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Entrevista com João Adolfo Hansen

João Adolfo Hansen. Foto: Alexandre Tinoco.

Professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e autor dos livros Alegoria: construção e interpretação da metáfora, A sátira e o engenho — Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, O o — A ficção da literatura em Grande sertão: veredas, dentre outros, João Adolfo Hansen reflete sobre os limites da literatura, as crises políticas, memória, biografia e a vida das plantas. Nesta conversa, Hansen recupera o papel político do professor na acepção mais ampla do termo: o professor que, através do turno da noite lidou com a realidade brasileira de textos, dentre outros, os de Machado de Assis, Graciliano Ramos e Drummond em interpretações nos limites da experiência dos estudantes. Ao mesmo tempo, ele faz incursões em obras e autores das mais diversas épocas: de Dante a Beckett, da poética e dos tratados retóricos a Salambô, Michel de Certeau ou Foucault. A generosidade e a memória de João Adolfo Hansen nos convida a pensar no papel do professor de literatura aquém e além dos muros da universidade.


Eduardo Jorge de Oliveira — Começando por assuntos mais presentes nos debates atuais, discursos de ódio e fake news e manipulações algorítmicas no espaço digital que possuem um efeito nefasto para as democracias, como manter ou recuperar uma dimensão retórica no espaço público em que a literatura assuma uma vocação política no sentido mais amplo do termo?

João Adolfo Hansen — Acredito que já faz algum tempo, pelo menos desde o final dos anos 1980, a literatura não tem mais o sentido que já teve de Bildung, de formação-ilustração-educação-informação-crítica-documentação-condução-civilização dos indivíduos na (de)ordem burguesa. Quando tinha 18 anos, isso já faz 60, todo sábado comprava o Estadão para ler longos e densos textos de críticos como Antonio Candido, além de textos modernos de prosa e de poesia, com que aprendia muitas coisas. À direita e à esquerda, principalmente à esquerda, a literatura era uma intervenção crítica, tendo o sentido político fundamental de figuração das grandes questões que, desde o Primeiro Reinado, no século XIX, impedem a vida plena de todos no país. Aprendi muitíssimo com a literatura, acredito que ainda mais, muito mais do que aprendi com minha educação formal no ginásio, no curso clássico e na Universidade. Por aqui, a literatura teve essa função, acredito, até pelo menos os anos 1980. Desde o início dos 1990, ela se tornou coisa secundária e descartável com o chamado “pós-moderno”. E, quando chegou o computador e com ele a internet e as redes sociais e a enorme tagarelice inconsequente, ela se dissolveu, tornando-se mais um mexerico do Facebook, entre outros. Quando era moço, a questão era: Quem é o poeta? A resposta: Drummond. Quem é o romancista? A resposta: Machado, Graciliano, Rosa, Lispector. E também Malcolm Lowry e Beckett e Borges e Cortázar e mais uma meia dúzia de críticos da vida porca. Com esses, a gente aprendia coisas fundamentais sobre a barbárie brasileira e a miséria humana em geral. Com eles, a gente tinha o desejo de mudar tudo. Com eles, também, a gente aprendia que a vida é de tal modo complexa e complicada que é preciso ser prudente etc., mas nunca covarde.

Hoje, tempo de fascistas evangélicos a serviço do grande capital, as ações do capitão de milícias que ainda está na presidência não tem Manuel Antônio de Almeida que as conte. Elas não valem nada porque o tipo é um desclassificado. E seria preciso contá-las? Agora tudo aqui é chinfrim, merda e cor de merda e fedor de merda e valor de merda e mais-valia de merda, qualquer literatura fica sempre aquém, sempre derrotada pela realidade. Ninguém a ouviria porque, como no verso de T. S. Eliot, todos vão distraídos da distração pela distração. A internet é uma praga que produz a desmemória total de tudo e de todos. Antes de tudo, a desmemória de si mesmo, supondo que isso, “si mesmo”, tenha existido alguma vez. Por isso, me parece só utópica a ideia de recuperar e/ou manter uma função utópica da literatura. Qual é a utopia a ser proposta hoje? Evidentemente, sempre é possível escrever poesia e prosa que neguem a barbárie fascista e a porcaria da vida subordinada à gentalha lumpen do desgoverno do país. A gentalha vai da alta classe dos burgueses empresários e banqueiros e financistas até o pé-de-chinelo carregador de pacote na feira-livre, pois a coisa efetivamente democrática é a baixaria. Assim, mesmo que a poesia e a prosa contra fossem lidas, o que ia ocorrer? A palavra “cão” não morde.

Marcela Vieira — Além das disputas ideológicas que estão hoje em jogo, e que tornam a discussão francamente polarizada, parece-nos haver também uma disputa em termos da apropriação da própria linguagem. Penso, neste momento, no próprio termo “democracia”, que parece estar em pauta tanto do lado conservador quanto do lado mais progressista, ambos os grupos saindo em sua defesa, e agindo “em seu nome”. Você poderia discorrer um pouco sobre essa “maleabilidade” da língua?

JAH — Hoje li na Folha de S. Paulo o texto de um secretário bolsonarista fascista, secretário da presidência fascista, que escreve contra um jornalista que publicou um texto declarando seu desejo de ver Bolsonaro morto. O secretário defende seu dono lembrando que o desejo do jornalista não é democrático. Diz isso defendendo Bolsonaro, que é um fascista notório, e o governo Bolsonaro, que é antidemocrático. Diz ainda que o discurso do repórter é discurso de ódio. O chefão do secretário prestou homenagens a Ustra, degenerado fascista que punha ratos vivos na vagina de mulheres que torturava. O texto do secretário saiu no mesmo dia em que o Facebook eliminou mais de 70 sites produtores de discursos de ódio contra os poderes legais da República. O texto do secretário evidencia a mais radical corrupção das palavras. O secretário é tão fascista quanto o chefão dele. Não diria que há maleabilidade da língua, pois ela evidentemente é maleável; diria sim que há usos honestos e usos corruptos dela. Mikhail Bakhtin lembrou bem: a língua é uma estrutura simbólica que tem o mesmo valor semiótico para todo o grupo que a fala; nos usos particulares, numa sociedade de classes como a brasileira, o semiótico fica semântico, ou seja, assume a significação particular da situação e posição de classe do usuário. Quando é um fascista que fala, como o presidente ou o seu secretário, a significação particular da fala é fascista. E assim vai.

