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Entrevista com os bibliófilos Antonio Carlos Secchin e Ésio Macedo Ribeiro

Entre tesouros e garranchos: uma conversa sobre bibliofilia

Alex Sens.

Quando pensamos numa biblioteca de livros raros, não é difícil nos vir a imagem da preciosa biblioteca que aqueles monges do século XIV guardavam a sete chaves em O nome da rosa, ou ainda nos transportarmos à descrição que Borges faz da Biblioteca de Babel, em conto homônimo, no seu Ficções. Os corredores estreitos que compõem um labirinto infinito, as páginas amareladas e cheias de poeira, as lombadas escuras com letras douradas…

Mas hoje não conversaremos sobre essa imagem das bibliotecas que se cristalizou ao longo dos séculos — não que ela não esteja sempre à espreita —, discutiremos, sim, a biblioteca enquanto um organismo vivo, e “manter uma biblioteca viva não é para os fracos”, como lembra um de nossos entrevistados. A Revista Rosa traz nesta série uma conversa que tive com dois dos maiores bibliófilos do Brasil, Antonio Carlos Secchin e Ésio Macedo Ribeiro. Donos de duas bibliotecas de importante valor histórico e cultural, são também os responsáveis por trazerem novamente à luz várias obras perdidas e/ou esquecidas da literatura brasileira.

Se a imagem da biblioteca-babel está presa no imaginário geral, a dos guardiões desses lugares sagrados, os bibliotecários, sempre calados, discretos e reticentes, também não está distante. Desta vez, nossos dois entrevistados conversaram abertamente sobre o início de suas coleções, sobre o que as compõem, e nos revelam ainda alguns dos tesouros e dos garranchos que elas guardam. Discutem a função social do bibliófilo e de como avaliam a preservação de livros em nosso país. Falam de sua poesia — sim, ambos também são poetas! — e de como veem o futuro do objeto livro e da bibliofilia.

Espero que o leitor goste desse passeio pelas prateleiras do Ésio e do Secchin, e asseguro que, ao final do percurso, em meio a tantas antiguidades tão bem cuidadas, ninguém estará espirrando ou com o nariz congestionado.


Para começarmos o nosso papo, como vocês definiriam um livro raro?

Antonio Carlos Secchin — Devem existir conceituações mais técnicas, porém, para um bibliófilo, livro raro é aquele que ele ainda não tem na estante (risos). Objeto de um desejo não apaziguado. Cada colecionador tem sua lista, sempre inconclusa, de “procurados”, e, a depender do perfil do acervo, o que é raro para um colecionador, pode ter pouco significado para outro. Livro raro é aquele que você não consegue ou que tem muita dificuldade em conseguir, mesmo quando disposto a pagar muito por ele.

Ésio Macedo Ribeiro — Muitos fatores implicam para que um livro seja considerado raro. Primeiro, pela importância histórica e literária. Depois, enquanto objeto: pela qualidade do exemplar, pela tiragem, se traz dedicatória e autógrafo do autor, se é ilustrado por algum artista renomado, entre outros fatores. As primeiras edições de Pau Brasil, de Oswald de Andrade, de Alguma poesia, do Carlos Drummond de Andrade, de O quinze, da Raquel de Queiroz, e da Caixa preta (única edição), do Augusto de Campos, por exemplo, se encaixariam na categoria livros raros. Já na categoria extremamente raros, mencionaria as primeiras edições de Iaiá Garcia, do Machado de Assis, O guarani, do José de Alencar e Espectros, da Cecília Meireles.

Vocês se lembram de onde veio o interesse pela bibliofilia e qual foi o primeiro livro raro que vocês compraram/conseguiram?

