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Não judeus-judeus: a direita bolsonarista e os novos conversos

Totem, Alberto Simon.

Considero que há poucos lugares tão desafiantes para os estudos judaicos como o Brasil da segunda década do século XXI. Como exemplo, pode-se notar que ao contrário do que ocorre em outros locais, no atual contexto brasileiro, bandeiras de Israel, símbolos judaicos e narrativas sionistas não são, necessariamente, sinais que indicam a presença de judeus. Diferente disso, em eventos religiosos, manifestações políticas e ambientes virtuais conservadores, esses símbolos tremulam e se apresentam justamente em ausência completa ou quase completa de judeus.

No Brasil é possível, portanto, encontrar um Israel e um judaísmo nos quais os judeus não são tão facilmente encontrados. Assim, há uma forte gramática israe­lense-judai­ca-sio­nista que surge independente da presença de judeus. O que se pode notar é que setores da nova direita brasileira adotam essas referências, como se elas a eles pertencessem desde sempre. No atual contexto político brasileiro, pode-se afirmar que, hoje, há poucas referências mais cristãs do que o azul e branco, a bandeira de Israel, os símbolos sionistas ou mesmo as práticas religiosas judaicas.1

Nesse quadro, é correto afirmar, como dito acima, que há um desafio posto quanto aos estudos judaicos no país. Essa ambivalência estabelecida entre forte presença de judaísmo e a quase ausência dos judeus não é, entretanto, o que transforma o Brasil em um caso diferenciado no contexto dos estudos judaicos mundo afora. Podemos perceber que qualquer observação mais atenta sobre grupos evangélicos na América Central, nos Estados Unidos ou mesmo em relação às religiões cristãs da África subsaariana poderia revelar o mesmo fenômeno. Ou seja, uma desproporção entre usos de símbolos judaicos e a parca presença de judeus em tais ambientes. É, pois, facilmente notada, também lá, apropriações e processos de ressignificação de símbolos judaicos por grupos não judeus, geralmente cristãos e conservadores.2

O que diferencia o que ocorre no Brasil dos casos acima está relacionado com duas questões específicas e importantes. Em primeiro lugar, cabe notar que aqui há uma presença judaica relativamente relevante.3 Em segundo, é perceptível que grande parte dos judeus brasileiros compactua com a referida ressignificação dos símbolos judaicos, sionistas e israelenses.4

Como exemplo contrário do que acontece no país, há o caso dos Estados Unidos, onde se concentra a maior população judaica fora de Israel. Contando com mais de cinco milhões de judeus,5 o fenômeno estadunidense é completamente distinto. Se por um lado, tal qual no Brasil há comunidades judaicas politicamente ativas e numericamente relevantes, por outro, a maioria da população judaica norte-americana demonstra rechaçar usos de símbolos judaicos por setores populistas da nova direita.6

Ao contrário disso, no Brasil nota-se que parte considerável dos judeus acaba por adotar, em um interessante processo de “contramão identitária”, perspectivas judaicas de grupos de direita mais ampla, formados majoritariamente por não judeus. É possível perceber ainda que tais perspectivas estão além das práticas religiosas ou espirituais, na maior parte das vezes sendo vinculadas também a aspectos políticos e ideológicos.

Nesse contexto, defendo que testemunhamos um complexo processo de “conversão política, étnica e ideológica” , onde há um “deslocamento” daquilo que chamávamos tradicionalmente de “comunidade judaica”. Se até então eram a origem étnica e as práticas religiosas que aglutinavam indivíduos e famílias, a partir de agora parte dos judeus brasileiros estabelece novas relações de vínculos e fidelidades não mais pela origem étnica, mas desde práticas e definições políticas e ideológicas.

Minha hipótese aqui é, tal qual apontado acima, de que estamos diante de um complexo processo de “conversão e desconversão”7 tanto de judeus como de não judeus, que se deslocam para uma nova comunidade simbolicamente judaica, cristã e sionista, onde as referências deixam de ser exclusivamente étnicas e culturais e passam a enquadrar-se em perspectivas políticas e ideológicas. Nesse contexto, o Brasil demonstra ser um fenômeno singular em comparação com outros locais onde se desenvolvem fenômenos próximos, mas não semelhantes.