EJ — Esta pergunta gira em torno da alegoria, sobre a qual o senhor é autor incontornável para essa questão (Alegoria: construção e interpretação da metáfora). Justamente nesses tempos, não estaria sendo desvelada uma dimensão alegórica de uma série de clichês que ocorrem no âmbito nacional?

JAH — A dimensão alegórica é metafórica, ou seja, tem duplo sentido. Acredito que nesses tempos em que a ralé lumpen governa e toma a palavra não há nenhuma ou praticamente nenhuma dimensão alegórica nos usos do discurso, porque eles são sexo explícito, pornografia, vamos ao que interessa, a mais radical literariedade etc. Como dizia um alemão nazista imitado por um espanhol fascista imitado por um italiano fascista imitados por milicos brasileiros fascistas, quando me falam de cultura, saco o revólver.

Obviamente, muitas fórmulas dessa situação são metáforas e, quando metáforas continuadas, alegorias. Mas metáforas e alegorias muito claras, de significação e sentido evidentes, grosseiros, autoritários, fascistas.

Júlia de Carvalho Hansen — Minha posição aqui talvez seja mais biográfica do que de propor questões abstratas. Mas, quero tentar: podemos falar um pouco sobre a memória? Qual você acha que é o lugar da memória nas disciplinas que seu trabalho articula, isto é, entre a história e a literatura?

JAH — Sua pergunta é muito boa. Me diga se respondo como você espera, legal? Vamos lá. A memória não tem lugar principal na literatura moderna feita desde o século XVIII. Desde os primeiros românticos alemães e ingleses, e pelo menos até o final do século XX, o que houve nas artes foi uma revolução permanente das formas caracterizada sempre pela negação do imediatamente passado e, assim, da memória. Era do futuro que vinha o vento da revolução e era para o futuro que as artes modernas apontavam utopicamente, negando a porcaria da vida administrada pelo capital. No final dos anos 1980, quando tinha ficado chato ser moderno e eu não podia ser eterno e não queria ser pós-moderno, resolvi estudar coisas que não conhecia ou conhecia mal, as práticas artísticas anteriores ao século XVIII. Fui estudar a poesia atribuída a Gregório de Matos e Guerra e foi aí que, devido à fundamentação retórica de todas as práticas artísticas do século XVII baseadas mimeticamente na memória das autoridades de cada gênero, a dimensão da memória se evidenciou absolutamente central. Nesse sentido, diria que a memória é fundamental nas artes produzidas, digamos, desde os gregos do tempo de Péricles, aí pelo século IV a. C., até à primeira metade do século XVIII, na Europa e nas extensões europeias das Américas. A partir da segunda metade do XVIII, a revolução romântica destruiu ou pôs de lado as artes anteriores. A partir do Romantismo, tudo o que o artista cuspia era arte e a arte passou a ser independente da memória, que foi confundida não só com a tradição, mas com o tradicionalismo. Além disso, desde o Romantismo, as artes produzem obras que devem ou deviam ser originais, não se admitindo repetição, que era o que justamente caracterizava as artes feitas desde os gregos até à segunda metade do século XVIII como repetição diferencial de todo o sistema das autoridades de cada gênero, ou seja, a memória dos gêneros. Lembremos o Romantismo e Victor Hugo: não há regras nem modelos. Ou seja, abaixo a memória, etc. Será que respondi?

EJ — Em Arte da Aula (org. Denilson Soares Cordeiro e Joaci Pereira Furtado, Sesc Edições 2019) seu depoimento é emocionante. Sem buscar retomá-lo aqui na íntegra, algumas faíscas saltam: a dimensão historiográfica da literatura e o tempo da aula. Como lidar através “desta matéria em movimento” que é a aula, como o senhor muito bem definiu, com um panorama luso-brasileiro a ser vislumbrado também no calor da hora?

JAH — Essa matéria em movimento, que é a aula, é radicalmente contingente, sujeita a todos os imprevistos. Não sei se hoje há possibilidade ou pelo menos interesse em algum panorama luso-brasileiro. Isso porque as práticas de escrita são cada vez mais singulares e fragmentárias e não há nenhuma unidade, digamos, “brasileira” da ficção e da poesia, menos ainda unidade ou unificação luso-brasileira. A ignorância de ambos os países é recíproca — com poucas exceções, Portugal ignora o Brasil que ignora Portugal etc. Nesse sentido, não sei bem o que seria o panorama luso-brasileiro de que fala. Obviamente, sempre é possível fazer alguma relação entre autores e obras daqui e de lá. Mas ela não poderia ter a pretensão de ser totalizante e definitiva, mas só a de ser relação feita de passagem.

MV — Entendemos, nos dias atuais, que a Universidade possa ser um lugar de esperança e de transformação, ainda que estejamos na contracorrente da ideologia vigente na atual gestão do país. Qual tem sido o desafio do professor universitário no tempo presente?

