Emergência e paisagem teórica

Torre del Mangia, em Siena. Foto: Pedro Vieira.
As cidades que tiveram o êxito de preservar parte de seus núcleos formadores frequentemente são caracterizadas por suas emergências, construções que se destacam pela dimensão ou pela forma na paisagem. Emergência é uma palavra ainda pouco empregada no Brasil com esse sentido, e por isso pode causar algum estranhamento. Em tempos de debates urgentes, necessários, é fácil associar emergência àquilo que está em estado crítico, apresenta perigo, ou não foi previsto. Sentido bastante distante do aqui empregado: aquilo que emerge, surge, desponta, ganha destaque ou visibilidade. É assim que os italianos se referem a algumas construções, como emergências monumentais, emergências arquitetônicas. É com esse sentido que podemos pensar as emergências não só físicas mas também em nossas paisagens teóricas.
O estrangeirismo aqui não quer sugerir que tenhamos que olhar apenas para o que é produzido fora, muito pelo contrário. Estar atento a como essas emergências são vistas fora, mas também dentro do Brasil, colabora para reconhecer, preservar e fazer bom uso dessas paisagens — construídas ou teóricas. Colabora, sobretudo, para que possamos alargar o entendimento do que possa ser uma emergência em nossa paisagem hoje, e compreender como as variadas formas pelas quais se manifestam podem coexistir, de maneira saudável ou violenta, e gerir essas diferenças.
Quando falamos em emergências na paisagem é fácil pensar em construções religiosas, suas torres, campanários e minaretes — como não lembrar das descrições de Marco Polo ao imperador Kublai Khan, em As cidades invisíveis de Calvino? Mas não podemos nos restringir apenas ao que é grandioso e integrista — visão restrita e restritiva que muitos ainda têm do monumento, que há pelo menos um século deixou de ter essa conotação para ganhar novos contornos.1 Mesmo essas construções, se observadas com maior atenção, nos revelam as disputas e fricções que sempre acompanharam e continuarão a acompanhar qualquer produto da atividade humana, em qualquer tempo ou em qualquer espaço — sejam esses produtos materiais ou elucubrações.

Torre del Mangia, em Siena. Foto: Pedro Vieira.
Basta pensar na Torre del Mangia, em Siena, na Itália, e que ainda no século XIV foi erigida com a mesma altura da catedral da cidade. É notória a disputa de poder, e a equação não se resolve no aniquilamento de um pelo outro, mas em uma suposta paridade entre Estado e Igreja, materializada aos olhos dos cidadãos que podem alcançar na paisagem essas duas construções. Acontece que a Torre del Mangia não é emergência só pela sua altura, mas porque surge daquela grande praça — e não apenas na praça. O Campo, como é conhecida a praça, ainda que orgulhoso de sofisticado projeto, paramentação e cuidados, também é o lugar do encontro, da troca, do comércio e da diversão. A torre é erigida justaposta ao Palácio Público, onde Lorenzetti coloca novamente em diálogo religião e política nas alegorias do bom e do mau governo (esse sim tema sempre urgente). Se é a torre que chama atenção, isso não impede que possamos pensar nesses outros elementos e usos, e em muitos outros, que há pelo menos seis séculos vêm se renovando ali, possibilitando novos usos, apropriações, novos embates ou a pura contemplação — sempre buscando respeitar essa paisagem, a matéria dos elementos que a conformam e o tempo que agiu sobre cada um deles.2 Tampouco deveríamos ignorá-la, pois a menor ou a maior diversidade do que acontece em seu entorno encontra nela uma medida, um parâmetro. Precisamos dela até mesmo para nos opor a ela — não se pode confundir a diversidade com a adversidade. Seja como for, não parece haver espaço para um terceiro elemento verticalizado naquela paisagem, o que não impede que outras emergências surjam no território toscano, e basta lembrarmos da cúpula de Brunelleschi, que projeta sua sombra sobre todos os cidadãos da Toscana, como afirmou Alberti.