O judeu não judeu e o não judeu judeu: novas formas de judaicidade no Brasil

Em suas indagações sobre os limites de seu judaísmo, o autor Isaac Deutscher, intelectual progressista e militante socialista, apresenta uma questão importante para a compreensão das tensões típicas da identidade judaica na modernidade. Homem de esquerda, integrado nas lutas operárias do leste da Europa, Deutscher se pergunta por que ele, “militante anticapitalista, ateu e internacionalista” fazia questão de continuar a se identificar como judeu, apesar das aparentes contradições entre as identidades particularistas e universalistas, a judaica e a socialista, que ele carregava em sua alma. O próprio Deutscher contesta: “Sou judeu porque sinto a tragédia judaica como a minha própria tragédia; porque sinto o pulsar da história judaica; porque daria tudo que pudesse para assegurar aos judeus auto-respeito e segurança reais e não fictícios”.8

No trecho acima, Deutscher se coloca em um lugar de ambivalência identitária. Com um “pé fora”, na modernidade e no movimento operário, o autor parece decidir manter o outro “pé dentro”, ou seja, na identificação com o judaísmo e na memória de perseguição de ódio que os judeus viveram na história europeia. Deutscher, portanto, apresenta-se como um “judeu não judeu”. Ele seria aquele que olha para o horizonte sem se esquecer de suas referências mais particulares e familiares. Origem e destino parecem formar uma dialética complexa e criativa em que identidade judaica, ideologia socialista e internacionalista se apresentam como uma interessante gramática política.

O autor, assim, parece se estabelecer dentro de correntes específicas da modernidade, mantendo, entretanto, lógicas particularistas que resistem às suas perspectivas universalizadoras. A ideia do “judeu não judeu”, trazida por Deutscher resume o lugar crivado de contradições e ambivalências do judeu em relação ao encontro com não judeus, até então raros, senão inéditos. Os resultados da modernidade permitem novas relações e novos compromissos com outros grupos e com diversas correntes ideológicas.

O desafio para o judeu moderno se resume justamente nas contradições entre estar no mundo e pertencer a uma comunidade restrita e particular. Entre ser judeu, tendo vínculos de fidelidade com uma origem comum, ao mesmo tempo em que se tem compromissos com uma “comunidade de destino”, comunidade esta que estará balizada por novas formas de opressão e identidades de classe.

Os compromissos com as lutas libertárias, com o socialismo e com o futuro da humanidade não são suficientes para que Deutscher se esqueça de onde ele vem. Ele é, ao mesmo tempo, do mundo e de sua casa. Ou como o próprio autor dizia:

[Eu] Escrevia em ídiche e em ídiche me dirigi aos trabalhadores em grandes comícios — nem sempre políticos”. Ainda vejo diante de mim aquela massa de jovens e velhos, trabalhadores, artesãos e pedintes, que se reuniam a noite para escutar leituras de poesias e dramas. […] Aí algo como uma nova cultura se formava e isso se fazia através de um brusco rompimento com a consciência religiosa.

Escrevia em polonês e ídiche e sentia minha identidade se fundir com o movimento operário em geral e da Polônia em particular. Nós como marxistas tentávamos, teoricamente, negar que o movimento possuísse caráter específico. Mas ele possuía.

[…] Da classe operária da Europa oriental veio o florescimento da cultura ídiche, aquela língua vigorosa, rica, renovando-se e se enriquecendo constantemente, tornar-se-ia da noite para o dia uma língua morta. Poetas e escritores judeus se apoiaram naquele movimento operário que vimos afundar no nada, como Atlântida.

[…] No distrito Muranov, de Varsóvia, […] todos tinham suas identidades estampadas nos rostos, nos olhos, nas mãos cansadas pelo trabalho. Nós intelectuais que nos preocupávamos com sua sorte, seu desenvolvimento e educação aspirações e desejos, também tínhamos nossa identidade definida sem nunca tê-la procurado […].9

A partir da experiência de Deutscher de vida judaica na modernidade, pretendo aqui iniciar uma reflexão sobre um fenômeno atual e ainda pouco analisado, qual seja, do uso de referências judaicas na política brasileira. A meu ver, tal uso pode representar uma inversão da equação proposta por Deutscher. Ao contrário do que o autor propunha, no Brasil de hoje, em certos setores da comunidade judaica, o judaísmo parece observar um importante deslocamento em direção a outras definições que não as étnicas e culturais.