JAH — Há muitos desafios. Tantos que muitas vezes parece que só há desafios. Antes de tudo, as condições de trabalho. Por exemplo, na universidade pública paulista, os governos tucanos que sempre foram e são corruptos e só interessados em educação quando ela é privada. Nas universidades privadas, o radical mercenarismo dos proprietários. Por exemplo, doutores obrigados a trabalhar com o salário miserável de mestre. E mestres sendo demitidos. E o pouco ou o nenhum interesse pela cultura. A burguesia brasileira é radicalmente analfabeta, ignorantona, crendo que o talão de cheque compensa o buraco. A classe média brasileira também é analfabeta, politicamente ignorantíssima, fascista. O povão idem, sem as batatas. E agora, assistimos ao o desmonte de toda a educação nacional operado pela ralé lumpen de Bolsonaro e de empresários. O ex-ministro da Educação, esse que fugiu do Brasil há pouco pra não ser preso, é um asno fascista ignorantíssimo como o capo miliciano dele. Outro foi indicado recentemente como ministro e era um falsário que felizmente já caiu fora. Não há nenhum e os que há são gentinha disposta a destruir a educação pública, ou por razões ideológicas, por exemplo obedecendo a diretivas de religiões de TV interessadas no dízimo dos fieis, ou por razões comerciais da iniciativa privada e da burguesia riquíssima, e não menos ralé. Nesse sentido, o professor universitário vai ter sorte se trabalhar na universidade pública, onde ainda existe alguma organização contrária ao fascismo. Nem sempre há, infelizmente. Se trabalhar numa empresa privada, vai pra rua se abrir um pouco mais a boca. O Brasil infelizmente não é um país sério, a educação não é prioridade do desgoverno atual e a passividade geral nos torna asnos ou cornos mansos.

JCH — Não faz muito tempo, um aluno seu me procurou, perguntando se eu já teria percebido que a maior parte dos seus orientandos de hoje e também do passado são negros, mulheres, pessoas vindas de classes sociais baixas e LGBTs. Disse que outros orientandos seus comentavam isso entre si. Não, eu nunca tinha notado isso, mas percebendo bem, ele tem razão. Estas escolhas se deram de maneira consciente e política?

JAH — Pra lhe dizer a verdade, Júlia, nunca percebi isso porque nunca prestei atenção na cor das pessoas e na opção sexual dos alunos que tive. Você sabe, sempre me dispus à discussão e à crítica e também sempre fui totalmente aberto ao estudo de temas politicamente polêmicos ou reprimidos. Por isso mesmo, pode ser que tenha atraído alunos proletários, LGBTs, negros etc. No noturno da USP, 99% dos alunos que tive eram trabalhadores, em geral pobres, que estudavam com muita dificuldade, diferentemente dos alunos do diurno, classe média e burgueses. Muito tempo atrás, substituí no curso diurno um colega que tinha ficado doente. Os alunos eram gentis e simpáticos, mas não tinham a experiência da realidade brasileira que os alunos do noturno tinham. Muitos ainda eram meio infantis, como crianças mimadas, e um tanto quanto inconsequentes de classe média. Tudo bem, eu sempre pensava, não estou aqui para disciplinar ninguém, um dia vão crescer. Suponho que cresceram.

Agora, você sabe, a literatura brasileira que vale a pena é justamente a daqueles autores que sabem o que é a realidade brasileira, a barra pesada que são as coisas brasileiras, a dureza e a tristeza que são as coisas por aqui, como Machado de Assis, Graciliano, Drummond. Há outros, mas esses três são fundamentais. Sempre achei mais fácil — mais fácil para mim, não para os alunos — tratar deles com alunos do noturno. Independentemente de conhecerem as questões historiográficas, estéticas, literárias etc. os alunos do noturno conheciam já, sem tê-los lido, muito do teor do sofrimento, da exploração, da miséria e da resistência contra a barbárie das experiências figuradas na literatura deles. Um saber só de experiência feito, entende? De modo geral, os alunos do noturno eram pobres, duros, com deficiências na formação etc. etc. e os que eu conheci sabiam o quanto lhes custava estudar, valorizando muitíssimo o estudo na universidade pública, com grande consciência da coisa pública. Por isso, sempre gostei muito de dar aulas à noite. Diria que sempre preferi dar aulas à noite. Acredito que isso também explica alguma coisa do que você me diz sobre alunos que foram meus orientandos, não sei bem.

EJ — Pouco a pouco os nomes de autores vão surgindo ao longo desta conversa. Justamente em referência ainda à Arte da aula, o primeiro autor que aparece é Drummond. Qual seria o peso dele para a cultura brasileira?

JAH — Drummond é um poeta que tratou de tudo o que há pra gente pensar sobre a vida e a vida no Brasil, sem frescura, sem afetação, sem bairrismo, de modo totalmente honesto, cru e duro, falando do passado, do presente e do futuro do país em sua poesia. Pra mim, ele é o maior poeta que temos e um dos maiores de todos os tempos que há. A poesia dele não é um deslizar de lancha entre camélias e, lendo Drummond, e só Drummond, alguém pode ficar sabendo de tudo o que há pra saber de fundamental sobre o Brasil. Não é pouco. A enunciação dos poemas dele é personalíssima, individualizadíssima, ao mesmo tempo, enunciação coletiva, a única enunciação coletiva da literatura brasileira, mesmo em Rosa, que pedia sempre um grande sertão dentro dele, isso é raro. E Drummond tem uma solidariedade total com o que é pequeno, abandonado, frágil, precário e esquecido. Os farrapos da história, o baú dos vencidos, a total luta contra a barbárie, sempre “com o russo em Berlim”. Ao mesmo tempo, a autoconsciência da impotência que o indivíduo isolado tem de mudar as coisas — “apenas duas mãos e o sentimento do mundo” e “meu ódio é o melhor de mim”. E, ainda, a memória, a história, tudo o que há pra saber do país e sobre o país, Drummond compêndio, Drummond lição de coisas, Drummond negação. Minha relação com a poesia dele é mais, muito mais que profissional, de professor de literatura. É relação de agradecimento, de alegria, de reconhecimento, de cumplicidade com a resistência do que é pequeno e que vive, como aquela flor feia que nasceu na rua. Ele sempre me comove muito. Ele é um autor fundamental. Eu diria que ele é toda uma literatura e que a enunciação dos poemas dele não é apenas individual, mas coletiva, uma enunciação coletiva. Isso é absolutamente formidável, nos vários sentidos do termo.

