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Nada de lua de mel

Isola, Christiana Moraes.

As duas responsabilidades mais importantes da esquerda — derrotar as forças da direita e lutar por um programa genuinamente progressista — nunca nos abandonam. Nos Estados Unidos, esse par de responsabilidades fica por vezes tensionado. No melhor dos casos, essas tensões são dialéticas. Na pior situação, parte dos que estão no campo da esquerda descarrila, para um lado ou para o outro.

Um dos mitos dos políticos mainstream e da grande mídia, nos Estados Unidos, é que o modo mais eficiente de enfrentar a direita é se mover ideologicamente em direção ao centro. Quando os progressistas internalizam esse mito em seu pensamento, ficam prontos para serem engolidos pela ameba pró-empresarial do Partido Democrata. E, ao contrário do que faz crer o mito, isso termina por ajudar, mais do que combater, o Partido Republicano, que no governo Trump tem-se cercado de características neofascistas.

O trumpismo cresceu graças ao pseudopopulismo, batendo nas teclas do nacionalismo, do racismo, da xenofobia, do nativismo, da misoginia mal-disfarçada e muito mais. Intensificaram-se, com o pseudopopulismo, os efeitos cruéis e cumulativos do neoliberalismo, no rumo de um aprofundamento da miséria, de um maior número de pessoas “no limiar da pobreza”, de maior insegurança econômica, ao lado de ataques debilitantes contra o setor público. Isenções fiscais para grandes empresas e para os mais ricos, combinadas com a privatização e com o desmonte do orçamento em todos os níveis de governo, do federal ao local, corroeram a qualidade de vida de um vasto número de pessoas, cidadãs ou não, vivendo nos Estados Unidos.

Políticas neoliberais e sinalizações sem força por parte de líderes democratas como Joe Biden e Kamala Harris pouco podem fazer para contrariar o pseudopopulismo da direita. Enfrentando permanentes crises no nível pessoal e no contexto mais amplo da economia, muitas pessoas estão justificadamente descontentes. Programas “moderados” e a retórica política tradicional dos Democratas podem ser um alívio depois da presidência lunática de Trump, mas esse alívio irá apenas nos manter onde estamos.

O antídoto para o veneno do pseudopopulismo de direita é o autêntico populismo progressista na linha em que foi — e continua a ser — proposto por Bernie Sanders e deputados federais como Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar e Rashida Tlaib. Eles derivam seu poder das organizações de base que os elegeram e dos movimentos progressistas que daí se seguiram (frequentemente “socialistas democráticos” na sua ideologia, mesmo quando não usam esses termos). Como disse a ex-senadora de Ohio Nina Turner, copresidente nacional da campanha presidencial de Sanders em 2020, “Sanders foi a fagulha; nós somos a chama”. Organizações de base tornam as coisas possíveis, com vitórias eleitorais e avanços nos executivos estaduais surgindo como manifestação de nossas capacidades crescentes.


A derrota de Donald Trump não teria sido possível sem o ativismo de base e o trabalho duro de inúmeros progressistas. No que diz respeito a temas vitais — clima, saúde pública, desigualdade de renda, militarismo, complexo prisional, poder das grandes empresas e muito mais —, é tempo agora de um engajamento na luta que deve acontecer no interior do Partido Democrata.

São vazios os argumentos de “realpolitik” recomendando à esquerda que pegue leve com o presidente democrata. Já basta o grande número de progressistas que deram a Bill Clinton e a Barack Obama o benefício da dúvida, facilitando-lhes o trabalho de servir aos grandes interesses empresariais enquanto deixavam os trabalhadores americanos ao relento.

Organizações e indivíduos progressistas (quer se considerem “ativistas” ou não) devem desde o início confrontar Biden e outros eleitos do Partido Democrata nas questões que importam. Espera-se dos detentores de um cargo que atuem em prol do interesse público. E se estão servindo Wall Street, em vez de sua comunidade local, temos de mostrar que estamos prontos, ansiosos e com poder para negar-lhes a chance de disputar uma reeleição.

