Derrubar monumentos, um ato de amor

Brasil terra indígena, animação, 2020, Denilson Baniwa. Foto: Coletivo Coletores.
As estátuas e os mosaicos bizantinos destroçados nos séculos VIII e IX, os antiquíssimos Budas de Bamiyan transformados em pó pelo Taliban em 2001, a Nossa Senhora Aparecida quebrada em Botucatu por uma pastora em 2017. Em uma sociedade estruturada pela imagem, a iconoclastia é uma atitude transgressora que fala alto e, geralmente, seu som significa mudanças radicais — ou ao menos radicais tentativas de mudanças.
Ato terrorista, ato performático, ato de cura, ato de amor: todo símbolo em algum momento paga pelo preço de representar algo para muitos (a iconolatria é tão poderosa quanto frágil). E no Brasil que um dia sonhou ser branco importando alemães e austríacos para seus vastos campos — Brasil que consagrou suas terras para poucos, muito poucos —, pisar na cara do herói (?) de cimento pode soar como qualquer um dos atos acima, a depender do pé que cumpre a tarefa.
Pode-se derrubar uma estátua para apagar o passado — ou para reescrevê-lo.
Quando milhares de pessoas negras foram (re)acionadas pela morte-gatilho de George Floyd, nos EUA , a busca por um processo de cura foi (re)instalada: o entendimento de que não é mais possível conviver com a ode aos que um dia foram celebrados como “civilizadores” é antigo no país, e aquele assassinato midiatizado só reforçou o absurdo dessa ode.
Estava acontecendo novamente, em cadeia mundial, o que chamamos de imagem-bumerangue: para a população negra — e não só a dos Estados Unidos, sabemos — o sufocamento de Floyd era uma repetição, uma morte violenta já vista antes e antes e antes e antes. Um assassinato que vai e volta.
Quando começamos a pensar nessas imagens/discursos sobre “o Outro”, nos debruçamos sobre vídeos, fotografias e reportagens de nordestinas e nordestinos no ambiente midiático (pobres, pretos, indígenas, mulheres, bichas, imigrantes, pessoas transexuais, formam esse grande Outro do mundo). Percebemos que desde os primeiros jornais impressos de maneira massiva, fosse por exemplo no Rio de Janeiro ou em Fortaleza, o nordeste exibido é aquele campeão nacional no consumo alimentício de palmas, cactos e mandacarus.
Também é grande apreciador de tatus, lagartos e outros bichos rastejantes — tanto ao ponto de nos transformarmos em um deles, o gabiru. Assim foi batizado o canavieiro Amaro da Silva, morador da zona da mata pernambucana, em uma reportagem da Folha de S. Paulo em 1991. Amaro, 1,35 m de altura, aparecia ao lado do fotógrafo do impresso, com 1,76. O faminto e o alimentado, o caboclo e o branco, o coitado e o salvador, o irracional e seu contrário.
Amaro era a repetição dos cartes de visite espalhados pelos salões chiques do Brasil imperial nos quais apareciam pessoas famintas e quase mortas fugidas da grande seca de 1877–79. As fotografias foram realizadas em Fortaleza, no estúdio de Joaquim Antônio Correia, e logo reproduzidas no jornal O Besouro. Inaugurava-se nacionalmente a imagem difícil de ser derrubada até hoje: a de uma região faminta e dependente.
Ela, bumerangue, havia sido descrita pelo vereador Manoel Esteves D’Almeida quando ele caminhava pelo Ceará, atingido de morte — muitas mortas — pela estiagem. No Registro de memória dos primeiros estabelecimentos, factos e casos raros accontecidos nesta villa da Santa Cruz do Aracaty, feita segundo a ordem de Sua Majestade, de 27 de Julho de 1782, Manoel escreveu:
desta sorte sahiram os habitantes dos sertões de suas moradas, deixando os seus bens a procurar recursos da vida, e no caminho encontravam a morte pela fome em que laborava o tempo, de sorte que se comiam bixos e taes que nunca fora mantimento humano, como seja corvos, carcarás, cobras, ratos, couros de boi, raizes de ervas, como fossem o chique-chique, mandacarus, mandioca brava etc.
As impressões do vereador estavam nos cartes de visite que estavam na imagem de Amaro que estavam nas fotografias dos nordestinos resilientes e fortes tirando óleo cru das praias atingidas pelo petróleo criminosamente derramado em 2019.
A imagem vai e volta.
Mas se em alguns momentos históricos a repetição pode levar à apatia, em outros ela provoca o contrário, o esgotamento, o ressentir. Repetição de fatos e experiências dos quais muitos não conseguem se separar subjetivamente.