A.C.S. — Levando em conta a literatura brasileira, setor forte de meu acervo, diria que, no meu caso, a bibliofilia foi decorrência do interesse em ler autores marginalizados pelo cânone. Então, ou eu corria atrás de suas obras em edições originais, quase nunca reeditadas, ou tinha que me contentar com a pífia amostragem eventualmente disponível em antologias. Isso me levou, também, a reunir numerosas antologias, como trampolins para a pesquisa sobre os escritores nelas elencados. Trabalhei a questão do cânone, inclusive, em cursos de pós-graduação na Faculdade de Letras da UFRJ, com ênfase no Romantismo. Para dar um exemplo: a historiografia oficial acolhe menos de uma dezena de poetas canônicos do Romantismo. Quando estudei o motivo marinho nesse período, tive oportunidade de percorrer 52 autores, com ótimas descobertas. Após essa fase de buscas de edições originais basicamente como fonte de pesquisa, passei a me interessar por questões correlatas, paratextuais, mas igualmente portadoras de sentido: capas, ilustrações, dedicatórias… Creio que desenvolvi o pendor bibliofílico relativamente tarde, quando já dispunha de uma boa biblioteca de trabalho. Por isso, não me recordo das primeiras raridades: talvez elas já estivessem comigo, algumas, sem eu percebê-las enquanto tal.

E.M.R. — Eu sempre gostei muito de ler. Comecei aos seis anos de idade, instigado por uma tia que era pedagoga, e nunca mais parei. Mas meu interesse em colecionar de forma sistemática se deu por volta de 1985, quando eu conheci e me tornei amigo do filólogo, membro da Academia Brasileira de Filologia e do Círculo Linguístico do Rio de Janeiro, e professor do Colégio Pedro II, Raimundo Barbadinho Neto. Ele tinha uma excelente biblioteca, que foi adquirida por mim um pouco antes de sua morte. Barbadinho não só implantou em mim o bichinho do colecionador, bem como me tornou completamente maluco. Chego ao extremo de comprar até cinco ou mais exemplares de um mesmo livro, somente para ter o exemplar o mais perfeito possível.

Quanto ao primeiro livro raro que comprei, foi a primeira edição de Mensagem, do Fernando Pessoa.

Falar de bibliofilia no Brasil é quase sinônimo de José Mindlin. Ele foi uma inspiração quando começaram a investir em suas próprias coleções?

A.C.S. — Conheci-o pessoalmente já no século XXI. O perfil de sua coleção é um pouco diverso do da minha, que não contempla a chamada “brasiliana”, somente a literatura em sentido estrito, do período árcade aos dias de hoje. Tenho ótimas recordações de Mindlin. Visitei-o em São Paulo três ou quatro vezes, recebi-o no Rio. Fui seu convicto eleitor na Academia Brasileira de Letras. Entrou na ABL já com idade avançada, infelizmente foi curto nosso convívio acadêmico.

E.M.R. — Eu fui amigo do José Mindlin. Frequentei sua casa, sua biblioteca e o escritório de sua empresa, a Metal Leve, até o fim de sua vida. Em minha casa ele esteve uma única vez, queria conhecer a minha biblioteca, imagine! Conto esta história no livro que a Edusp publicou, em 2015, em homenagem a ele, A loucura mansa de José Mindlin. Aprendi demais com ele. Foi e continua sendo uma grande referência para mim. Além do que, era uma pessoa muito generosa. A cada vez que eu o visitava, voltava para casa com algum presente ofertado por ele. Foi um homem que fez muito não só pela bibliofilia no Brasil, mas também pela nossa cultura de modo geral. Um exemplo que, me parece, não deixou seguidores.

O acervo de um bibliófilo se constitui muito mais do que com apenas livros. Incluem-se também revistas, fotografias, cartas, originais, desenhos etc. É difícil de se afastar, ou fácil de se seduzir por uma “busca fáustica” pela totalidade, pela vontade de se ter tudo? E ainda: qual livro vocês ainda não têm e gostariam de ter?

Alex Sens.

A.C.S. — O sonho da totalidade alimenta o bibliófilo, ao mesmo tempo que a inexequibilidade do sonho é algo que se deve ter sempre presente, para evitar sofrimento (risos). Meu Norte é rejubilar-me ao máximo com o que a biblioteca incorpora, e lamentar ao mínimo o que ela perde, em livrarias ou leilões. É melhor acreditar que, mesmo para os livros tidos como “impossíveis”, pode haver uma segunda chance de aparição. Mas, se a totalidade é inviável, resta a alegria de compor pequenos “todos”, conjuntos completos dos autores que amamos.