MV — Ao longo dos séculos, muda-se o enfoque de recepção social de um “autor maldito”, como Gregório de Matos? Qual a importância de leitura de um poeta como Gregório hoje?

JAH — Minha resposta vai ser longa, espero que o tédio não seja muito grande e intenso. Vamos lá. Antes, vou falar sobre como cheguei ao Gregório. Depois, algumas outras coisas. Em 1984, quando me inscrevi para o doutorado, tendo por orientador o prof. dr. José Carlos Garbuglio, que tinha sido meu orientador de mestrado, pensava em estudar a visualidade das imagens da poesia de Murilo Mendes e suas relações com a pintura surrealista e cubista. Achava fundamental relacioná-la com a pintura de Ismael Nery, que vivia em casa de um amigo marchand de artes. Foi, aliás, o projeto que apresentei para a contratação na USP como MS2. Em algumas viagens ao Rio, fiz o levantamento de cartas do poeta existentes no arquivo do CPDOC, na Fundação Getúlio Vargas, e de outros textos dele e de intelectuais, poetas e artistas católicos dos anos de 1920 e 1930, como Jônatas Serrano, Jorge de Lima, Ismael Nery, Alceu Amoroso Lima e Jackson de Figueiredo, principalmente na Revista A Ordem, do Centro D. Vital, do Rio de Janeiro, além de textos de Ismael Nery sobre o essencialismo e mais alguns de Adalgisa Nery, básicos para relativizar e situar criticamente a atribuição imediata de “surrealismo” à sua poesia. Pensava tratar da concordia discors do “estado de bagunça transcendente” figurado em um de seus primeiros poemas, “Mapa”, relacionando-a com as técnicas surrealistas e cubistas, a mística cristã e as práticas de agentes católicos conservadores, muitos deles de direita e extrema-direita, críticos do dinamismo futurista dos modernistas de São Paulo, empenhados de nos anos 1920–30 na moralização das massas trabalhadoras do Rio de Janeiro. Mas desisti. Não por dificuldade teórica ou analítica, mas por fidelidade ao vivido. Tendo sido “absolutamente moderno” em 1968, sabia que a modernidade não admite repetição canônica. Tinha feito um mestrado sobre Rosa. Guimarães Rosa e Murilo Mendes são autores de obras obviamente diversas, mas, supondo que ambos se inscrevem no magnífico projeto moderno de crítica da realidade administrada, hoje arquivado e esquecido na troca neoliberal com o fim declarado das utopias políticas, acreditei então que um doutorado sobre a poesia de um chegaria a resultados cujos pressupostos estético-políticos seriam praticamente idênticos àqueles a que tinha chegado no mestrado sobre Rosa.

De todo modo, já em meados dos anos 1980, como tinha ficado chato ser moderno, mas como não queria ser eterno ou pós-moderno, pensei que seria politicamente estratégico estudar algo que conhecia mal e que na USP era, e hoje permanece sendo, quase desconhecido e relegado ao sono vil do esquecimento frio, como dizia outro, devido à posição mais que secundária das letras antigas nos estudos sociológicos uspianos de Letras, herdeiros e reprodutores da teleologia romântico-nacionalista do século XIX. Resolvi estudar a poesia satírica atribuída ao seiscentista Gregório de Matos e Guerra e a questão do “barroco”. Era um novo mundo apenas entrevisto nos longes da minha ignorância, que então era maior que a de agora.

Estudar esse mundo abolido parecia-me, então, um modo eficaz de tomar posição nas questões críticas do presente. Entre 1984 e 1987, um dos maiores obstáculos que enfrentei foi a miséria bibliográfica. Nesse tempo, não havia computação ou internet e o acesso a documentos e a textos e a livros do século XVII era extremamente difícil aqui nesse grande sertão. Conhecendo a Poética e tendo noções da Retórica e de algumas de suas apropriações latinas, como o Ad Herennium, alguns textos de Cícero e a Instituição oratória, de Quintiliano, julgava então, em minha ingenuidade silvestre, serem bastantes as informações de que dispunha. Obviamente, não eram. Depois de classificar os mitemas de narrativas indígenas sul-americanas, Lévi-Strauss isolou suas funções narrativas, escrevendo-as em cartolinas, que pendurou serialmente em dois varais paralelos em um salão do Musée de l’Homme. Observando-as de uma ponta do varal, ele teve a visão especializada e sistêmica da estrutura dos mitos. Com autoironia, resolvi fazer algo semelhante, mas reduzido às minhas proporções brasileiras de bugre letrado das baixas latitudes: resolvi classificar alfabeticamente, em 12 cadernos de 300 páginas cada um, tópicas retóricas, temas do referencial da Bahia, léxico, formas fixas, tipos de versos, rimas, espécies de metáforas, espécies de antíteses, quiasmas, hipálages etc., para obter informação sobre a frequência e as variações elocutivas deles na poesia atribuída a Gregório. De “Abaeté” até “Zoilo”, fichei os sete volumes da edição dos códices Rabelo da poesia atribuída a Gregório, feita em 1968 por James Amado e Maria da Conceição Paranhos. Ao mesmo tempo, tentei conseguir, em sebos de São Paulo e do Rio, em reservados de bibliotecas públicas, com empréstimos, com importações da Livraria Francesa e da Livraria Italiana, com o seu Jaime Marcelino Gomes, o vendedor de livros que foi um dos maiores agentes de difusão cultural na Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP, com encomendas a amigos que viajavam ao Exterior etc., os principais tratados retóricos, poéticos e políticos, quinhentistas e seiscentistas, como os de Lodovico Castelvetro, Scalígero, Torquato Tasso, Baldassare Castiglione, Giovanni della Casa, Lomazzo, Francisco de Holanda, Cesare Ripa, Baltasar Gracián, Emanuele Tesauro, Sforza Pallavicino, Matteo Peregrini, Francisco Leitão Ferreira etc., que circularam na Península Ibérica e nas colônias portuguesas e espanholas nos séculos XVI, XVII e XVIII, para conhecer as doutrinas teológico-políticas e retórico-poéticas do tempo da poesia que começava a estudar, além de documentação sobre o Estado do Brasil no século XVII, por meio de documentos do século XVII editados pela Câmara Municipal de Salvador. Mais tarde, viria a conhecer Francesco Colonna, Giulio Camillo, Giovanni Andrea Gilio, Carlos Borromeu, Borghini, Della Porta, Boccalini, Justo Lípsio, Agrippa, Otonelli, Torquato Accetto, Possevino, Athanasius Kircher, Giovio, Alciato, Valeriano, Horapolo e outros, que por sua vez me remeteriam a novas leituras dos antigos, principalmente de Aristóteles, Cícero, Horácio, Ovídio, Quintiliano, Tácito, Aftônio, Hermógenes, Demétrio de Falero, Dionísio de Halicarnasso, Sêneca, o filósofo, Sêneca, o reitor, Marciano Capella, Geoffroy de Vinsauf e os Rhetores Latini Minores, da edição Carolus Halm, de 1863, fundamentais para determinar a estrutura, a função, a comunicação e o valor dos estilos seiscentistas.