Ao se tornar uma das referências centrais para a militância do conservadorismo no Brasil, o judaísmo passa a ocupar bastante espaço na agenda dos grupos da “nova direita”. Nesse contexto, surge no país uma nova categoria que desafia o lugar dos “judeus não judeus” trazidos por Deutscher.

Ativistas de uma nova direita brasileira passam a imaginar fazer parte de uma nova “comunidade de valores”, onde o judaísmo seria um dos elementos para o seu ativismo. Note-se bem, estamos falando de um “outro judaísmo”, uma espécie de “judaísmo imaginário” (Gherman, Klein, p. 105), este não vinculado mais a supostas origens familiares ou étnicas, mas baseado, alternativamente, em valores morais e em referências ideológicas específicas. Nesse sentido, podemos dizer que há o surgimento de uma categoria “antideutcheriana”, a dos “não judeus judeus”, cujo esforço é o de produzir vínculos e identificação com o judaísmo a partir de definições exclusivamente ideológicas e políticas.

A Bíblia, as armas e o dinheiro: caminhos para o Judeu Imaginário no Brasil

Dentre as referências fundamentais para a formação desta nova comunidade judaica, ou judaico-cristã, estão três eixos formadores principais: a Bíblia (em uma leitura cristã), as armas (o valor da defesa como superior ao valor da vida), e o capitalismo (judeus tidos como representantes de uma perspectiva ultraliberal e antiestado). São esses pontos que acabam por pavimentar o caminho para a ideia de “judeu imaginário”, que tem se tornado gradativamente importante para os grupos conservadores brasileiros nos últimos anos.

Além dos marcos ideológicos propostos acima, parece não haver uma continuidade constitutiva entre o judeu imaginário e a identidade judaica anteriormente estabelecida no país. Comunidades judaicas formadas a partir de laços migratórios e construídas por uma unidade institucional no país de destino parecem ser pouco importantes nesta nova gramática identitária.

O cardápio ideológico da modernidade judaica era múltiplo e diverso, ele pressupunha, ao mesmo tempo, laços inquebráveis de origem e mantinha um sentimento perene de comunidade histórica (Avini, 1992). Nesse contexto, judeus sionistas e progressistas, judeus de direita e de esquerda, religiosos e seculares, socialistas ou revisionistas, sefaraditas ou ashkenazitas se percebiam como parte de uma coletividade em que as referências de pertencimento eram inquestionavelmente mais fortes do que os possíveis motivos de disputa e tensionamento (Gherman, 2018). Os judeus brasileiros se percebiam, assim, como um coletivo, que apesar das diversas contradições internas, mantinham os fortes vínculos de origem e pertencimento.

Mesmo com baixa incidência de antissemitismo (Sorj, 2010) e altos índices de casamentos inter-religiosos, judeus e cristãos no Brasil, até o início do século XXI, se percebiam como fazendo parte de tradições religiosas e culturais distintas (Sorj, 1997). Ao mesmo tempo em que um judeu religioso e conservador não duvidava fazer parte da mesma “comunidade imaginada” (Andernson, 2008)10 de um judeu progressista e secular.

Interessa-nos, portanto, analisar as relações estabelecidas entre grupos de judeus e cristãos brasileiros nos últimos anos. Desde a ascensão conservadora no Brasil, essa dinâmica parece ter se alterado. Ativistas conservadores cristãos e judeus passam a defender, por exemplo, que judeus progressistas não compartilham dos valores de um “judaísmo verdadeiro”. Assim, o tal “não judeu judeu” acaba por formatar uma nova identidade judaica, cujas referências são ideológicas e políticas, enquanto as ferramentas típicas para a manutenção da identidade judaica moderna (história e origem comum), passam a ser desconsideradas e superadas.