E.M.R. — Sim, colecionar é uma doença sem cura. De verdade. Nós, colecionadores, sempre buscamos ter tudo sobre determinado assunto e/ou autor. Tarefa quase impossível quando se nasce cem ou mais anos após o objeto de desejo. Mas, ao longo dos anos em que me dediquei à busca de raridades, descobri uma coisa magnífica. Descobri que nunca teremos tudo o que almejamos. Não é a glória!? A partir daí eu passei a não sofrer por não ter coleções completas de algum autor, revista etc. Assim, quando eu consigo algo difícil, fico imensamente contente.

Um objeto de desejo seria a primeira edição de Estrela da manhã, do Manuel Bandeira, que, segundo consta, só foram impressos 47 exemplares.

Ao mesmo tempo em que a coleção pode aspirar a uma certa totalidade, ela também pode, e às vezes deve, tender a um recorte. Sei que o Secchin mantém uma coleção de peso sobre a literatura brasileira do século XIX; enquanto o Ésio, uma de vanguardas brasileiras do século XX. De um ponto de vista pessoal, o que de mais representativo, nesses recortes, a coleção de vocês guarda?

A.C.S. — Procuro ter, em edições originais, não apenas as obras e os nomes consagrados, mas escritores, conforme disse, esquecidos pelo cânone — e, ainda, obras “menores” de autores “maiores”. Nesse sentido, às vezes, uma obra “menor” passa, pelos critérios da subjetividade valorativa do bibliófilo, a ter dimensão superlativa. Dois exemplos: Chic-chic (1906), peça teatral em versos, de João do Rio, impressa em papel jornal, dada como desaparecida; Palavras que o vento leva… (1900), livro de poeta ignorado, Guerra-Duval, impresso em Bruxelas, e que teria sido pioneiro na utilização do verso livre em nossas letras. A lista seria muito extensa.

E.M.R. — No meu caso, que tenho uma coleção da obra dos principais autores do movimento modernista de 1922 para cá, as lacunas que havia, por exemplo, dos prosadores mais representativos dos anos 1930 a 1960, como José Lins do Rego, Antônio Callado e Josué Montello, que eu não colecionava, foram preenchidas com os livros que vieram da biblioteca que adquiri com o Barbadinho. Também ajudaram na formação da minha biblioteca os livros que adquiri com outro grande bibliófilo e querido amigo, o Waldemar Torres, pessoa que me ajudou a robustecer não só a minha coleção de Concretismo e de outros movimentos de vanguarda, bem como me ensinou muito sobre o que colecionar. Não posso deixar de mencionar o Secchin, meu amigo há mais de trinta anos, pessoa com quem eu mais troco figurinhas atualmente. Com a ajuda desses amigos e mais horas e horas de busca em sebos e em catálogos, sem esquecer dos benditos leilões, que nos deixam de bolso vazio, posso dizer que a minha biblioteca é bastante coesa em se tratando da literatura brasileira do século XX.

Mudando um pouco a direção da conversa, gostaria de saber o que pensam sobre dedicatórias e autógrafos. Para vocês, pessoalmente, é algo que importa na hora de comprar um livro raro? As dedicatórias revelam muito sobre o autor? E, por fim, qual a dedicatória mais curiosa que vocês preservam em suas coleções?

A.C.S. — Já escrevi um artigo sobre dedicatórias. Existem as tipográficas, muitas delas interessantíssimas, mas as manuscritas transformam o livro num exemplar único. Nelas se concentram todas as espécies de relações: as protocolares, do “cordial abraço”, as de efetiva amizade, as de paixão (nessas, seria aconselhável certa cautela para evitar arrependimentos), as de interesses menos nobres (bajulação). Embora a biblioteca disponha de dedicatórias relevantes, em todas as escalas de sentimentos aqui referidos (e de outros), agradam-me particularmente as que envolvem ao mesmo tempo dois escritores que eu admire: de Cabral para Drummond, de Drummond para Clarice, de Bandeira para Dante Milano, de Cecília Meireles para Miguel Torga…

E.M.R. — Eu sempre primei por escolher e adquirir o livro o mais perfeito possível, por isso não me importo se o livro está ou não com dedicatória e autógrafo do autor. Vou dar um exemplo para que você compreenda isso melhor. Quando adquiri Há uma gota de sangue em cada poema, do Mário Sobral (pseudônimo do Mário de Andrade), o vendedor tinha dois exemplares, ambos encadernados. Um trazia dedicatória e autógrafo, mas faltava a folha que vem encartada nesse livro, e que traz uma “Explicação” escrita pelo autor. Além disso, apresentava páginas muito amareladas e oxidadas. O outro exemplar, embora não trouxesse dedicatória nem autógrafo, estava mais bem preservado, e possuía a folha com a “Explicação”, que é um item desconhecido por alguns colecionadores. De modo que optei, of course, pelo livro completo e em melhor estado.