Inclusive, é bom lembrar que a sombra pode adquirir significados variados e contraditórios: manter-se na sombra pode sugerir preguiça, prostração, o que é bem diverso da simples busca por se manter em um local confortável (não “zona de conforto”). Estar sombreado também pode causar desconforto, pode sugerir o apagamento ou arrefecimento de quem se encontra nessa zona, dificultando sua identificação ou que seja minimamente notado. Mas as estações estão aí para balizarmos o uso que fazemos das sombras: com o calor excessivo, precisamos dela; no frio, busca-se evitá-la.
Temos dessas emergências aos montes no Brasil, ainda que não sejam percebidas, devidamente reconhecidas ou se tornem menos notórias pelas novidades que as cercam, como acontece com as torres das estações Luz e Júlio Prestes em São Paulo. As torres estão lá, claro, mas se antes a torre da Luz deveria competir apenas com a torre da Júlio Prestes (a disputa aqui é de outra ordem), há muitas décadas tem também que competir com edifícios de grande altura de qualidade bastante duvidosa. Talvez isso justifique a nova pintura da Luz (que é por si injustificável), ultra saturada, que não nasce dela mesma, mas de uma apropriação indevida. Não foi preciso um incêndio para destruí-la, pois a destruição ocorre também de forma indireta, quando são destruídas as relações, materiais e não materiais, que estabelece com outros elementos e dinâmicas, dentro e fora da estação. Assim como a Del Mangia, as torres aqui não devem ser vistas como elementos isolados, tampouco devem ser alvo de uma leitura formalística que não considere questões técnicas e culturais que nelas são materializadas. Ademais, essas torres apontam uma rede de infraestrutura complexa, como a que já foi um dia nossa estrutura ferroviária, e que foi sendo sucateada. A questão não é a disputa entre o ferroviário e o rodoviário mas, em último caso, entre o público e o privado, entre as possibilidades de trânsito e estagnação, entre o centro e a periferia. E basta entrar na Júlio Prestes, que deixou de ser inteira estação, deixou de ter pátio, jardim, para compreender as disputas envolvidas. O novo ali é grotesco, ainda que a roupagem seja erudita. Mais uma vez, não se quer ignorar a possibilidade do novo, da coexistência, mas apenas ponderar como e onde esses diálogos deveriam ocorrer, mais uma vez, na paisagem construída ou teórica. As torres estão lá, mas vão sendo esmaecidas (ainda que com a pintura saturada!), ignoradas em suas complexidades.3
Isso é o que acontece na produção intelectual: a validade e a visibilidade de alguns marcos teóricos não impedem novas reflexões, muito pelo contrário, e por isso não deveriam ser ignorados ou aniquilados, mas compreendidos, revistos criticamente e quem sabe reelaborados. É a partir desses marcos, em diálogo, em discussão, que podemos avançar na construção de novas emergências (e que não necessariamente são grandes estruturas), e que vão paulatinamente conformando uma nova paisagem teórica.
No Brasil, deve-se insistir, não faltam essas emergências (construídas e teóricas, sempre), mas o fato é que ainda não encontramos a medida justa entre o novo e o existente e, paulatinamente, vamos destruindo nossas paisagens, deturpando ou mesmo obstruindo novos diálogos. “Não se trata da continuidade pela continuidade”, escreveu Roberto Schwarz, mas de pensar que antes dele há, e depois dele há de haver, e assim vamos compreendendo e colaborando com nossa formação.4
E se falamos em infraestrutura, como aquela ferroviária, devemos considerar, também na paisagem teórica, a relevância pragmática que determinados textos passam a adquirir em nosso cotidiano. É o que ocorre com textos normativos, cartas e recomendações. Se são frios, diretos, são também sínteses de longos, complexos e aprofundados debates. A síntese vem encharcada de referências que muitas vezes são ignoradas, e acaba por ser mal interpretada. Ou pior, toma o lugar do que a originou.5 Um pouco como o reservatório de água no alto da Sé, em Olinda. Obra necessária, (re)fundadora e belíssima, mas que parece ignorar a Catedral da Sé como emergência naquela colina. Ainda assim é preciso admitir o novo, reconhecer sua utilidade, historicidade e artisticidade — essa nova paisagem, ao longo do tempo, assim se consolidou. E então temos, de forma talvez menos satisfatória que no primeiro caso, a resolução da disputa entre o espiritual e o material, a Religião e o Estado (não são necessariamente pares respectivos). Mas os equívocos interpretativos não cessam, e passam a ser autofágicos: assim a Sé não é mais nem colonial, nem neogótica nem neobarroca, e a Caixa d’água, ainda que seja reservatório, moderno, passou a ser estrutura de apoio para elevador, contemporâneo.6 Desconhecer a paisagem teórica — nesses casos aquela específica do restauro — pode levar a equívocos em nossa paisagem construída.