No caso da doutrina teopolítica do Estado monárquico português, procurei principalmente pelo jesuíta Francisco Suárez e suas obras decisivas, De legibus, Defensio FideiConselhos e Pareceres, em que fundamenta, define e sistematiza a doutrina católica do "pacto de sujeição", especificando a natureza político-jurídica da subordinação dos súditos ao monarca, que sempre é tema e princípio doutrinário da ordenação pragmática dos processos de interlocução dos regimes discursivos do século XVII luso-brasileiro. Para entender historicamente o antimaquiavelismo das práticas de representação desse tempo, foi fundamental ler Da razão de Estado, do jesuíta Giovanni Botero, que combate o princípio da “guerra de todos contra todos”, típico da astúcia e da força do “príncipe novo” do florentino, prescrevendo a tópica do “interesse”, que está na base do mercantilismo português e que integra os estamentos e as ordens do Reino no todo do “bem comum”. Assim como me foram úteis Jerónimo Osório, Sebastião César de Meneses e outros autores dos séculos XVI e XVII de tratados teopolíticos e textos de “espelhos de Príncipe” portugueses medievais, quinhentistas e seiscentistas. A obra de Kantorowicz, The King's Two Bodies; os textos de Jean-François Courtine sobre Suárez; os de Quentin Skinner sobre a Reforma e a Contrarreforma; os de LeRoy Ladurie sobre o Ancien Régime; os trabalhos de Jauss e Iser sobre a recepção e a leitura; vários procedimentos de crítica genealógica de conceitos da obra de Michel Foucault e a atenção à formalidade das práticas dos textos de Michel de Certeau foram absolutamente fundamentais para eu sistematizar as tópicas do “corpo místico do rei”, do “bem comum” e da dupla natureza do poder representadas nos textos satíricos atribuídos a Gregório de Matos e Guerra.

Quando escreveu Salammbô, Flaubert disse que é preciso estar triste para reconstruir Cartago. No caso da Cartago colonial, foram fundamentais para tornar minha tristeza ativa as discussões sobre história e historiografia com minha mulher, Marta Maria Chagas de Carvalho. Em 1987, ela defendeu um doutorado na sua área de trabalho, a História da Educação da Faculdade de Educação da USP, sobre a Associação Brasileira de Educação nos anos de 1920–30. Nele, pressupõe pioneiramente a materialidade e a formalidade das práticas de representação dos agentes históricos da Associação, entendendo-as não como meio neutro para atingir e representar o suposto real empírico pretotalizado e refletido nelas, mas como práticas simbólicas reais, constitutivas da realidade do seu tempo. Nesse momento, meu interesse pelas questões historiográficas foi decisivo. Fazia anos, eu vinha lendo autores como Lucien Febvre, Marc Bloch, Daniel Roche, Lawrence Stone, Peter Burke, Norbert Elias, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Paul Veyne, Michel de Certeau. E devo referir três amigos, cada um deles fundamental a seu modo para o trabalho: Peter Burke, Silvia Hunold Lara e Leon Kossovitch.

Acompanhei o curso de Peter Burke, do Emmanuel College, de Cambridge, sobre “Nova História”, fazendo sua tradução simultânea para o público, na Faculdade de Educação da USP, de 12 de agosto a 9 de setembro de 1986. Ficamos muito amigos e Burke me passou um dos textos que usou em uma aula, um dos cartelli infamante italianos, folhetos difamatórios que, no século XVII, eram afixados na igreja da Bucca della Verità, de Roma, além de um ensaio em que tratava deles, discutindo funções sociais do riso na Itália desse tempo. O poema que me passou tinha as mesmas tópicas epidíticas, os mesmos insultos, as mesmas obscenidades da sátira baiana do século XVII. Na vituperação do tipo satirizado, o personagem satírico alegava argumentos doutrinários idênticos e eram os argumentos católicos que eu encontrava. A leitura do cartello infamante evidenciou-me a possibilidade de tratar dos resíduos seiscentistas segundo outra perspectiva teórica, que considerava os estilos das obras como deformações particulares de modelos simbólicos supraindividuais e transnacionais então difundidos principalmente por meio das ordens religiosas, como a Companhia de Jesus. Com Silvia Hunold Lara, do Departamento de História da Unicamp, discuti, em 1986, a tese de doutoramento que ela vinha fazendo sobre o castigo exemplar dos escravos na região de Campos, RJ, no fim do século XVIII. Seu trabalho imprimia outra orientação teórica e política à análise da grande massa documental de cerca de dez mil papéis que ela havia levantado. A maioria deles são petições dirigidas às autoridades portuguesas em que os escravos demonstram iniciativas de negociação quanto à sua revenda para novos proprietários e quanto aos castigos, invalidando as teorias de explicação macrossociológica do escravismo que os reduzem à pura inação de “coisa” e “mercadoria” segundo a lógica fria das determinações econômicas. O trabalho de Silvia propunha o estudo da especificidade das práticas dos escravos, passando ao lado dos modelos sociológicos de interpretação que eram então também correntes nos estudos literários que reduzem a ficção à ilustração alegórica da infraestrutura social, como se a linguagem artística fosse mero instrumento para a documentação do Real. Mais decisivo ainda foi meu amigo, o prof. dr. Leon Kossovitch, do Departamento de Filosofia da USP. Já havíamos discutido seu doutorado sobre a retórica em Condillac. Ele tinha lido e criticado meus textos sobre a alegoria em Guimarães Rosa. Leu o esboço do meu texto sobre a sátira e o criticou com o humor e a liberdade do seu conhecimento amplo e refinado de história e das artes antigas. Emprestou-me estudos fundamentais sobre elas, como os de André Chastel, Paola Barocchi, Panofsky, Warburg, Francastel, Wind, Baxandall, Baltrusaitis e nos divertimos muito, discutindo a sátira e as outras matérias de gênero baixo, como a “vida acadêmica” da USP subordinada mais e mais ao arrivismo de puxa-sacos, ao bom-mocismo tucano e à produtividade neoliberal.