A atitude inteligente seria rapidamente acompanhar a vitória de Biden com uma postura combativa com relação aos democratas ligados a grandes corporações. Líderes poderosos do partido já sinalizaram a intenção de marginalizar abertamente os progressistas. “A presidente da Câmara, Nancy Pelosi, e seus principais assessores”, noticiou o site Politico, “deram um vigoroso alerta aos democratas nesta quinta-feira [cinco de novembro]: se se inclinarem muito para a esquerda, nada mais certo do que perder a oportunidade de vitória na disputa da Georgia, que decidirá qual partido controla o Senado”.

Também presente no encontro virtual com democratas do Congresso estava o líder da bancada na Câmara, Jim Clyburn, que teria declarado que “se formos basear a campanha no Medicare For All, na reforma da polícia e na socialização da medicina, não ganharemos”.

Essas advertências eram previsíveis — e são bizarras, vindo de líderes democratas na Câmara que acabaram de ver um encolhimento dos membros de seu partido, tanto pela derrota de deputados “moderados”, quanto pelas derrotas de candidatos democratas ao Senado no Maine, Kentucky, Iowa e em outros lugares — todos também confessadamente “moderados” e amplamente reconhecidos como tais.

No centro desses conflitos, que já eclodem ou estão vindo à tona, está a luta de classes. Quando Pelosi e companhia tentam descartar uma ascensão genuinamente progressista nas forças do Congresso, alimentada pelas bases, estão “beijando a mão que lhes dá de comer” — as elites empresariais. Trata-se de um comportamento extremamente lucrativo para aqueles que se nutrem dos cofres do Comitê Nacional Democrata, dos comitês de campanha do partido no Senado e na Câmara, do PAC da maioria da Câmara, e de muitas outras organizações milionárias de campanha. Contratos de consultoria e acordos com lobbies continuam indo adiante, mesmo depois de os democratas perderem disputas que poderiam ser facilmente vencidas.

Biden quase perdeu a eleição presidencial. E enquanto sua campanha despejava largas somas de dinheiro, mensagens açucaradas e vagas para agradar aos eleitores brancos da classe média, deu-se relativamente pouca importância aos que mais possibilitaram a virada sobre Trump durante a noite da contagem de votos — os jovens e as pessoas de cor. Amarrado por décadas à sua própria mentalidade e currículo político, Biden não galvanizou os eleitores da classe trabalhadora quando murmurava refrões populistas em performances desprovidas de convicção.

É contra esse tipo de abordagem neoliberal que Bernie Sanders e tantos de seus apoiadores alertaram em 2016, e novamente em 2020. Nas duas ocasiões verificou-se um enorme fracasso das candidaturas democratas na tarefa de se mostrarem convincentes como defensoras dos trabalhadores contra as forças da avareza endinheirada e da ganância empresarial.

Na verdade, Hillary Clinton e Joe Biden impregnaram-se de intimidade com as elites econômicas ao longo de suas carreiras políticas. Para muitas pessoas, Clinton se revelou como farsa quando tentou soar como populista, afirmando representar as pessoas humildes contra os gigantes empresariais. E para os que conheciam o suficiente do currículo político de Biden, suas pretensões no mesmo sentido tinham tudo para parecer falsas.

Os dados eleitorais deixam claro que Biden obteve larga proporção de seus votos devido às antipatias face a seu oponente, bem mais do que em razão de entusiasmo por sua candidatura. Ele não inspirou a base democrata, e seu atrativo tinha bem mais a ver com uma oposição aos males do trumpismo do que com uma adesão a suas próprias visões políticas.

Mais do que nunca, mostrar-se apenas anti-Trump ou antirrepublicano não será o meio de conduzir os democratas e o país para os objetivos vitais de que precisamos. Sem o leme de um programa progressista forte, o governo Biden irá submergir na velha espuma retórica de sempre, com as posições em favor do status quo que tantas vezes levaram as administrações democratas a soçobrar e que garantiram triunfos eleitorais aos republicanos.

Durante o verão e o outono, Biden mostrou que sabia cantarolar os refrões do populismo econômico quando isso parecia taticamente proveitoso, mas não conhecia de fato a letra da canção e tinha dificuldade em soltar a melodia. Sua imagem de “amigo dos marmiteiros” foi uma construção útil no mundo encantado da grande mídia, mas esse tipo de miragem não foi longe. Enquanto isso, os estrategistas de Biden resolveram se apoiar na questão da pandemia, dando destaque à insanidade narcisista e letal de Trump.

