia”:
Esses encontrões de cadáveres siderais que se entrechocam até a resurreição poderiam muito bem parecer um distúrbio da ordem. Mas o que aconteceria se os velhos sóis mortos, com suas enfiadas de planetas defuntos, continuassem indefinidamente sua procissão fúnebre, prolongada a cada noite por novos funerais? Todas essas fontes de luz e de vida que brilham no firmamento se extinguiriam uma após a outra, como os postes de uma rua. A noite eterna cobriria o universo.46
Os choques ressuscitadores dos meteoritos de Blanqui, que separam, misturam e modelam incessantemente os astros perecíveis do Universo eterno, cria a imagem de um cosmos que sobrevive por suas revoluções plásticas, tendo como principais responsáveis por sua neguentropia os corpos que desorganizam um sistema para o renovar e o reacender: os objetos decaídos, apagados, “planetas defuntos”, que através da gravitação — a mesma lei que rege a ordem — organizam a desordem. A hipótese de microorganismos e bactérias sendo carregados por meteoritos para implantar vida em planetas mortos é, portanto, cabível como metáfora da revolução que acende novos mundos. Essa mesma imagem daria ao conhecido verso de Fernando Pessoa, “O homem — cadáver adiado que procria”,47 o sentido oposto: não mais a morte assombrando o futuro de um corpo vivo destinado à aguardar a morte, mas a vida se propagando quando ela parece não ter como continuar. Além da catástrofe destrutível, o meteorito traz em si a possibilidade da forma nova, simultaneamente ameaçadora e renovadora.
14.
O calcanhar de Komarov parece expressar que um repertório formal da imaginação revolucionária se esgotou, que as formas visíveis dessa imaginação se dilaceraram junto com sua queda. A queda de um mundo que aspirava por uma ideia de bem estar, progresso, imaginação criativa e crescimento social comum que não perpetuou enquanto uma forma edificada, mas que, no entanto, mostra continuamente seus resquícios, suas sobras. A potente imagem de cadáveres cadentes inventada por Blanqui também é tão ou mais fortemente komaroviana que a imagem de sua falência. O retorno do cosmonauta em forma de corpo celeste poderia, mesmo através de seu mórbido reaparecimento, suscitar o reacendimento de uma imaginação de futuro perdida?