Esse novo processo de identificação fará com que Israel e o judaísmo ocupem um lugar central na política brasileira. Tal processo levará que brasileiros, tanto judeus quanto não judeus, compartilhem de uma nova “comunidade de valores”, em que não basta ter nascido judeu, ou frequentar o núcleo da institucionalidade judaica: para “ser judeu” é preciso que se incorporem os valores e as referências desta nova comunidade política. Para ser membro da comunidade, passa a ser necessário ser conservador, de direita e, a partir de algum momento, apoiar Jair Messias Bolsonaro.

O “Pogrom” da Hebraica: a palestra de Jair Messias Bolsonaro

Aqui discutiremos um importante evento ocorrido em um clube judaico da zona sul do Rio de Janeiro, a Hebraica. Localizado no bairro de Laranjeiras, trata-se de um clube decadente e que conta com poucas aparições na agenda institucional judaica. A Hebraica do Rio, neste momento, ressurge na vida judaica da cidade justamente por estar no centro de uma polêmica política. Qual seja: o convite feito ao então deputado federal Jair Messias Bolsonaro para uma palestra no clube.

A palestra no clube carioca, ocorrida em abril de 2017, um ano, portanto, antes do início da campanha eleitoral que elegeu Bolsonaro presidente, deveria ter ocorrido, meses antes, no clube homônimo, localizado na cidade de São Paulo. A Hebraica de São Paulo, diferente de sua “xará” carioca, é uma referência na vida comunitária local. Considerada um dos maiores clubes do país, conta com expressivo quadro de sócios e tem concorrida agenda de eventos e atividades. Quando foi anunciado, em fevereiro 2017, que havia intenção de trazer o deputado para uma palestra na Hebraica paulistana, houve diversos tipos de protestos contra o convite.11 Abaixo-assinados e posts, fizeram com que o presidente do clube cancelasse a palestra, que tinha sido, segundo ele afirmara então, “produto de iniciativa individual de sócios do clube”.12

Se o clube paulistano ativo e cheio negara a atividade do deputado da extrema direita, o clube carioca vazio e sem atividades o convidara. Como a Hebraica do Rio contava com pequeno número de sócios, o presidente da agremiação pôde sustentar a palestra apesar das pressões produzidas por setores da institucionalidade judaica. No dia da palestra, entretanto, produziu-se nas calçadas em frente ao clube de Laranjeiras, um “espetáculo da política”, para usar os termos de Guy Debord (2003).

Em uma noite de abril, centenas de manifestantes fora do clube, armados de bandeiras de Israel e camisas em hebraico, acuavam os convidados que chegavam para a palestra, estes também armados de bandeiras de Israel e símbolos sionistas. A violência de parte a parte assustava os passantes e mostrava, para quem quisesse ver, que havia uma ruptura radical no seio da “comunidade judaica”.13 Os gritos de fascista e traidores, vindos dos manifestantes fora do clube e dos que entravam na palestra, nessa ordem, marcaram uma das experiências mais traumáticas da vida judaica na cidade.

No dia seguinte, comunicações internas da Federação Israelita e do consulado de Israel no Rio de Janeiro davam conta de que tinha ocorrido um pogrom14 (Klein; Gherman, 2019. p. 20) na frente de um clube judaico. Em algum sentido, uma comunidade que produzira, como nos lembra Yossi Goldstein, narrativas de harmonia e unidade, tinha tido as contradições expostas em praça pública na palestra de Bolsonaro.

Se o “Pogrom da Hebraica”, sobre o qual pretendo voltar a falar mais adiante, serve aqui como ponto de inflexão, se estabelecendo como uma espécie de “mito fundacional” da ruptura no interior da institucionalidade judaica brasileira, diante do fenômeno do bolsonarismo, devemos ter clareza de que ele indica apenas uma etapa de um processo mais longo e complexo. Um processo de aproximações entre judeus, entidades judaicas e grupos da nova direita brasileira. A meu ver, essa aproximação se deu através do constante uso de símbolos judaicos, de Israel e do sionismo. Tais aproximações parecem ter se fortalecido no bojo das manifestações de 2013, as chamadas Jornadas de Junho.