Tratei da poesia atribuída a Gregório segundo os condicionamentos e as estruturas do seu tempo, criticando as interpretações idealistas, românticas, modernistas, tropicalistas etc. que a folclorizam. O trabalho foi premiado com um Jabuti e, acredito, imediatamente esquecido. Na Universidade, continua-se a falar de “O barroco” e do poeta colonial revolucionário, vanguarda do proletariado tropicalista anarquista, Gregório de Matos etc. Digamos, assim, que hoje Gregório de Matos é o nome que se dá a uma matéria colonial difusa, e pouco conhecida, quando a poesia que põe em cena essa matéria é lida e apropriada e transformada em algo moderno e pós-moderno, liberal muitas vezes, outras marxista, muitíssimas vezes anarquista, como crítica dos privilégios, libertinagem e liberação e liberdade etc. etc. etc. sem nenhuma consideração pelo que ela efetivamente foi em seu tempo, ou seja, poesia de gênero cômico católica feita de cima para baixo, defensora dos privilégios aristocráticos de brancos letrados numa terra de índios, mulatos, negros, brancos, pobres, miseráveis e analfabetos como foi a Bahia na segunda metade do século XVII. Ou seja: há diversos Gregórios. Praticamente todos eles são folclore, macumba pra turista etc. Hoje, não sei se há leitores dele. Acredito que possa ter interesse histórico e antropológico. Obviamente, o mundo monárquico-absolutista do século XVII está morto. Não há mais a Inquisição, a Igreja Católica não mais queima judeus e cristãos novos e hereges. Acabou a escravidão negra. Os índios do século XVII foram exterminados. A Bahia do século XVII só existe em algumas igrejas e em pedras roídas. E aquele enorme mundo de práticas cortesãs ordenadas pela agudeza dos estilos da hierarquia etc. tudo aquilo é menos que pó. Assim, acho que essa poesia também tem interesse arqueológico. Hoje ela é como um fóssil do século XVII, coisa que daqui a uns 300 anos não sei se essa civilização norte-americana de plástico e internet vai ser. Mas vamos lá.

JCH — Gostaria que você contasse um pouco pra quem lê coisas que já sei. Por exemplo, que o seu profundo conhecimento de latim se deu também pela necessidade, já que você buscava trabalho depois de formado, e assim se tornou professor de latim. Outra história que gostaria de ler é sobre o interesse que você tinha em linguística quando era jovem, e que quase foi estudar na Rússia. Você poderia contar um pouco como se deu o seu percurso até se tornar professor de literatura brasileira na USP? E como você acha que esses estudos que não se tornaram nucleares nas suas pesquisas contribuíram para que você pudesse realizá-las?

JAH — Meu conhecimento de latim não é profundo, como você diz, mas só o que foi possível aprender no antigo curso clássico, depois na universidade e depois, ainda, como professor. Em Americana, interior de São Paulo, quando minha professora de latim do ginásio e do clássico se aposentou, se bem me lembro em 1964, não havia ninguém que a substituísse. Eu tinha acabado de fazer o curso de letras anglo-germânicas na Universidade Católica de Campinas e nele havia estudado latim. Não foi grande coisa o curso, o professor era medíocre, os alunos não tinham interesse e foi uma repetição do que eu já tinha estudado no clássico. Com a cara e a coragem, me candidatei pra ser professor, substituindo minha ex-professora, e fui contratado pra dar aula no antigo curso clássico, diurno e noturno, do Instituto de Educação Presidente Kennedy, de Americana. Vinha a São Paulo muitas vezes e comprava livros e livros de poetas e prosadores latinos e gramáticas históricas e mais gramáticas e dicionários de latim na Livraria Francesa e na Partenon, na Barão de Itapetininga, fazendo uma bela coleção que, com o tempo, se dispersou, porque emprestei e dei muitos dos livros.