A dedicatória mais curiosa que tenho é uma feita por Lúcio Cardoso — não me ocorre agora o título do livro — para um suposto namorado dele. Nela, Lúcio deixa registrada a sugestão da prazerosa noite de amor que tiveram.

Não é raro a bibliofilia ser associada a uma atividade elitista — não que ela não o seja —, mas no Brasil, onde há poucas instituições privadas interessadas no assunto e a gestão de acervos públicos é muito burocrática e, por vezes, problemática — vide o imbróglio entre IEB-USP e a biblioteca de Antonio Candido1 e, mais recentemente, as tentativas de desmonte na Casa de Rui Barbosa,2 instituição responsável pelo acervo de dezenas de escritores. Vocês acreditam que o bibliófilo exerce uma função política e social na preservação de parte da memória nacional, mesmo que numa instância particular?

A.C.S. — Não deveria ser assim, mas, pelo descalabro de muitas instituições, o bibliófilo acaba representando uma tábua de salvação da memória cultural do país. Sobretudo, como suponho ser meu caso, quando o acervo pessoal não é algo egoisticamente fechado, mas um conjunto que gere frutos à coletividade. Pude repor em circulação, entre outros títulos, a primeira obra de Cecília Meireles, Espectros, de 1919, e também um livro de Drummond (25 poemas da triste alegria), seis anos anterior a sua estreia “oficial” com Alguma poesia (1930). O imperativo da preservação é inerente ao exercício da bibliofilia. A rigor, não somos donos do que possuímos, mas fiéis e transitórios guardiões, no combate incessante à dissipação do patrimônio de nossa cultura pela incúria e desinteresse do poder público.

E.M.R. — Sim, eu acredito que sem nós, os bibliófilos, muita coisa estaria irremediavelmente perdida. Veja o que me aconteceu no início deste ano. Fui procurado por uma amiga e professora da USP, que estava pesquisando sobre a Geração Mimeógrafo, livros e também alguns periódicos daquele período. Ela me disse que já havia consultado muitas bibliotecas, incluindo a Nacional, no Rio de Janeiro, e a Mário de Andrade, em São Paulo, que são as duas maiores do Brasil, e não encontrado o que procurava. No entanto, encontrou, não tudo, mas boa parte do que precisava consultar, na minha biblioteca.

Embora minha biblioteca seja particular, eu sempre recebi pessoas e entidades que necessitavam consultar algum item que tenho nela. Muitos livros, revistas etc. que circularam ou circulam por aí foram feitos a partir do meu acervo. Também já emprestei livros para muitas exposições, tanto no Brasil quanto no exterior. Isso me deixa muito contente. Claro que tenho critérios bastante rigorosos para aqueles que desejem consultá-la (muitos aprendidos com José Mindlin e Waldemar Torres, e também nos cursos que fiz na Associação Brasileira de Encadernação e Restauro — Aber). Mas nada que uma pessoa que ame livros não consiga compreender e pôr em prática.

Aproveitando o gancho da pergunta anterior, como vocês avaliam a preservação de livros e de acervos literários pelos órgãos públicos aqui no Brasil? E qual é a importância e a dimensão que essas instituições têm para o acesso democrático de pesquisadores e a preservação da memória artístico-cultural do país?

A.C.S. — Prefiro falar das benfazejas exceções: que maravilha dispor dos acervos digitalizados da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP! Exemplos bem-sucedidos de uma documentação incomensuravelmente valiosa com democrática franquia de acesso.

E.M.R. — A preservação do livro no Brasil é uma coisa catastrófica. Muitas pessoas pensam que é só comprar o livro, colocá-lo na estante e largar lá até o fim da vida. Até mesmo o Mindlin passou por isso. Lembro-me de uma vez em que estive com ele, em sua casa, e ele me contar, assim que nos sentamos, que tinha acabado de perder uma coleção completa da primeira edição de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust. Estava inconsolável. Disse-me que os cupins comeram os volumes em apenas uma noite, uma coisa horrível.

