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Entrevista com Keila Simpson

Isola, Christiana Moraes.

Uma das muitas dificuldades da política no Brasil é a falta de renovação de quadros e, em decorrência, uma pauta afastada das reivindicações dos movimentos sociais. Além disso, o clima político brasileiro é muito hostil ao feminismo, à pauta LGBT e, mais especificamente, aos direitos das pessoas trans. Como vocês se organizaram para fortalecer novas lideranças, apesar do sistema e do ambiente político?

Keila Simpson — Concordo que a falta de renovação política no Brasil é uma coisa que se observa ano após ano, eleição após eleição. Mas nesses últimos tempos, além de não ter havido renovação, vem ocorrendo um acirramento muito forte das divisões. Tem um recrudescimento das violências, especialmente no que concerne à população LGBT, e isso tem feito com que muita gente se mobilize. As pessoas estão compreendendo que a participação política e, de fato, a participação na política partidária é uma possibilidade de trazer esse debate à tona, de encontrar caminhos para erradicar, minimizar mesmo que seja um pouco, essas violências que aí estão. E por isso a participação efetiva da população LGBT, a cada ano, na política. Muitas das pautas das candidaturas do campo LGBT, que é mais alinhado com o pensamento mais à esquerda, dialogam muito com as demais pautas de costumes do Brasil, o feminismo e todas essas pautas que vêm nesse bojo. Então, são muito importantes, sim, essas candidaturas e o aumento delas é bem significativo.

A que vocês atribuem o sucesso eleitoral da população trans nessas eleições municipais, fato que não havia acontecido no cenário político brasileiro ao longo de mais de 30 anos de redemocratização?

K.S. — Desde 2016, quando iniciamos os primeiros estudos, acompanhando um pouco essas candidaturas, tínhamos em mente que a população carecia e carece ainda de uma formação específica no campo político e de um entendimento de outros movimentos articulados, e que esses mandatos, muito embora no campo do município, individual, reverberam o coletivo, porque são as primeiras pessoas a ocuparem cadeiras legislativas. E ficamos, então, pensando e construindo estratégias para fortalecer essas pessoas. Primeiro, para não desampará-las no momento do acirramento da violência, como já aconteceu com várias ameaças de morte dirigidas às candidatas eleitas. Depois, no decorrer do mandato, quando da efetiva atuação parlamentar. Porque compreendemos que o acirramento vai acontecer, muitas vezes vai pender para desqualificar essas representações no âmbito do mandato parlamentar e estaremos lá preparadas para atuar de forma emergencial quando for necessário. Mas tentaremos, também, construir uma estratégia de formação política das eleitas com aquelas que pretendem ainda se eleger. Ou seja, é uma troca entre as que estão parlamentares e as que têm pretensões parlamentares, além de outras parcerias que possamos encontrar nesse caminho, como cientistas políticos, pesquisadores, para que juntos possamos continuar a formação desse movimento social, desejando que nas próximas campanhas eleitorais mais pessoas trans possam aparecer e disputar esse espaço político.

Quais são os planos para manter os mandatos conquistados articulados, mobilizados e vinculados com outros movimentos sociais?

K.S. — Não temos e nunca fizemos exatamente um movimento que pudesse ter e direcionar as pessoas para essa participação político-partidária. No que compete à Antra e a outras pessoas trans que atuam na organização, sempre primamos por promover empoderamento político em todas as suas vertentes, não somente partidária. Realizar empoderamento político do sujeito enquanto sujeito, dialogando bastante com as pautas feministas, para que cada pessoa pudesse, então, ter à mão um discurso muito bem estruturado em suas ideias e pronto nas formas de atuar. A consequência disso é que essas pessoas, a partir do momento que foram se apoderando mais desses discursos e dessa forma mais atuante do movimento organizado, penderam para a política partidária, que é um campo importante, interessante, onde há um debate de ideias constante. Para nós, foi muito importante observar e poder compreender que uma semente plantada lá atrás, sem nenhuma pretensão específica, acabou resultando nessa forma mais acirrada de atuação das pessoas LGBT, especialmente a população trans. De terem buscado na política, nesse campo político-partidário, o lugar para trazer à tona o nosso debate, pois compreenderam que essa participação efetiva na política, também, era um instrumento importante para resguardar as suas vidas, a sua segurança e os projetos que elas têm em mente para melhorar as cidades dentro da plataforma política que cada uma apresentou.

Quais são os maiores desafios para sustentar a renovação das pautas?