Bandeiras de Israel, as novas direitas e o Brasil

Bandeiras e símbolos sionistas surgem junto a tantos outros nas manifestações de junho. Com alguma facilidade, parece ser possível notar essa presença, mas parecia haver ainda poucos elementos para entender suas motivações.

Utilizamos aqui as massivas manifestações de 2013, conhecidas como as Jornadas de Junho, como uma das referências fundacionais na consolidação da nova direita brasileira. Também é nesse momento que parece haver a consolidação de uma espécie de judaísmo profundamente conservador e aliado da nova extrema direita brasileira.

Já lidando aqui com trabalho etnográfico propriamente dito, devo dizer que o ato de caminhar por manifestações ocorridas entre 2013 a 2015 na cidade do Rio de Janeiro produzia em mim uma sensação diferente da que eu percebia nas demonstrações anteriores ocorridas na cidade. Para além das bandeiras gerais que se estabeleceram no movimento, do tipo “contra a corrupção, contra a política etc.”, podiam-se encontrar outras bandeiras e outras referências simbólicas muito específicas.

Pequenos grupos apresentavam símbolos que eram compartilhados apenas por eles próprios e pelos mais próximos. Ao lado dos mais conhecidos, como as referências a Guy Fawkes da história de Alan More,15 havia grupos com camisas de bandas neofascistas, símbolos ultraconservadores e, com uma frequência impressionante, eram encontrados símbolos israelenses, judaicos e sionistas. Pequenos e médios grupos com bandeiras de Israel, camisas do mossad16 e símbolos das Forças de Defesa de Israel eram facilmente notados em manifestações contra a corrupção e, mais tarde, contra o PT e pelo impeachment de Dilma Rousseff.

Nesses grupos provavelmente não havia judeus, mas se houvesse não eram eles que determinavam os símbolos ali usados. Por outro lado, eram esses símbolos que produziam a experiência de compartilhamento e de unidade dessas tribos. Se não havia presença judaica, havia a presença de Israel, do sionismo e, de alguma maneira, também do judaísmo.

Como que ilhas pairando sobre significantes camuflados, eu via símbolos conhecidos boiando em um mar de elementos desconhecidos. Como alguém formado na institucionalidade judaica e com fortes vínculos com grupos da esquerda sionista, eu tinha uma percepção ambivalente quando encontrava tais símbolos. Aquelas pessoas pareciam se organizar ao redor da bandeira de Israel e se estabeleciam comunidades em torno de símbolos sionistas — símbolos que eu entendia, embora esses significantes formassem outros significados.

A linguagem, a gramática, as formas de ostentar os signos políticos eram, para mim, completamente novos. Era como se uma enxurrada desaguasse na superfície trazendo símbolos quase familiares. Cores e bandeiras passavam por mim. Eu as conhecia, mas não as reconhecia ali. Aquela Israel, daquelas pessoas, era outra. Era uma espécie de “Israel imaginária”, nos termos de Anderson (2008), que produzia uma nova identidade política nas ruas brasileiras. Essa identidade se expandia também para membros da “comunidade judaica”, produzindo uma espécie de “nova comunidade” que será formada por judeus e não judeus a partir de certas premissas ideológicas, e não mais étnicas. Os conservadores (judeus ou não) estavam dentro, enquanto progressistas (judeus ou não) estavam fora desta comunidade em formação.

O judeu imaginário e as novas formas de conversão: considerações finais

Como vimos anteriormente, um convite ao pré-candidato à presidente da República, o deputado federal Jair Messias Bolsonaro, se constitui em um grande imbróglio político entre os judeus do Brasil. Logo após o convite a Bolsonaro, começam as pressões para o cancelamento.

Bolsonaro estava sendo convidado por grupos de extrema direita, ativos no interior da institucionalidade judaica. Os motivos que levam esses grupos a ingressar nessa “militância comunitária” através das redes sociais são basicamente os mesmos que fazem com que militantes de extrema direita ingressem no ativismo político na sociedade maior. Quais sejam: uma militância antissocialista radical, perspectivas conspiratórias que relacionam a esquerda e agendas progressistas a uma degeneração moral e, finalmente, a denúncia de doutrinamento ideológico por parte de educadores e professores em relação a alunos indefesos.