Mas quando o assunto era assistência médica — obviamente uma preocupação central na vida das pessoas, especialmente em meio à pandemia do coronavírus —, Biden se encastelou basicamente no Obamacare (o “Affordable Care Act” de 2010) em vez de defender uma garantia genuína de acesso à saúde como um direito humano. Do mesmo modo, Biden falou um bocado a respeito de diminuir os sacrifícios econômicos dos pequenos empresários e das famílias, mas tratou-se de coisa bem tímida em comparação com aquilo de que desesperadamente se precisa. Em larga medida, ele deixou que o campo da disputa econômica fosse ocupado pelas bazófias pseudopopulistas de Trump.

A partir de agora, precisamos de vigorosos continuadores do New Deal dos anos 1930 e dos programas da “Grande Sociedade” de meados dos anos 1960, que foram asfixiados, do ponto de vista político e orçamentário, pela guerra do Vietnã. Precisamos de algum tipo de “socialismo democrático” (como asseverava Martin Luther King nos seus últimos anos de vida).

Os estragos das “soluções” baseadas no mercado estão por toda parte: o setor público foi dizimado, e precisa revitalizar-se com um gasto federal maciço, que vá além dos pacotes ocasionais de “estímulo”. Há potencial para criar milhões de bons empregos, enfrentando ao mesmo tempo a catástrofe climática. Se quisermos falar sério no que se refere ao fim de uma desigualdade de renda sistêmica e gritante, teremos de lutar por investimentos públicos maciços de longo prazo, obtendo-os por meio de uma tributação genuinamente progressiva e de grandes cortes nos gastos militares.

Com uma enorme penetração nos movimentos de base — algo que somente eles puderam alcançar de verdade —, os ativistas progressistas foram uma parte crucial na frente unidade que, na prática, se formou para derrotar Trump. Agora é o momento de continuar na organização de base para desafiar os democratas ligados às grandes corporações. Num passo nessa direção, a organização on-line RootsAction.org (de que sou diretor) lançou em meados de dezembro a campanha “Sem Lua de Mel”, como a segunda fase de nossa “Tire Trump, e Depois Desafie Biden”, que começou no verão passado.


Depois da eleição de Bill Clinton em 1992 (a que se seguiu a vitória republicana no Congresso dois anos depois) e da eleição de Barack Obama em 2008 (a que se seguiu uma vitória republicana no Congresso em 2010), os progressistas de modo geral foram desastrosamente passivos e cerimoniosos com os presidentes eleitos. Isto não pode ocorrer em 2021 com Joe Biden. Uma atitude de deferência da esquerda com relação a Biden apenas ajudaria e multiplicaria a força dos democratas ligados às grandes empresas e das hostes republicanas.

Os democratas empresariais conseguiram indicar o presidente que queriam, além de controlar vastos orçamentos de propaganda na campanha e uma sinalização de amplitude nacional no sentido de implementar estratégias “moderadas”. Mas, como notou o Washington Post, “a vitória de Joe Biden não arrastou consigo a de outros candidatos democratas”. As perdas sofridas deixaram apenas uma margem mínima de maioria na Câmara, e o partido não conseguiu obter maioria no Senado. Agora, os democratas pró-empresa colocam a culpa nos progressistas.

Os melhores membros do Congresso agora estão pressionando de volta — ninguém de forma mais eloquente e intensa do que Rashida Tlaib, a deputada de Michigan que acabou de ganhar seu segundo mandato num dos distritos mais pobres do país. Ela foi a voz mais veemente contra a investida antiprogressista que se realizou numa reunião dos deputados democratas no dia cinco de novembro. Ela continua a ser uma luz forte na defesa dos princípios progressistas.

Tlaib chamou a atenção para o fato de que, nos distritos onde a disputa era mais árdua, os candidatos democratas que abertamente apoiaram políticas progressistas, como o Medicare For All e o Green New Deal, foram vitoriosos. E ela se recusa a recuar.