K.S. — As pautas estão em constante renovação. Elas se renovam porque vão aparecendo demandas importantes no decorrer desse processo, mas pautas antigas também continuam presentes. Tanto é que a questão do assassinato e da inclusão social, que são temas recorrentes, estão sempre na ordem do dia. Outras vão aparecendo e surgindo no decorrer do processo. Nesse momento de recrudescimento da violência, nessa quase que oficialidade da violência contra a população LGBT e trans por parte do governo federal, estaduais e até municipais, é preciso, sim, manter essas pautas na ordem do dia. É interessante pensar que com a chegada desse número de pessoas nos parlamentos, obviamente, surgirá uma pauta nova. A questão de gênero já se apresenta como algo muito intenso nesse processo e estamos debatendo isso. Um dos ataques mais comuns que encontramos nas redes sociais contra as candidatas mulheres trans e travestis eleitas é em relação a gênero, trazendo a questão do binarismo, chamando essas pessoas por termos masculinos, chamando de homens. Então, essa é uma pauta que vai permear todo o mandato dessas trans eleitas no último pleito municipal. Com relação a outras pautas que possam surgir no decorrer do processo, teremos que aprender a trabalhar com elas. A Antra tem feito isso, ou seja, não deixar que pautas que atraem polêmica sejam visíveis apenas para projetar um político desconhecido que ataca uma pessoa LGBT ou trans com intuito de se tornar popular, o objetivo é não dar tanta vazão a essas publicações e atuar de forma muito enérgica quando houver uma violação de direitos, mas sem dar a repercussão almejada pelo ofensor. Pois o que desejam é, exatamente, a repercussão de uma declaração ou ação, com a intenção de confronto com a população trans e LGBT. Muito dessa atuação é para ganhar holofotes, e uma parte de nós continua contribuindo para isso ao compartilhar essas ações pelas redes sociais, realizando o que a pessoa quis quando lançou a nota ou quando a idealizou. A gente tem que aprender um pouco a trabalhar com isso, também, a não dar essa visibilidade toda que essas pessoas procuram com essas ações e atuar no âmbito jurídico. Processar e fazer com que essa pessoa responda judicialmente. Isso, no entanto, não exclui a importância de rechaçar essas ideias, porém sem popularizar o agente da provocação.

Uma das acusações que persistem contra as candidaturas de pessoas negras, pessoas trans e mesmo de mulheres é que são representações identitárias com compromisso exclusivo com temas próprios, como se esses temas não integrassem o conjunto de problemas da sociedade brasileira. Como enfrentar essa acusação?

K.S. — Acho que para enfrentar essas acusações, ou seja, de que as pautas da população negra, LGBT ou pessoas trans se limitam a temas próprios, é muito importante ter em mente que outras candidaturas eleitas desse espectro estão atuando em algumas partes do parlamento e não exclusivamente para esse mundo, para esse movimento, nesse universo. Atuam no campo político a partir da plataforma com a qual foram eleitas. Se for no parlamento municipal, então, atuam na comunidade, no município, cumprindo as funções de fiscalizar a prefeitura: as obras municipais, o saneamento básico, o transporte público etc. Essas pessoas podem e devem se comprometer com esses problemas tão comuns às cidades. Obviamente que se uma pessoa trans está no parlamento e ela tem um trânsito dentro do movimento trans ou conhece de fato a dificuldade que esse movimento enfrenta e a diversidade na qual vivem, ela pode e deve fazer alguma coisa para essa população. Mas esse não é um mandato da população trans, da população negra, que vai atuar somente para esse campo. O projeto dessa candidatura é atuar para a comunidade, trabalhando de modo mais amplo ações coletivas e não somente defendendo uma pauta identitária. Esse discurso de acusação do identitário vem muito carregado, em minha opinião, de uma desqualificação dirigida de modo específico. Ninguém questiona quando um parlamentar eleito a partir de outros campos identitários — inclusive carregando essa referência, por exemplo, pastor, policial ou militar — atua para suas comunidades particulares, sequer se considera isso na análise do exercício parlamentar durante o mandato. Por que, então, o questionamento dirigido à população negra ou LGBT como se a priori essa população fosse trabalhar apenas para esse espectro de pessoas? Entendo que se trata muito mais de polemizar um espaço já bastante tensionado e, também, de criar controvérsias dentro de uma coletividade que vem sofrendo estigma da sociedade, mas que, agora, ascende ao parlamento. E uma parte desse parlamento vai tentar imprimir esse estigma trazendo à tona essas discussões, tentando relacionar o desempenho dessas candidaturas, unicamente, com essa questão identitária.

Dito de outro modo: a pauta identitária em si é suficiente ou é preciso que esteja comprometida com valores do campo progressista?

K.S. — A pauta identitária é importante, mas ela não pode se tornar a única demanda nesse campo e, especialmente, no momento político que vivemos no Brasil. Mas esse corpo que adentra os parlamentos municipais é um corpo estranho, um corpo que não tem um lugar. Como é que esse corpo vai transitar nesses espaços que são extremamente machistas, que são extremamente misóginos? Como é que esses corpos trans se movem dentro desses espaços? Essa marca é muito importante e deve se fortalecer em cada uma das pessoas que lá estão, porém sem abandonar jamais as pautas progressistas, pois são essas pautas que vão sustentar de fato os mandatos atuais e futuros das pessoas trans. As pautas progressistas defendidas pelas pessoas trans precisam estar presentes cotidianamente. Temos um exemplo muito positivo no parlamento estadual de São Paulo, a deputada Erika Malunguinho. É um mandato como esse que tem que ser desenvolvido. Talvez não com essa mesma força, com essa mesma raiz que tem a Erika, mas que seja pelo menos focando nesse caminho, dentro do campo progressista, como dissemos mais de uma vez: “Não basta ser candidata política trans, é preciso ser trans e, também, defender as pautas progressistas”. Porque se não é uma campanha progressista, no nosso entendimento, não vai adiantar muito. Uma pessoa trans que está se elegendo, como algumas que se elegeram, e não atuam no campo progressista… Sentimos muito por essas pessoas. Tomara que um dia elas caiam na real, venham para esse lado e compreendam que é só a partir daqui, desse reconhecimento, desse campo, desse espectro político, é que vai haver, de fato, uma modificação para que outras pessoas possam chegar a esse espaço, estar nesse lugar, estar nessa disputa para que a gente possa, sim, prever um futuro melhor para as pessoas trans no Brasil.