Ressentir é um sentir-bumerangue. Na abertura do livro Ressentimento, de Maria Rita Kehl, Maria Homem escreve: “ressentimento não é a ação que busca transformar” e segue informando que esse ressentir tampouco tem relação com a revolta ou com a luta por justiça, sendo “o canto queixoso do sujeito da modernidade”.
Não somos capazes aqui de fazer uma análise a partir da psicanálise (embora Maria Rita explique que o ressentimento não é conceito psicanalítico, e sim do senso comum). Mas, diferente das duas autoras, queremos pensar a possibilidade de ressentidas e ressentidos em poder se atrever e responder, em buscar a ação, em transformar o sentir de novo em mola propulsora e não em âncora. Tal agência se torna possível a partir das novas dinâmicas históricas e sociais, dos novos acordos globais: se por exemplo os assassinatos de pessoas negras acontecem de novo de novo e de novo, é importante pensar que eles ocorrem sempre em mundos em transformação.

Monumento às bandeiras, 2019, Jaime Lauriano. Foto: Filipe Berndt
É o que podemos perceber nos atos que se seguiram — e que seguem — após o assassinato de Floyd, em 25 de maio de 2020. Sentir de novo levou não só multidões até as ruas, mas levou diversas estátuas ineditamente até o chão. Levou, ainda, prefeituras e outros órgãos a repensarem o que fazer com os seus monumentos, preferindo deixá-los fora das praças nas quais não é mais possível a manutenção da ode.
Pessoas negras, sofridas, ali iconoclastas, embebidas por um sentir de novo permeado de raiva, de cura e de amor, não tornariam mais possível a celebração de quem assassinou seus passados.
“O tempo de ser complacente acabou”, disse Mike Forcia, do AIM, grupo de defesa dos nativos americanos que organizou a queda da estátua de Colombo em Minnesota no dia 10 de junho. Mike, em entrevista ao canal KMSP, disse que há anos o grupo conversava com representantes do Capitólio. Deles, ouvia que era necessário esperar até que Colombo e toda sua carga histórica e emocional fossem removidos da vista pública. Com Floyd assassinado, os nativos decidiram que esse tempo seria gerenciado, agora, por eles.
Ainda nos EUA , Washington, Richmond e Boston foram outras cidades-palco de transgressões-cura. Na primeira, foi ao chão a estátua do general confederado Albert Pike. Na segunda, a sociedade indígena de Richmond reuniu mais de mil pessoas e chamou mais gente a trazer tambor, hino e máscara para celebrar a queda de Colombo. Na terceira, a estátua do mesmo personagem foi decapitada e depois removida pela prefeitura local.
Na reescrita da história através das imagens, uma das ações mais bonitas foi justamente aquela que lançou as imagens de Floyd, por meio de hologramas, sobre os locais onde estavam — ou estão — as imagens de confederados, monumentos a generais sulistas que defendiam a escravidão e combateram na Guerra Civil de 1861–65.
Foi justamente na Richmond do Colombo derrubado (a cidade da Virgínia é conhecida como “capital dos confederados”) que vários membros da família de Floyd se reuniram para ver seu rosto projetado no lugar no qual ficava a estátua de Jefferson Davis, o primeiro (e único) presidente dos Estados Confederados da América. Depois, o rosto de Floyd tomou o lugar da estátua (ainda em pé) de Robert E. Lee, o comandante do exército confederado durante a Guerra Civil. A permanência da estátua erguida em 1890 no local está sob questão e, até outubro de 2020, seu destino deverá ser resolvido pela Justiça norte-americana. O holograma ainda passou pela Carolina do Norte, Geórgia e outros estados do sul.
Pode-se dizer que o Robert E. Lee deles tem o peso de nossos bandeirantes, autores de muitas das brutalidades que fundam e definem o processo colonizador no país e homenageados com uma das esculturas públicas de maior visibilidade da cidade de São Paulo. Trata-se, como é sabido, do Monumento às bandeiras, realizado pelo artista modernista Victor Brecheret por encomenda do Governo de São Paulo ainda no início da década de 1920, mas somente concluído e inaugurado em 1953.