Antes de entrar na Universidade, e durante os quatro anos do curso, até 1964, eu me interessei muitíssimo por linguística, comprando livros e livros e livros dos principais autores do campo. Pensava em terminar a graduação e ir fazer um curso de pós em Fonologia, no lugar então principal desse estudo, Tartu, na Estônia, na antiga União Soviética, comunista. Em 1964, o golpe militar e a repressão me fizeram ficar quieto. Os militares brasileiros eram, como são os de agora, extremamente ignorantíssimos e fascistas. Em 1964, um deles queria prender o autor de Electra em Porto Alegre. Ficou decepcionado quando lhe disseram que Sófocles tinha morrido uns 400 anos antes de Cristo. Eles prendiam quem tinha Dostoievsky em casa porque Dostoievsky era russo. Cavalgaduras. Fiquei quieto no meu canto e, em 1966, prestei um concurso pra ser professor secundário de Português. Passei em primeiro lugar e fiquei alegre, porque assim tinha trabalho assegurado e a possibilidade de fazer Pós-Graduação na USP, escolhendo uma cadeira num colégio qualquer de São Paulo. Na classificação geral, apesar de ter sido aprovado em primeiro lugar no concurso de ingresso no magistério, fiquei mais ou menos no 544º lugar, por aí, pois na classificação geral entravam todos os professores que já eram efetivos. Fui trabalhar em vários lugares do interior do estado de São Paulo, sempre tentando chegar a São Paulo pra entrar na USP. Quando isso foi possível, pedi demissão, fui trabalhar numa faculdade particular e dei aulas em cursinhos, em São Paulo, e, com isso, comecei a fazer pós-graduação na área de literatura brasileira na USP. Então, tinha posto de lado a fonologia, mas continuei seguindo o que saía sobre o assunto por aqui e no exterior, comprando livros de linguística, semiótica, e teoria literária. Por meio da linguística, me aproximei de estudos e textos franceses de Foucault, Derrida, Deleuze etc. e da psicanálise de Lacan. Quero dizer, com isso, que, quando fui professor de literatura brasileira na USP, sempre tive a referência do mundo greco-latino na cabeça, que é extremamente grande e múltiplo e, na minha opinião, fundamental; ao mesmo tempo, o conhecimento de linguística também foi uma possibilidade de discussão da retórica dos discursos literários e da materialidade da prática deles, passando por fora dos esquemas idealistas com que eles, em geral, eram e são tratados nos compêndios e ensinados na universidade e no ensino médio. Assim, desde que me formei na Universidade, em 1964, os discursos do mundo greco-romano, a linguística e a semiótica e os textos literários luso-brasileiros dos séculos XVI, XVII e XVIII e os brasileiros, a partir do século XIX, estiveram presentes sempre no que eu fazia.

Você me conhece e sabe que ainda gosto, hoje, de ler trechos da Eneida e poesia de outros grande poetas antigos, Píndaro, Homero, Ovídio, Catulo, Propércio, além de historiadores romanos, como Tácito e Tito Lívio. Quanto à linguística, faz tempo que desisti de acompanhar o que saía no campo, que se tornou enormíssimo e, depois de Chomsky, extremamente hiperespecializado, impossível de acompanhar. Quando fui professor na USP, fui doando para alunos que estudavam linguística muitos e muitos e muitos dos livros que tinha comprado sobre o assunto. Ainda tenho alguns deles, digamos, os clássicos, Saussure, Martinet, Jakobson, Troubetskoy, Labov, Chomsky etc. Estão lá, na minha estante, parados, não diria que esquecidos, mas parados. É isso, por aí, não sei se lhe respondi, depois você me diz.

EJ — Qual o impacto de Camões no nosso mundo contemporâneo, mesmo que ele não seja lido e citado, existiria uma sobrevivência da sua lírica e épica, como, por exemplo, “a máquina do mundo”?

JAH — Acredito que Camões não tem nenhum impacto no mundo contemporâneo. As referências épicas de Os Lusíadas estão mortas no mundo contemporâneo, que não é épico, mas, antes de tudo, hípico, mundo de cavalos e asnos que são montarias e asnos e cavalos cavaleiros. Como aqui, em que da alta burguesia aos miseráveis dormindo embaixo de pontes que apoiam o fascista da Presidência, tudo é lumpen, ralé. Quanto à lírica de Camões, também é difícil sua sobrevivência, porque praticamente ninguém mais a lê. Quem hoje está preocupado com a lírica de qualquer poeta que seja? Essa sociedade é fascista norte-americana de plástico. Obviamente, sempre há alguma sobrevivência esparsa de Camões, em referências aqui e ali em algum curso universitário e, provavelmente, em autores contemporâneos que possam se apropriar da poesia dele, citando-a, transformando-a. Mas hoje tudo é improvável, mais ainda aqui, terra arrasada de gente lumpen que governa e que é governada.

JCH — Você acha que escrever e dar aula são ofícios parecidos? O que os aproxima e o que os distancia?

JAH — Podem ser parecidos se consideramos que num caso e noutro se trata da palavra dando forma a uma matéria que é comunicada para um público. Mas são muito diferentes: escrever é sempre solitário, aberto e indeterminado, pois na escrita a consecução expositiva do discurso é o que importa, em termos lógicos de argumentação, demonstração e prova de alguma coisa, sempre expondo ou descrevendo e teorizando, citando, lembrando, inventando o discurso numa ordem aberta que é arbitrária e indeterminada a priori. etc. Escrever é sempre um gesto de um corpo singular, único, irrepetível em cada texto. Não se sabe quem é o leitor empírico que vai ocupar o lugar do leitor textual.

Quanto à aula, ela implica um público imediatamente presente e evidente, público que a fala constitui ao mesmo tempo como receptor de coisas que ignora e participante na construção de significados e sentidos. A aula é muito mais determinada pela matéria tratada, pelo tempo que se tem, pelo método de exposição, pelo público, pela quantidade e pela idade dele, pelas redundâncias necessárias como adequação do que se expõe ao entendimento de quem ouve etc. O que aproxima escrever e dar aula é a palavra, a linguagem e a mensagem particular que se inventa num caso e noutro. O que as distancia me parece maior: o procedimento técnico, a finalidade, os meios, a adequação, a facilitação, a redundância etc.

EJ — “A floresta e a escola, o Museu nacional.” Retornando a Oswald de Andrade e fazendo um contraponto com um cenário de destruição que não é apenas simbólico: como o autor de um livro fundamental para compreendermos a alegoria no Brasil pode nos ajudar a ler ou a visualizar um cenário em que não apenas a literatura está em perigo (Todorov), mas os mortos (Benjamin), o futuro e o próprio presente do país, que tampouco é abstrato. Onde é possível fixarmos, quais horizontes e utopias ainda nos ajudam a compreender o Brasil?