“Não seremos bem-sucedidos se silenciarmos distritos como o meu”, disse ela ao site Politico, em novembro. “Não me deixar falar em favor das pessoas do meu bairro desde já, onde tem tantos negros, é me calar. Eu não posso ficar calada”.

O site conta que Tlaib estava “perdendo a respiração de tão frustrada” no fim da entrevista, quando disse: “Se [os eleitores] se dispuseram a passar por casas arruinadas, escolas fechadas e áreas poluídas para votar em Biden e Harris, quando perceberam que não tinham nenhuma alternativa, eles merecem ser ouvidos. Não posso acreditar que estejam lhes pedindo para ficarem quietos”.

Num e-mail a seus apoiadores, Tlaib foi clara: “temos de focar nas pessoas da classe trabalhadora. Estamos fartos de esperar para sermos ouvidos e ter atenção prioritária no governo federal. Não vou mais deixar líderes de nenhum dos dois partidos silenciarem as vozes dos que vivem no meu distrito”.

Tlaib possui o tipo de clareza que deverá guiar as forças progressistas, não importando o quanto se jogue a cortina de fumaça da “unidade partidária” em sua direção: “não estamos mais interessados numa unidade que exija do povo o sacrifício de sua liberdade e de seus direitos. E se queremos realmente unificar nosso país, temos de respeitar realmente cada voz individual. Dizemos isso animadamente quando nos referimos aos apoiadores de Trump, mas não quando se trata dos meus irmãos negros e mestiços, dos vizinhos LGBTQ ou das pessoas marginalizadas”.

Quando Rashida Tlaib fala de “empurrar o Partido Democrata no sentido de representar as comunidades que o elegeram”, suas palavras são para valer. É um claro contraste com o discurso usual dos democratas da cúpula e de grupos como o Comitê Democrata Nacional.

A maioria dos aproximadamente cem membros da bancada progressista do Congresso deixa de ser confiável quando a pressão corporativa aperta, com ajuda da presidente da Câmara, Nancy Pelosi. O que tem sido espantoso, e por vezes perturbador, para o status quo democrata, é que Tlaib — assim como seus colegas Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ro Khanna e alguns outros — repetidamente deixam claro que são parte de movimentos progressistas. E esses movimentos falam sério quando se trata de uma mudança social profunda, mesmo que isso acarrete uma polarização com os líderes do Partido Democrata.

Quem quer que tenha um pingo de valores humanitários, deve estar consciente que isso se trata de anátema para os legisladores republicanos. Mas essa realidade não pode nos tornar cegos para a necessidade de enfrentar — e, quando possível, destituir — os democratas eleitos que estiverem mais interessados em manter um status quo a favor dos interesses econômicos do que em lutar pela justiça social.

Enquanto atendem a seus impulsos de culpar a esquerda pelos fracassos centristas, os democratas ligados ao empresariado e seus auxiliares vagamente “progressistas” — dentro e fora do Congresso —, estão se esforçando para minimizar a importância de fissuras fundamentais. A ausência de um sistema de saúde eficaz, a tímida resposta do governo à emergência climática, a realidade crescente e mortal da desigualdade de renda, o racismo sistêmico, o militarismo desenfreado e tantas outras catástrofes em curso são o efeito de estruturas sociais que manietam a democracia e servem à oligarquia. Os que condenam a luta por um programa progressista estão dizendo que, essencialmente, não querem mudar muita coisa.

Nas futuras batalhas eleitorais, por cargos estaduais e federais com postulantes partidários, o caminho da esquerda — com o duplo imperativo de lutar contra a direita e de lutar por uma agenda socialista democrática abrangente — passa pelo interior do Partido Democrata. Os republicanos adorariam ver a esquerda sair dele ou tentar reproduzir a espiral descendente do Partido Verde americano; nisso, não diferem dos líderes democratas ligados aos interesses corporativos, que gostariam de ver os progressistas perderem força no partido.

A esquerda precisa persistir na organização dentro e fora do campo de disputa eleitoral, esforçando-se para tornar verdade uma afirmação corajosa: “quando lutamos, vencemos”.