Todas essas disputas e os equívocos que geram, entretanto, talvez por já terem sido incorporados ao nosso imaginário, podem ser considerados brandos diante de ameaça ainda pior: a brutalidade da especulação, do novo pelo novo, da quantificação. É o que vem ocorrendo no panorama científico, com a corrida por publicações e pela criação de (pseudos) novos métodos e teorias; e também em nossas cidades. Naquelas que tiveram crescimento desordenado isso é mais que visível: se antes a paisagem era marcada por emergências, podemos arriscar um paralelo com uma psicoesfera, e dizer que hoje essa paisagem é marcada por depressões.
As novas emergências, no sentido físico (as grandes torres corporativas ou mesmo residenciais), não são sintoma, mas materializam muitas das causas dessa depressão generalizada. Assim, as duas torres nomeadas Píer Duarte Coelho e Píer Maurício de Nassau, em Recife, não nos contam apenas do fracasso com o patrimônio e com a paisagem, mas com a ética e a cidadania, com a urbanidade (em seus variados sentidos). A ocupação do cais Estelita (que fim teve?), essa sim, em sua horizontalidade, física e em ato, é exemplo de como as emergências podem tomar novas formas numa paisagem consolidada e colaborar efetivamente para sua transformação de maneira ponderada. E então, mais do que nunca, é preciso entender as emergências não apenas como símbolos dominantes (na paisagem construída ou teórica), mas como construções que se manifestam e interferem de diferentes maneiras, formas, nessas paisagens.
O crescimento urbano descontrolado e predatório nos faz pensar em outras situações em nossas paisagens: aquelas em que as emergências não são mais visíveis; ou aquelas em que nunca existiram. Isso acontece porque essas construções foram ignoradas ou mesmo destruídas em função da especulação que, grosso modo, geram o terreno vazio e sem uso, ou o edifício colossal e não raro extravagante; ou, no segundo caso, porque nem sequer foram acolhidas, como nos condomínios fechados que não se abrem ao que lhes é estranho. Por outro lado, a paisagem também pode ser constituída por construções dispersas que conformam um conjunto, ainda que de difícil compreensão. Esse patrimônio, disperso ou aparentemente disforme, e que muitas vezes e por mau hábito é referido como menor, não pode ser vulgarizado ou menosprezado. É a partir do conjunto, dessa espécie de recorrência dispersa, que podemos reconhecer e valorizar essa paisagem. Construções aparentemente iguais, simples e de pequena dimensão podem compor um tecido denso, complexo, e que não deveria ser ignorado — alcançam um ritmo e acabam por determinar uma forma. Só com o passar do tempo, que traz consigo o lamento e a nostalgia, é que passamos a valorizar esses conjuntos, na iminência da destruição, ou quando são ladeados por construções suntuosas e desproporcionais.
Preservar essas paisagens e as emergências que as compõem não significa congelá-las ou estagnar o processo criativo do novo: redes de infraestrutura, novas tecnologias, novas construções, novos fluxos e serviços são criados de maneira a atender demandas, em constante transformação, e de forma cada vez mais veloz. Essas já antigas emergências (quase sempre no plural), mais do que se impor de maneira agressiva ou unívoca, nos impõem o diálogo e nos fazem compreender caminhos, projetar o futuro.
A paisagem teórica em geral é um pouco assim: temos algumas emergências que se impõem, mas que de maneira alguma nos impedem de expandir, renovar ou percorrer caminhos variados. Temos também esses conjuntos “menores”, que ganham força e visibilidade quando justapostos. Ainda que a produção intelectual, científica, deixe lastros nessa paisagem, nas últimas décadas assistimos a uma transformação embrutecedora. A necessidade do novo e a especulação (tomada em seu sentido pejorativo) criaram um movimento em que não se dialoga com as preexistências, que passam a ser ignoradas, menosprezadas, mal interpretadas e finalmente destruídas.