Além da água e da umidade, temos mais três seres que são o horror dos bibliófilos: as traças, os cupins e as brocas.

Certa vez, fui dar assessoria à biblioteca de um amigo, e, assim que tive acesso a ela, percebi logo, pelo cheiro no ar, muita umidade no local. Ele montou sua biblioteca bem ao lado de um banheiro. Comecei a higienização de seus livros e logo no início, num raríssimo do século XVII, encontrei uma imensa lagarta, vivíssima, instalada confortavelmente dentro da lombada do livro. Foi um deus nos acuda. Tivemos que descer toda a biblioteca, higienizar livro por livro, e pôr no ambiente materiais que pudessem retirar aquela umidade toda. Para o que saímos para comprar giz escolar e cânfora, que são soluções para quem não tem um desumidificador. Recomendei a ele retirar aquela parte da biblioteca de perto do banheiro, senão o problema persistiria.

Alguns anos depois, fui convidado a organizar, catalogar, higienizar e avaliar as bibliotecas deixadas por Mário Chamie e Décio Pignatari. A do Chamie até que não tinha problemas sérios, porque estava bem acomodada em dois dos apartamentos que ele tinha nos Jardins, em São Paulo. Mas a do Pignatari, por estar em sua casa de campo, no interior do Estado de São Paulo, teve partes, como a sua preciosa coleção de LPs, quase que totalmente perdidas pela ação da água e da umidade.

O Brasil tem um clima péssimo para a conservação e a preservação de livros. Por causa disso, temos que despender muito com a manutenção das nossas bibliotecas. Manter uma biblioteca viva não é para os fracos.

Todo colecionador é também pesquisador. Vocês dois trouxeram à luz obras inéditas ou muito raras de autores consagrados. O Ésio, por exemplo, foi o responsável pela edição crítica da Poesia completa de Lúcio Cardoso (Edusp, 2011), um livro imenso, com mais de mil páginas, que contém muitos poemas inéditos; e o Secchin, como já citado, recuperou o manuscrito daquela que foi a primeira coletânea de poemas escrita por Drummond, 25 poemas da triste alegria (Cosac Naify, 2012), e o livro de estreia de Cecília Meireles, que era cercado por mistérios e controvérsias, Espectros (Poesia Completa, Global, 2001). Vocês ainda guardam preciosidades que pretendem algum dia trazer a público?

A.C.S. — Poderia acrescentar, como já editadas ou reeditadas, a juvenília de João Cabral, reunida em Primeiros poemas (1990), e a estreia de Gullar em Um pouco acima do chão (1949). No arco entre 1850 e 1920, disponho de numerosos títulos esquecidos em demanda de resgate. E admiro muito o trabalho de Ésio na preservação e ampliação do legado de Lúcio Cardoso.

E.M.R. — Sim, tenho muitos projetos em mente. Um deles, publicar os inéditos e dispersos do Lúcio Cardoso e reeditar obras dele que estão esgotadas há muitos anos. Outro, este bem mais antigo, publicar todos os textos críticos sobre Monteiro Lobato do saudoso Cassiano Nunes, que foi um dos maiores estudiosos da obra do pai da Emília. Queria, é verdade, ter conseguido editar a antologia antes de ele morrer, mas o tempo não nos permitiu. Tenho tudo reunido numa pasta, só falta digitalizar e arranjar um editor. Também gostaria de editar as cartas da minha coleção, principalmente as de Carlos Drummond de Andrade, Haroldo e Augusto de Campos, Manoel de Barros, Lygia Fagundes Telles, Mário de Andrade e João Antônio. E por aí vai.

Passa-se a vida colecionando, garimpando, perdendo noites em leilões, tardes inteiras em sebos, e, claro, gastando bastante dinheiro. Tendo em vista o esforço de anos e anos, qual destino pretendem dar à coleção de vocês?

