Do comentário à questão evangélica brasileira
resposta a Marc Saint-Upéry
Sinceramente, penso que Michael Löwy e os praticantes da teoria decolonial têm mais motivos para treplicarem do que eu. Mas não posso me furtar de responder ao Saint-Upéry, a quem, aliás, agradeço pela leitura. Agradeço também à Rosa, por estimular as trocas e debates. Em seus meses de vida, a Revista já acumulou um patrimônio público marcado pela responsabilidade com que se coloca à altura dos seus desafios.
Antes de comentar o comentário de Upéry ao meu comentário, porém, tenho um reparo a fazer. Peço desculpas aos leitores e editores por um erro no texto passado: por algum motivo, enviei um texto sem notas de rodapé, como pretendia, o que garantiria a explicitude das citações e as origens das ideias mobilizadas ao longo do texto. Isso daria um mapa teórico ao leitor e atenderia a um princípio básico da honestidade intelectual que é o de citar os autores dos conceitos mobilizados. Sou autor das principais ideias do texto e da articulação dos principais conceitos, mas, claro, não o autor de todos eles. Os leitores mais familiarizados até conhecem. Assim, quando falamos qualquer coisa sobre “acumulação primitiva” não é preciso citar Marx, pois “todos sabem” que ele é o proponente da ideia, o que também pode ocorrer quando recorremos a ideias bem conhecidas entre os leitores de certos assuntos. Mas é preciso ser rigoroso e não displicente na apresentação de categorias conceituais alheias. Entretanto, por algum lapso, submeti o texto sem referências e quando vi… já era tarde. Com o tempo recortado, isolamento social e os mil destemperos de nossas vidas padecentes, esses lapsos, ao que me parece, têm se tornado mais frequentes entre todos ou muitos de nós, motivo pelo qual peço compreensão. A “redução do ascetismo contracultural”1 dos evangélicos é uma proposição de Ricardo Mariano, principal estudioso do tema no país. O conceito de “autoritarismo socialmente implantado”2 foi desenvolvido por Paulo Sérgio Pinheiro. “Superexploração do trabalho”3 é uma elaboração de Rui Mauro Marini. A pesquisa que trata dos índices de rejeição dos evangélicos à máxima “Bandido bom é bandido morto” chama-se “Olho por olho” e foi publicada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes.4
Agora passo à troca.
I
Conquanto desconfie da maior parte dos estudos comparativos, não nego sua importância. Eles podem revelar semelhanças e diferenças da manifestação de um fenômeno em contextos empíricos diversos. Feito isso, abrem caminho para novas explorações que ajudem a explicar, justamente, as particularidades de cada manifestação local do fenômeno. Não digo que seja impossível identificar tendências internacionais, processos globais de mudança social etc., mas mesmo um processo de caráter supranacional, à medida que avança por uma formação social específica, adquire também características específicas; dá-se uma refração do processo social. Um exemplo: A reestruturação produtiva ocorreu globalmente, mas foi condicionada em forma, ritmo e consequência pelas condições nacionais de cada país, já que em cada canto há um arranjo político, um certo capitalismo, um certo mercado de trabalho e uma certa vinculação ao sistema-mundo. O caso da transição demográfico-religiosa no Brasil: em mais ou menos um século e meio, um país geneticamente católico se tornar de maioria evangélica. Essa expansão é numérica, mas se combina a diversos outros processos, já que nesse ínterim o país mudou muito, urbanizou-se, massificou seus meios de comunicação, cambaleou por entre regimes de governo mais ou menos democráticos; o país de mais longeva escravidão, profundamente miscigenado, de dimensões continentais e grande migração interna… O crescimento evangélico não está apartado desse chão, ele é atravessado-sincronizado com as muitas variáveis e mudanças sociais. Não significa, claro, que não possua nada em comum com outros processos de expansão ou ativismo político-religioso como aqueles que Upéry cita, seja com a atuação dos evangelical’s nos EUA, parcelas islâmicas e tudo o mais.
Estudos comparativos podem ser grandes contribuições quando não se limitam às grosserias estatísticas e avessas às variáveis de controle relevantes e de caráter local. De fato, o conhecimento sobre o social procede de um raciocínio indutivo-inferencial, em geral de pequeno e médio alcance, cujas extrapolações teóricas exigem um acúmulo de bons trabalhos. Mesmo um ensaio como o de Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, é, como escreve o próprio autor, resultado da investigação de uma “individualidade histórica”. Essa circunscrição espaço-temporal, por vezes, sequer alcança a estatura nacional, tendo em vista que um fenômeno pode ser particular a um território ainda menor. Não penso que qualquer approach de viés fenomenológico centralize o nacional por mero provincianismo ou ignorância das literaturas internacionais; trata-se apenas de conferir primado ao objeto e curar de sua historicidade. Uma tarefa “modesta” para nossa agenda é identificar a circulação transnacional de categorias, frames, repertórios, ideias e práticas variadas em diferentes ativismos.5 Mais que mapear semelhanças que talvez pertençam a tendências (sempre identificadas a posteriori), retrata o aqui-agora para um bom diagnóstico prático.
II
Sobre a teologia da prosperidade, meu ponto é simples: já conhecemos seus traços principais, sua história, base conceitual e lógicas de sentido; também já conhecemos crenças e práticas religiosas de seus adeptos.6 Tudo isso foi documentado em pesquisa. Mas não sabemos quais as conexões entre esse corpo de crenças e as práticas econômicas dos adeptos, isto é, o quanto essas ideias movem os agentes em uma esfera de ação não religiosa/laica como o mercado. Em meu texto, destaquei que a teologia da prosperidade é controversa mesmo entre os evangélicos e que o tema do trabalho e das posses é elaborado nesse grupo social a partir de outras referências teológicas também, em geral, associadas a uma ideia de graça/favor divino. Deus é alguém com quem se conta para tudo, inclusive para assuntos financeiros. O milagre da multiplicação/provisão é dos mais testemunhados nas igrejas.