Como então é possível, ainda hoje, contribuir para essa paisagem?
A especulação e o condomínio fechado, se garantem retorno rápido e segurança, deveriam ser refutados. As construções dispersas deveriam ser confrontadas, compreendendo as vias que as conectam ou as barreiras que as separam — perder-se nesse emaranhado é experiência necessária, saudável, prazerosa — mas é sempre bom saber onde se está, e assim se caminha sem perder de vista as emergências. E o terreno vazio, sempre provocante? Ainda que seja possível ocupá-lo integralmente, tirar proveito da oportunidade, adensar o tecido construído, e finalmente propor algo totalmente novo, é preciso ter cautela. O ato de criar, produzir ou inventar, deveria ser consequência do ato de especular, porém tomado em seu significado de examinar, investigar, compreender, teorizar, refletir — e que mal conhecemos, diante do uso constante atrelado à especulação financeira ou imobiliária.
As áreas supostamente vazias ou desocupadas estariam mesmo vazias? Se há porções da cidade que ainda não foram totalmente construídas ou adensadas, há também aquelas que não recebem sequer a rede de água ou esgoto. Qualquer parâmetro é válido para a construção do novo — que pode ser emergência, mas também conjunto ou infraestrutura: a largura da calçada, a presença de um poste de iluminação ou de um arbusto, a presença de vizinhos, seus muros, o relevo do terreno, suas dimensões e as características do solo e, claro, a legislação vigente. Para não falar do sol — uma obviedade, mas que além de emanar luz também produz sombras, deve-se lembrar. Depois de muito olhar para o vazio, ainda é preciso considerar as condições e possibilidades de construção: tecnologias disponíveis, materiais locais, mão de obra especializada, mão de obra local — combinações infindáveis que não garantem, isoladamente, sucesso, mas que encontram seus méritos na especificidade do projeto. Construir sobre um solo rochoso, aparentemente consolidado, não garante estabilidade — pois pode não ser homogêneo, e muitos pontos de ancoragem podem acabar em áreas frágeis, movediças. Mas destruir a rocha pode exigir um esforço sobrenatural, e por isso é necessário estudar com esmero para dele fazer bom proveito. Também é válido pensar que nem sempre a construção deve ser apoiada em toda sua extensão no solo: são alguns pontos, estratégicos, que distribuem a carga, e mesmo quando não são visíveis, a mínima distância existente entre o solo primitivo e o que está sobre ele garante que ambos respirem. E se a legislação impõe em números recuos, alturas e áreas permeáveis (parâmetros mínimos necessários), é no desenho, no projeto, que alternativas mais satisfatórias são criadas, ou que se pode inclusive subvertê-la, não por estripulia ou inconsequência, mas por uma saudável e ponderada experimentação.
Mas não esqueçamos as emergências! Não é tarefa fácil: é preciso tempo para se fazer uma leitura do território, de suas rugosidades, como diria Milton Santos,7 e então intervir. E tempo ainda maior leva uma paisagem para se consolidar, pois é um processo contínuo, lento, que em realidade não termina, não chega ao fim, e por isso deve ser respeitado, observado e até controlado, ainda que possa admitir fissuras ou guinadas nesse decurso. Muito embora instrumentos sejam criados para controlar ou qualificar essas alterações, sabe-se que a paisagem urbana vem sendo transformada sem muito critério. A situação de nossa paisagem teórica parece ainda pior: primeiro por não ser percebida (o menosprezo pelo trabalho teórico em relação àquele pragmático não só o desqualifica como o anula perante a sociedade), depois porque os instrumentos já existentes, que já não são abundantes, são alvos constantes de ataques e desmonte.
Ao final, nosso lugar, na sociedade ou dentro da universidade, assemelha-se a um terreno estreito, cuja vizinhança e localização privilegiada indicam caminhos mais generosos. O que construir ali? Poderia ser uma pequena praça, uma fonte, uma banca de jornal ou um quiosque de café, um lugar de encontro, com bancos e iluminação. Um lugar aprazível, do qual se observa a paisagem e que também passa a constituí-la, sem grandes alardes.