A.C.S. — Sendo imortal da ABL, quero pensar bem na questão, e dar-lhe resposta precisa daqui a 437 anos (risos). Como, todavia, nem todos estarão dispostos a aguardar tanto para conhecê-la, antecipo uma outra. Meu acervo, hoje, deve estar na faixa dos 20 mil volumes. Consideraria uma lástima vê-lo dissipar-se. O ideal seria um acordo como o logrado por José Honório Rodrigues: uma instituição (universidade pública) adquiriu-lhe a biblioteca, mas deixou-a em usufruto na residência do historiador. Ótimo (embora pouco usual) negócio para ambas as partes: o bibliófilo dispõe da coleção até o fim da vida e morre com a certeza de que ela será preservada; a instituição, por outro lado, deve torcer para que o colecionador viva muito tempo, pensando, com toda razão, que boa parte do dinheiro será investida… em mais livros, e que, portanto, será contemplada com um acervo superior ao que adquiriu.

E.M.R. — Depois que fiquei viúvo, esta é uma das coisas que mais me fazem refletir. Porque eu sou conhecedor do destino que tiveram inúmeras coleções particulares no Brasil. A maioria das famílias não dá o mínimo valor aos livros. Assim que ficam sabendo que o parente colecionador morreu, eles vendem os livros por metro ou por quilo para o primeiro livreiro esperto que aparecer. Isso só não acontece com pessoas ilustradas, como é o caso da minha malunga amiga Dora Paes, viúva do saudoso José Paulo Paes, que manteve a coleção do marido escritor após a sua morte, exatamente do jeito que ele deixou. Agora que ela morreu, a coleção está sendo organizada e catalogada pelos sobrinhos e terá um destino nobre, que não posso revelar ainda.

Doar no Brasil é um imenso problema. Tenho inúmeros exemplos de doações malsucedidas. Para ficar num só exemplo, menciono a biblioteca do filólogo Celso Cunha, que ficava no Rio de Janeiro. Ele era obcecado com a qualidade de seus livros, tanto que pagava caro pelas encadernações em pleno couro de cabra que executavam para ele. Os livros de sua biblioteca eram todos encadernados desse modo. O homem era tão maluco que chegou a pagar uma pessoa para ir a Portugal somente para aprender douração, para que ela pudesse dourar o texto das capas das suas encadernações. Morreu, a biblioteca foi para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficou por anos e anos jogada num depósito que, segundo também soube, teve infiltração de água, fazendo com que boa parte dos volumes que ele cuidou a vida inteira com tanto esmero fosse não só danificada, bem como definitivamente inutilizadas. Espero poder viver o suficiente para dar um destino digno à minha biblioteca.

Pelo que vocês têm observado, a bibliofilia é um campo que ainda tem poder de atração, no sentido de que ainda se formam colecionadores hoje em dia? Ela ainda tem espaço num mundo virtualizado, em que bibliotecas inteiras já estão digitalizadas e no qual a Biblioteca de Babel, imaginada tão bem por Borges e por tantos outros autores durante séculos, hoje se trata de um conglomerado infinito de páginas e de livros armazenados na “nuvem”?

A.C.S. — A paixão pelo objeto, em sua materialidade, não pode ser integralmente substituída pela volatilidade da informação na nuvem. Há de haver — poucos, mas resistentes — os que se emocionam com uma dedicatória expressiva, os que viajam ao século XIX deslizando os dedos e o olhar numa edição original de Machado. Não por acaso, jamais se ouviu falar de uma confraria de e-bookófilos (risos). Muita coisa conspira contra a comunidade da bibliofilia: a quase ausência de contato com o livro físico na formação escolar, o custo mais atraente do e-book, a indisponibilidade de espaço doméstico para abrigar grandes coleções, o alto valor demandado por itens de bibliofilia. Se o comércio livreiro na Internet, por um lado, viabilizou o acesso de todos a um Himalaia de livros, por outro (aproveitando a imagem) pôs o preço nas alturas: sumiram as pechinchas com que de vez em quando nos deparávamos nos antigos, adoráveis e hoje quase extintos sebos de bairro.

E.M.R. — Bibliófilos, no Brasil, sistemáticos como o Secchin e eu, são em torno de setenta. À medida que uns vão morrendo, outros vão tomando seus lugares. Penso que o prazer de colecionar livros nunca morrerá e que sempre haverá uma nova geração se iniciando nessa arte. Nos leilões que venho acompanhando, noto muitos novos rostos digladiando pelo objeto livro. São, ao que parece, pessoas endinheiradas e muito aguerridas, no bom e no mau sentido. Mas nós, Secchin e eu, que somos escolados no riscado, vemos o quão ingênuos eles ainda são. Às vezes pagam uma fortuna por um livro ou revista que têm pouco ou quase nenhum valor, e noutras, ignoram itens raros que saem por preços irrisórios. Colecionar, além de ser um grande prazer, é uma arte que exige muita pesquisa, estudo e interlocução. Secchin é um grande interlocutor, nossas conversas telefônicas duram horas.