Uma das motivações que marcou a entrada orgânica da extrema direita judaica nos grupos de extrema direita mais geral foi justamente a presença de uma “Israel imaginária” entre esses ativistas. Como vimos acima, o vínculo com Israel é central na comunidade judaica e é compartilhado por grupos da nova extrema direita brasileira. Ambos se relacionam de forma acrítica com o atual governo de Israel, defendendo-o em toda e qualquer circunstância.

Nesse contexto, o judaísmo e Israel são instrumentalizados para interesses ideológicos e os judeus são reconhecidos e valorizados como referência de ativismo para a nova direita. Ser de direita e ser pró-Israel se estabelecia, na perspectiva conservadora, a partir de afinidades eletivas que fortaleciam não judeus e judeus de direita e isolavam judeus e não judeus que não eram de direita. A Israel imaginária surgia como uma espécie de barreira civilizatória onde esquerda, secularismo, feminismo, direitos humanos e outras agendas progressistas ficavam de um lado, enquanto o oposto a isso (direita, religião, securitismo, família etc.), ficava de outro.

Este é o ponto importante para entendermos o confronto na porta da Hebraica-Rio. O convite havia sido feito por grupos vinculados a perspectivas ideológicas específicas e o questionamento do convite era feito por gente que não compartilhava dessa mesma agenda, justamente judeus progressistas, seculares e de esquerda. Entre os judeus que discordavam do convite ao deputado, estavam membros de entidades judaicas, monitores de movimentos juvenis sionistas, membros de sinagogas liberais e representantes do judaísmo progressista.

Importante notar, nesse sentido, que havia uma indentificação comum entre os que estavam dentro do clube e os que se manifestavam fora da Hebraica: ambos reinvidicavam-se judeus e sionistas. Os de dentro eram da direita sionista, e os de fora da esquerda sionista.

Havia, por parte do grupo dos “de dentro”, a clara percepção de que os jovens que discordavam de suas prerrogativas civilizatórias e teológicas faziam parte de outro grupo, de outra comunidade, de outros valores. Apropriando-se de lógicas típicas da nova direita brasileira, os judeus de direita percebiam os judeus de esquerda como inimigos, como ameaças. Além disso, o deputado convidado a falar já dera, para eles, múltiplas demonstrações de amizade com Israel e com “os judeus”, enquanto aqueles jovens demonstravam apenas críticas e discordância.

A percepção de pertencimento estava clara: judeus de direita se sentiam mais próximos dos membros da direita brasileira não judaica do que dos judeus de esquerda na frente da Hebraica. Os judeus de esquerda eram inimigos. Os não judeus de direita eram aliados.

Proponho aqui que estamos tratando de um processo de “conversão e desconversão”, segundo a perspectiva de Gershon Sholem.17 Nas circunstâncias dadas, Bolsonaro abraçava Israel, e os jovens sionistas de esquerda repudiavam Israel. Ativistas cristãos falavam da importância de unificação de Jerusalém, enquanto os jovens sionistas de esquerda falavam na necessidade de dividir a cidade. Os militantes da extrema direita denunciavam a “conspiração esquerdista” que tentava impor “ideologia de gênero nas escolas”; enquanto os jovens de esquerda da comunidade eram membros de grupos feministas, defendiam o direito ao aborto e à diversidade sexual.

Na perspectiva da nova comunidade imaginada pela extrema direita, os militantes evangélicos e conservadores estavam dentro, os jovens judeus liberais e progressistas estavam fora.

Os primeiros haviam passado por um processo de conversão, os segundos por uma etapa de desconversão. Os primeiros eram a segurança dessa nova comunidade judaica, os segundos eram seu risco. A Israel Imaginária reorganizava identidades políticas, ideológicas e religiosas entre judeus e não judeus no Brasil. O caso da visita de Bolsonaro à Hebraica do Rio de Janeiro servia, então, como mito fundacional e rito de passagem desses novos processos.