Ao chamar a atenção para esse ponto quis oferecer uma outra imagem do trabalhador evangélico, distinta daquela de um trabalhador preso pelos grilhões da “ideologia”, que anseia ficar rico vendendo bugigangas. Para muita gente, o “empreendedor” evangélico seria o mais “neoliberal” dos trabalhadores.
O desejo de ser dono do seu próprio negócio sempre atraiu críticas de dirigentes e intelectuais de esquerda que o tomavam como expressão regressiva pela qual o trabalhador remetia seus horizontes ocupacionais às formas pré-contratuais de trabalho, próprias de uma formação social “arcaica”. Era como se ele estivesse movido pelo desejo ultrapassado de ter seu próprio pedacinho de terra ou aspirando a ser um “burguês”. Na boca dos socialistas e comunistas, essa crítica ornava com o etapismo segundo o qual era preciso socializar os trabalhadores em um mercado formal de trabalho, edificar um capitalismo no Brasil e realizar uma Revolução Burguesa.
Nessa condenação moral ou política desses trabalhadores, desconsidera-se o fato de que jamais constituímos no Brasil uma “sociedade salarial” e que, por um bom tempo, direitos universais só podiam ser acessados mediantes alguma filiação profissional.7 A imensa maioria do povo brasileiro viveu e vive na informalidade, com trajetórias erráticas e inseguras. A reprodução da força de trabalho se deu sempre às margens da sobrevivência — barraco e subnutrição com gosto de salário mal pago; desproteção social; atividades de risco e grandes jornadas. A superexploração do trabalho não apenas manteve salários baixos e um grande exército de reserva, como também bloqueou, e bloqueia, a afirmação do trabalho como eixo de solidariedade e base de organização política para as maiorias pobres. Seja por privar as pessoas de uma identidade profissional, própria de uma trajetória coerente no mercado de trabalho, seja por individualizar/reprivatizar a experiência do trabalho em atividade informais: prestação de serviços manuais (trabalho doméstico, construção civil, colheitas sazonais) e venda de quinquilharias (comércio ambulante e ilegal). O que restou disso foi a grande classe dos sem-classe. Nesse quadro, a expectativa de garantia de direitos ou de estabilidade de rendimentos econômicos sempre foi precária. Ao tentar o “próprio negócio” — à exceção de uma parcela que imagino pequena —, o trabalhador pobre não está agindo para ficar rico, tampouco se vê como “patrão de si mesmo” ou “empresário” à lá “Você S/A”. Está apenas fazendo que sempre fez: se virando, fazendo seu corre, uns com Jesus, outros com o Sebrae…
Não podemos esquecer também que o nosso sindicalismo se manteve, até à fatal Reforma Trabalhista, preso às maneiras corporativistas, baseando-se em categorias e gerindo a (des)mobilização. A burocracia sindical nunca considerou a ideia de ser um movimento social de todos aqueles que vivem do próprio trabalho quanto mais imaginar um projeto de desenvolvimento sustentável.
A saída estratégica de nossa situação seria a incorporação produtiva da força de trabalho disponível, com todo respaldo do direito, por meio de uma expansão sustentável do assalariamento. Mas nenhum dos dois principais ciclos de crescimento pós-Juscelino atingiram esse ponto de mudança qualitativa: o “milagre” da ditadura foi uma tragédia social, e a política de “pleno emprego” desempenhada pelos governos petistas não foi suficientemente robusta do ponto de vista da qualidade do emprego e de sua duração. Ainda assim, este último ciclo deu bases materiais ao discurso pró-teologia da prosperidade (aliás, onde foram parar os ideólogos da “nova classe média”?).
A integração dialética entre o arcaico e o moderno explicam a reprodução de nossa formação truncada e os limites da agenda neocepalina-neodesenvolvimentista contemporânea.8 Mas não vamos nos ater a isso aqui. Importa apenas observar que em tais condições, a expectativa do emprego formal é muito reduzida e o sentido atribuído ao trabalho deve ter particularidades em comparação com o centro do capitalismo. A noção de “vocação”, por exemplo, registrada por Weber como ideia-chave para formação de uma ética do trabalho entre os puritanos séculos atrás, é imaginável/provável como valor demograficamente relevante no Brasil? De que maneira o trabalho ad majorem Dei gloriam se combina ao trabalho como necessidade de sobrevivência? O pano de fundo dos discursos, crenças e práticas religiosas sobre trabalho e atividade econômica (incluindo aí a teologia da prosperidade) é o da escassez. A experiência geral é, não a da “precariedade”, mas o do risco e da imprevisibilidade crônicas. Trata-se, pois, de uma forte insegurança existencial — para além da violência urbana, chave na qual a segurança é abordada, importa perceber a demanda de todos nós que é a de nos sentirmos economicamente seguros, psicologicamente/afetivamente etc. Não estar ameaçado, seja pelo crime ou pela falta de dinheiro ou qualquer outra coisa, é algo indispensável para uma vida feliz. Sua formulação como bandeira programática não é explícita, mas sim, as pessoas querem se sentir seguras.
O desafio permanece o mesmo: compreender a correspondência entre crenças e práticas e a elaboração/reprodução de sentidos. No caso da teologia da prosperidade, parece-me que ainda está em aberto o entendimento da crença no direito à prosperidade; as expressões de comportamento ritual/ “pensamento mágico”; a intensificação de esforços individuais; a ativação teológica ad hoc de categorias e ideias pelos agentes e os valores políticos em operação. Talvez esse acúmulo nos ajude a entender melhor como economia e religião se articulam no Brasil.