Quanto à formação de bibliotecas, eu penso que os colecionadores particulares brasileiros estão engatinhando nesse quesito. Poucos são os que têm algum know-how. Há uma diferença gritante entre os critérios de qualidade e de preço praticados na terra do Tio Sam e no Brasil, por exemplo. Eu realmente me assusto quando vejo o quanto os colecionadores e livreiros americanos se organizaram no século passado. Só para se ter uma ideia, em 1949, há exatos 71 anos, eles fundaram a prestigiosa The Antiquarian Booksellers' Association of America (ABAA), entidade que além de congregar todos os livreiros do país, promove o interesse por livros raros, antiquários e coleção de livros. Além de ter por objetivo principal manter os mais altos padrões no comércio de livros e ainda na ética comercial. Sem esquecer de mencionar que eles até criaram seu próprio código de ética.

E se formos ver como são as bibliotecas públicas e universitárias norte-americanas, aí é que o susto aumenta. Elas têm coleções preciosas e até completas da nossa literatura, às vezes muito melhores do que as brasileiras. Eles dão valor, sabem a importância de se preservar a memória dos povos.

Mas nem tudo está perdido. Há pessoas, como o querido Antônio Miranda, especialista em planejamento e arquitetura de bibliotecas e centros de documentação, e um dos maiores nomes da Ciência da Informação no Brasil, que inaugurou e assumiu a direção da Biblioteca Nacional de Brasília sem nenhum livro e a deixou funcionando com uma coleção invejável. Coleção esta que ele arrecadou com amigos, como a Marly de Oliveira, que doou toda a sua biblioteca para lá. Devo mencionar também minha amiga soteropolitana, a jornalista e biógrafa de Jorge Amado, Josélia Aguiar, que atualmente dirige a Biblioteca Mário de Andrade. Há aproximadamente dois anos ela assumiu a segunda maior biblioteca do país e tem feito um trabalho primoroso. É pena que existam poucos como esses dois no Brasil.

Só falta falar da “nuvem” (risos). Esta coisa de “nuvem” eu não entendo muito bem não (mais risos). Consigo até enviar os meus arquivinhos para lá, mas nunca sei como revê-los. Você que é muito jovem, Lucas, se puder me ajudar com isso, ficarei muito agradecido.

Para terminar: vocês dois, além de bibliófilos e pesquisadores, também são poetas. Sei que ambos, ao longo da carreira, publicaram livros que hoje são de difícil acesso e que foram produzidos em edições restritas, artesanais e, por consequência, numeradas/assinadas. Como o fato de serem colecionadores interfere na atividade artística de vocês?

E.M.R. — No meu caso, não interfere em nada. Eu consigo escrever meus textos e colecionar ao mesmo tempo. Na verdade, o escritor se vale muito do colecionador, no sentido de escarafunchar a coleção juntada pelo segundo, buscando ideias para os projetos pessoais.

A.C.S. — Não creio que haja colisão entre as duas práticas; vejo, antes, harmonia e complementaridade. O bibliófilo alimenta o escritor, fazendo-o conhecer centenas de poetas, entre oficiais e clandestinos. O poeta, por seu turno, já homenageou o bibliófilo, neste soneto publicado em Todos os ventos (Nova Fronteira, 2002):

Com todo o amor de Amaro de Oliveira.
São Paulo, 2 de abril de 39.
O autógrafo se espalha em folha inteira,
enredando o leitor, que se comove,

não na história narrada pelo texto,
mas na letra do amor, que agora move
a trama envelhecida de outro enredo,
convidando uma dama a que o prove.

Catharina, Tereza, Ignez, Amália?
Não se percebe o nome, está extinta
a pólvora escondida na palavra,

na escrita escura do que já fugiu:
perdido entre os papéis de minha casa,
Amaro amava alguém no mês de abril.