Por muito tempo consagrados, na história hegemônica do Brasil, como heroicos desbravadores do interior do país no início de sua colonização por Portugal (notadamente nos séculos XVI e XVII), os bandeirantes estiveram sempre em busca, de fato, das riquezas minerais ali existentes, atuando também como caçadores de indígenas a serem empregados em trabalhos forçados e de negros escravizados que, fugidos de fazendas onde trabalhavam, viviam escondidos em quilombos. Ao resistirem aos seus algozes, milhares de indígenas e de negros terminaram por serem assassinados. Os bandeirantes serviam, assim, a interesses econômicos próprios e, simultaneamente, aos daqueles que os contratavam, com isso lucrando materialmente e tornando-se importantes à manutenção do controle violento daquelas populações. O processo de mitificação positiva dos bandeirantes data do final do século XIX e, principalmente, do início do seguinte, como parte da estratégia de a elite de São Paulo, então em ascensão econômica, afirmar-se cultural e politicamente no país.1 Processo que faz com que atos bárbaros sejam hegemonicamente acolhidos como civilizatórios, levando a que representações dos bandeirantes ocupem, mesmo a contragosto, as nossas retinas.

Brasil terra indígena, animação, 2020, Denilson Baniwa. Foto: Coletivo Coletores.
Instalado em uma praça situada a poucos metros do Parque Ibirapuera, em São Paulo, o enorme monumento que comemora o suposto heroísmo dos bandeirantes na história do país é alvo recorrente de ativistas indígenas, negros e aliados que o picham e protestam em frente a ele por considerá-lo, com razão, acinte à memória de tantos homens, mulheres e crianças massacrados pelos bandeirantes. Por considerá-lo, como afirma o filósofo Achille Mbembe em relação a tais monumentos coloniais, “extensão escultural de uma forma de terror racial” ou “expressão espetacular do poder de destruição e escamoteação que, do princípio ao fim, moveu o projeto colonial”.2 Monumento sobre o qual o artista Denílson Baniwa projetou uma animação chamada Brasil terra indígena, obra sua de 2020, em que uma caravela portuguesa naufraga durante uma tempestade e em seu lugar surgem animais e entidades luminosos que retomam, simbolicamente, o espaço ocupado por esse exemplar da cultura de morte decorrente da colonização europeia nas terras que viriam a ser este país.
Em 2013, em uma das várias ocasiões em que a escultura foi coberta de tinta e de frases acusatórias contra aqueles celebrados ali, Jimmie Durham, artista de etnia Cherokee nascido nos Estados Unidos, escreveu um texto chamado Vandalismo. Nele, recorda haver passado muitas vezes diante do monumento em 2010, quando preparava um trabalho a ser apresentado na edição daquele ano da Bienal de São Paulo, sempre desejando a ocorrência de um desastre qualquer que viesse a destruí-lo.3 Ao final do ensaio, resumia seu ponto de vista sobre o ocorrido:
Os bandeirantes escravizavam, estupravam, matavam índios, roubavam a terra e faziam monstruosidades com sua prole. Se eles o faziam com alegre cordialidade, tanto pior. Tanto mais horrível. Se eles, no seu tempo, se sentiam inocentes — muito mais horrível ainda. Mas os seus admiradores de hoje não são inocentes. A burrice jamais é inocente. […] O prefeito de São Paulo deveria dar um prêmio — e também mais sprays — ao artista que fez a intervenção no monumento sem graça de Victor Brecheret.4
Além do Monumento às bandeiras, existem, espalhadas na cidade de São Paulo, estátuas dos mais celebrados bandeirantes e placas comemorativas de seus feitos. Dão também nome a avenidas, colégios, edifícios e estabelecimentos comerciais de todo tipo. Não é incomum, ademais, encontrar-se, em feiras de antiguidades ou mercados de pulga de São Paulo, miniaturas de algumas daquelas construções, incluindo do próprio monumento feito por Victor Brecheret e da também conhecida estátua em homenagem a Borba Gato, produzida pelo escultor Júlio Guerra e inaugurada em 1962, com um bizarro desfile de pessoas vestidas de bandeirantes, damas e indígenas. Miniaturas feitas para adornar interiores de residências ou escritórios e que o artista Jaime Lauriano usa para tecer sua contundente crítica a esse elogio à morte do outro. Tomando-as como modelos ou moldes, o artista as refaz, assim pequenas, por meio da fundição conjunta de latão e de cartuchos de munições utilizadas pela Polícia Militar de São Paulo e pelo Exército Brasileiro.
Além de combater a escala desmedida daqueles monumentos, esses trabalhos aproximam agentes de violências que, embora cometidas em tempos distintos, vitimam principalmente, antes como agora, aqueles que não têm direito à partilha social da vida. E que, muitas vezes, reagem por isso. A associação entre violências está involuntariamente confirmada no fato de que um dos mais brutais instrumentos de repressão criados durante a ditadura militar no país (1964–85) teve por nome “Operação Bandeirante”. Instituída em 1969 e composta por membros das Forças Armadas do Brasil e de órgãos de segurança do Estado de São Paulo, a organização tinha por objetivo identificar, localizar e capturar, na região de São Paulo, opositores ao regime de exceção. Sendo desde o início financiada clandestinamente por empresários paulistas, a Operação Bandeirante foi instrumento de tortura e de morte de muitos, tendo como um de seus mais notórios integrantes o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Um bandeirante de sua época, talvez.