JAH — Eduardo, não entendi muito bem sua questão. Me parece que ela já contém a resposta. Acredito que em tempos de barbárie fascista, o que se deve fazer é apostar no valor de coisas que aqui, nessa joça lumpen que a sociedade brasileira sempre foi e agora é, potenciada pelo fascismo da ralé bolsonarista, continuam sendo extremamente improváveis, como a democracia, a liberdade, a cultura etc. Somos muito passivos. Acredito que a barbárie sempre deve ser não apenas denunciada, mas também combatida e destruída com todos os meios possíveis.

MV — Nesta mesma entrevista, comentando uma provável “derrota” da literatura para a realidade, no caso esta, atual, amplamente condicionada pela internet, você diz: “Por isso, me parece só utópica a ideia de recuperar e/ou manter uma função utópica da literatura”. Penso agora que neste dia 8 de setembro, o The Guardian publicou um editorial escrito inteiramente por um robô, uma inteligência artificial que gera linguagem a partir da combinação de algoritmos1. Visto a indústria de cultura e de informação a que estamos expostos, ou seja, ditada por critérios neoliberais e uma urgência do campo midiático e imediato — mas não só: também por políticas de cancelamento e de apedrejamento virtual — essa iniciativa parece vir a calhar, infelizmente. A propósito desse tipo de iniciativa, do texto gerado por um enunciador automático, o que está em jogo? Estaríamos prestes a ver o surgimento de uma geração de leitores sem referencial simbólico?

JAH — Quanto à questão da Marcela, sobre o que está em jogo em texto gerado por enunciador automático e se isso vai gerar leitores sem referencial simbólico, acredito que o enunciador automático não tem intencionalidade, porque é enunciador programado. Assim, se foi programado por um ser humano para afirmar, só afirma. Se para negar, só nega. Pode dar algumas respostas inteligentes, em termos binários, de sim/não. A coisa ficaria mais séria se a máquina fosse como aquele computador do filme de ficção científica, Hal, que adquire intencionalidade e vontade. A máquina já tem vontade e poder de decidir e agir livremente? Acredito que um texto gerado por um enunciador automático é mais um texto resultante de uma combinatória de elementos pré-conhecidos. Não há nenhum leitor sem referencial simbólico — por mais estúpido e ignorante que possa ser, sempre é um ser simbólico. Um leitor sem referencial simbólico não seria leitor. O que pode ocorrer é mais uma estupidez de acreditar que agora sim tudo fica melhor porque uma máquina gera discursos inteligentes etc. etc.

MV — Tomo a liberdade de tocar em um assunto que acredito compartilhar com você: o interesse por plantas e jardins. A discussão sobre fenômenos climáticos, em sentido amplo, tem nos levado cada vez mais a estudos que abordam aspectos relacionais entre homem e natureza — e podemos citar muito brevemente autores como Emanuele Coccia, Bruno Latour, Ailton Krenak, Eduardo Viveiros de Castro, Donna Haraway, David Wallace Wells, Luiz Marques, Kopenawa com referências tanto a questões pontuais quanto a maiores, territoriais e, consequentemente políticas, dessa relação. Não à toa, o entendimento rizomático de conceitos de Deleuze e Gattari, por exemplo, continuam sendo iluminadores em nos sugerir formas de pensamento e de relação. Mas aqui, a título de curiosidade, gostaria de saber como se dá a prática de jardim para você, se passa por um arranjo e/ou uma formulação teórica, ou se é ambiente e prática de distração e de observação, o que, sabemos, não é pouco.

JAH — A questão da Marcela sobre o jardim. Gosto da planta como na natureza: crescendo livre. No Embu, tenho um jardim de árvores tropicais. Com o tempo, outras e outras foram aparecendo e crescendo ao lado das que tinha plantado, e as deixei crescer. Vinte anos depois, as paineiras que tinham meio metro agora têm pelo menos 20 de altura e não consigo abraçá-las. Foram crescendo devagar e sempre. Como no mato. Junto com as árvores, vieram samambaias, avencas, filodendros, bromélias, orquídeas, muitas orquídeas, como na Serra do Mar. E bichos, saguis, esquilos, macacos, tucanos, papagaios etc. etc. Não gosto dos jardins franceses. Não gosto do espírito de geometria. Nenhuma planta pensa e logo existe. Elas só existem. Não dá pra ensinar as boas maneiras de salão às plantas. Nisso, sábios são os índios.

JCH — Aproveitando a deixa da Marcela, lembro de que uma vez você me disse a seguinte frase “gosto das plantas porque quando elas resolvem pensar, levam mil anos”. Você me disse isso um pouco pressionado por uma questão minha, anterior a essa, “onde mora a vida espiritual pra você?” e você respondeu “na minha relação com as plantas”. Se você puder, comenta e atualiza um pouco essa sua relação com as plantas que aparece na minha memória? E uma pergunta complexa: nos seus quase 80 anos de relação com as plantas: as plantas ensinam alguma coisa? O quê?

JAH — Sobre o que me pergunta, Júlia, diria que o vegetal é denso, profundo, sem mania de ter razão etc. “Onde me espetam fico”, como dizia aquela agulha (ou é alfinete?) do Machado de Assis. Sempre gostei disso. A planta nada ensina ou, se ensina alguma coisa, é zen, puro vazio. Aos 80 anos, aprendi que a vida não chega a ser breve, que o homem é um ser frágil, precário, e que uma grande estupidez é a mania de ter razão. O mundo vegetal é profundo e denso. Não pensa nada, nada ensina, nada impõe, não tem nada a defender ou a atacar. É, só, aí, é. Se pensasse, seria mais ou menos como pensam os animais, que sempre pensam que estar aqui é bom-bom, bonito-bonito, aqui-e-agora e aqui-e-agora e sempre bonito-bonito-bom-bom-bonito etc. É o que o ipê pensa, e também a paineira e a peroba e a embaúba e o cedro e as outras, todas as outras que há.