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Feminismos em disputa pelo marco zero

Apresentação

No verão francês de 2020, crivado por antagonismos que, desde o terremoto do #MeToo#balancetonporc, em sua versão gaulesa —, abriram fissuras profundas entre feministas, o monólogo de Fatima Daas sugere ser possível habitar contrários, conviver com o que se mostra inconciliável, excludente. Sucesso editorial, La Petite Dernière (Notab/Lia, 2020) é o primeiro romance de uma jovem muçulmana, francesa de origem argelina, moradora da periferia, lésbica, que assume sua fé e se define como feminista interseccional. Sempre na primeira pessoa, ela narra um itinerário existencial que retrata fragmentos de uma vida que poderia ser uma colcha de retalhos, mal costurados e disformes. Itinerário ao qual ela deu consistência e sentido na ausência de uma pretensa conformidade.

Já no debate público, as divisões e divergências que deram uma feição própria ao feminismo ao longo de mais de cinco décadas — expressa numa horizontalidade sem costuras porque alheia a projetos hegemônicos — hoje se traduzem em hierarquias que secundarizam e até deslegitimam lutas que integram o repertório feminista.

Nada mais irônico, já que denunciar e refutar hierarquias impostas tanto pela esquerda quanto pelos movimentos operário e sindical se soldou na construção de um movimento autônomo irredutível, resistente inclusive ao processo de institucionalização das agendas de gênero nos organismos internacionais e no aparelho de Estado.

Hoje, na França, correntes feministas decoloniais incriminam o que denominam “feminismo branco”, a quem acusam de “conservador e reacionário” por ter, afirmam, compactuado com o racismo e com o colonialismo. Projetam, assim, uma categorização das lutas das mulheres a partir de uma escala de valores que leva, no limite, a interditar conquistas e a reprimir a subjetividade que se construiu nas lutas. O recurso à cultura do cancelamento chegou, em sua pior forma, ao movimento de mulheres. A estratégia de uma suposta superioridade moral tem sido acionada para calar e intimidar, despolitizando por dentro um dos movimentos sociais mais exitosos e performáticos na transformação das relações sociais na contemporaneidade. A pretensão de produzir um marco zero, apagando as conquistas das gerações anteriores, promove a substituição de pautas prioritárias por brigas pessoalizadas, com trocas de acusação de parte a parte que obliteram os temas da política e se movem por julgamentos individuais, como se fosse desejável dividir as feministas entre certas ou erradas, boas ou más, atuais ou ultrapassadas.

O feminismo é plural. Plural porque contém em sua diversidade a luta contra todas as formas de opressão e de dominação que vivem as mulheres de todas as idades, raças, credos, ideologias políticas, vivências e profissões mundo afora. Não importa como forjem suas batalhas e organizem seu movimento, se individualmente — num cotidiano que reitera a cada instante as assimetrias e as relações de poder que cerceiam o presente e o futuro — ou nos coletivos que multiplicam ações, intervenções e palavras de ordem na produção e reprodução de um renovado ethos social: ser feminista.

Os feminismos têm sido, portanto, muito mais do que os tantos e tão arrebatadores movimentos de mulheres que, há décadas, federalizam suas lutas em sua imensa diversidade e mudam o cenário de subalternidades que consubstancia o feminino.

Em todas as latitudes, os feminismos se opõem à ordem patriarcal no âmbito do regime capitalista que hoje se exibe vencedor e define como alvo abater os direitos das mulheres, os já conquistados e os ainda por alcançar, para que liberdade e igualdade se conjuguem indiscriminadamente. Por isso, recordar Virginia Wolf, como o faz Martine Storti em seu livro mais recente, Pour un féminisme universel (Seuil, 2020), ajuda a entender por que, ao serem plurais, os feminismos são também universais: “Por ser mulher, não tenho país. Por ser mulher, não desejo nenhum país. Meu país, como mulher, é o mundo inteiro”.

Expressão desse universal que se constrói numa marcha longa está na nomeação da violência sexual e de gênero, cujo arco as feministas alargam a cada dia ao denunciar os assédios, o estupro, a violência doméstica, o feminicídio. Desse modo, o movimento #MeToo, além de desvendar as humilhações nossas de cada dia, exige dar-lhes um basta. Um basta à complacência que a proximidade, o afeto ou até mesmo a identidade de classe toleram nas pequenas violências naturalizadas como próprio da essência do masculino dominante frente ao feminino, presa cativa. É uma transformação no âmbito da correlação de forças que informava as relações entre os gêneros. Mas também uma transformação do próprio discurso feminista, agora perpassado por clivagens que parecem levantar muralhas entre gerações e tendências, agora adversárias.

Que o diga Alice Coffin, militante feminista e LGBT, jornalista e professora, eleita pelo Partido Europe Écologie Les Verts (EELV) como conselheira municipal da Prefeitura de Paris, e membro da maioria de esquerda. Na sequência da publicação de seu novo livro, Le Génie Lesbien (Grasset, 2020), e por denunciar a tolerância reinante com a violência de gênero por parte da elite política republicana, foi covarde e abusivamente queimada em praça pública, sendo identificada como radical e excessiva. O sexismo de sempre, por um lado, e os antagonismos no âmbito dos movimentos feministas, por outro, somam-se perversamente e, por vezes, acabam deformando a realidade da luta política.

Uma dessas deformações está em curso nos movimentos feministas no Brasil. Ainda que em contexto histórico diferente do francês, são muitas as tentativas de hierarquizar o modo divergente e agonístico — para usar uma expressão da filósofa Chantal Mouffe — como os feminismos se estabeleceram no campo político. Pretender cancelar a potência do agonístico é desconhecer — ou, pior, propositalmente tentar eliminar — a perspectiva de que luta política se faz em alianças e na escolha de quem são os reais adversários.

Discordar é manter as questões em aberto, sujeitas a modificações, revisões, reinterpretações, sem perder de vista a vigorosa luta por emancipação, solo comum a partir do qual toda pluralidade se expressa. Já hierarquizar é reduzir a luta das mulheres a uma mera disputa por hegemonia. Para refletir sobre os caminhos dos feminismos e os desafios que atravessam os movimentos de mulheres, a Revista Rosa traz duas entrevistas com feministas francesas — Martine Storti e Françoise Picq — cujas análises sobre o momento e o contexto francês servem como uma caixa de ferramentas para desmontar armadilhas que a luta interna por hegemonia tem produzido nos movimentos feministas. Ainda que se deva reconhecer a dificuldade de transpor as questões francesas para o cenário brasileiro, a oportunidade de refletir acerca dos impasses apontados por elas é também uma chance de pensar a respeito de como as fraturas abertas no debate francês estão expostas no nosso campo político. Nossa expectativa e desejo é que a conversa iniciada com as feministas francesas reverbere nas feministas brasileiras e nos traga outras possibilidades de interlocução.