Bandeirantes, 2019, Jaime Lauriano. Foto: Jaime Acioli.
A necessidade de desafiar e de confrontar a mitificação positiva dos bandeirantes no chamado “campo da arte” — espaço simbólico em que esses monumentos também se inscrevem — fica também patente quando se recorda que um dos organizadores de exposição que reunia alguns dos mais destacados artistas brasileiros (realizada em 2014, em São Paulo) os chamou, no texto de abertura do catálogo do evento, de “novos Bandeirantes”, querendo com isso elogiá-los. Querendo com isso dizer que, valendo-se de suas capacidades criativas, esses artistas seriam os desbravadores de um novo Brasil. Suposta enaltação que oculta, mais por ignorância do que por má-fé (embora nenhum dos dois motivos sejam neste caso desculpáveis), o que os bandeirantes significaram e significam para uma parcela da população brasileira. Sem sequer se dar conta, além disso, de que os verdadeiros bandeirantes contemporâneos — embora não tão toscos quanto os originais — operam ativamente em vários ramos de negócios, fazendo o que for necessário e sem medir consequências — tal como o faziam seus antepassados simbólicos — para alcançarem seus objetivos de ganho privado. A diferença desses para os seus congêneres antigos é que muitos deles plantam soja ou criam gado, expulsando, com ajuda policial ou de força armada privada, os indígenas que insistem em manter-se nas terras que desejam ocupar. Já outros, dedicam-se à extração intensiva de minérios, deixando vez ou outra escorrer, por rios e terras (inclusive as habitadas por povos indígenas), lama contaminada que mata e torna o mundo mais frágil. Outros, ainda, talvez mais discretos, são somente os beneficiários indiretos de muitas dessas tramas violentas — atualizações da barbárie colonial —, atuando predatoriamente no mercado financeiro e, eventualmente, até colecionando arte.
Assumir uma postura crítica e decolonial sobre monumentos que homenageiam bandeirantes e outros personagens históricos que perseguiram e mataram a população indígena e negra no país possui, evidentemente, implicações políticas. Para as instituições de arte, em particular, implica abrir-se a juízos críticos que atam estética, ética, reparação e cura. Implica estabelecer relações, por meio de suas múltiplas atividades, com tudo o que está aparentemente fora dela, mas que são partes indissociáveis da constelação de territórios onde sentidos históricos e políticos são gerados. A disseminação dessa postura comprometida é condição necessária para que o Monumento às bandeiras e outros mais deixem de ser festejado como marcos assépticos da história da escultura no país, incluídos em roteiros turísticos que reproduzem desinformação e injúria. Para que não mais se prestem a simplesmente “fazer ressurgir no palco do presente os mortos que, quando vivos”,5 eliminaram indígenas e negros no país. Apenas instituições de arte assim transformadas serão capazes de inscrever, nas descrições e radicais contextualizações dessa e de outras esculturas e pinturas assemelhadas em seus temas e em suas origens, o fato inequívoco de que celebram o genocídio e o epistemicídio produzidos no passado colonial e que ainda acontece, transformado, no Brasil. Somente um campo das artes radicalmente afetado pela violência que atravessa e que marca a questão indígena poderá fazer com que se torne impensável querer comemorar a inventividade dos artistas brasileiros chamando-os de matadores dos povos originários do país.

Brasil terra indígena, animação, 2020, Denilson Baniwa. Foto: Coletivo Coletores.
Dentro ou fora desse lugar de produção e de recepção da produção artística, porém, o que está em jogo agora é o reconhecimento de que a história do país contada nesses monumentos tem que ser narrada de novo, de um jeito outro. De modo que as possibilidades de presentes diferentes daquele em que vivemos — possibilidades mais generosas e igualitárias — possam ser identificadas no passado, quando foram massacradas ou silenciadas. Possibilidades que podem ser relembradas e atualizadas na construção de outro lugar de vida. Mas para enfrentar tal tarefa é preciso lembrar e levar a sério que, como Walter Benjamin insistia, todo documento de cultura é também um documento de barbárie.6 Que as celebrações feitas por quem venceu lutas são, de modo inseparável, recordações do extermínio dos vencidos. É preciso lembrar que, nesse contexto, questionar, contextualizar, vandalizar e, no limite, derrubar monumentos, podem ser atos de reparação e de cura. Atos de amor.