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Capital e raça: os segredos por trás dos nomes

Algodoal, Adriano Rampazzo.

“A coisa que a sociedade mais teme”, escreveu Adorno num ensaio de 1957, “é ser chamada pelo nome”. Que tal então lançar na cara de uma sociedade que se alimenta do lucro e do preconceito de raça que aquilo que ela vende como liberalismo meritocrático não passa de “capitalismo racial”?1 Pois é justamente isso o que acadêmicos e ativistas, em especial negros norte-americanos (mas não só), estão fazendo neste momento embalados pelo vigoroso crescimento do Black Lives Matter.

A expressão “capitalismo racial” nasceu entre os sul-africanos que lutavam contra o regime do apartheid na década de 1970. A África do Sul era uma sociedade capitalista e racista, um país que acumulava fabulosas somas de dinheiro rebaixando o valor do trabalho com segregação, humilhação e despossessão de negros. Mas os liberais sul-africanos e os gurus da ordem mundial se recusavam a chamar as coisas pelo nome. Juravam que o apartheid era uma aberração, um caso desviante na casa desta senhora virtuosa que é a economia de mercado.

Contra o negacionismo autocomplacente das superelites, estudiosos e ativistas marxistas como Martin Legassick, David Hemson, Neville Alexander e Harold Wolpe (os dois primeiros, aliás, eram brancos) mostraram que capital e raça estavam entrelaçados na África do Sul.2 Que o racismo se tornara uma categoria econômica tão poderosa que sobreviveria ao fim do apartheid produzindo mais desigualdades e injustiças sociorraciais. Era essa engrenagem perversa que chamavam de capitalismo racial. Para esmagar o racismo, seria preciso lutar contra o capital. Vinte e cinco anos depois do fim do apartheid, suas previsões se mostraram certeiras.3

Crises são viveiros de ideias, e do outro lado do Atlântico os Estados Unidos também passavam por uma no fim dos anos 1970. O Choque do Petróleo, o endividamento público com gastos militares e a ascensão meteórica da indústria asiática cobraram seu preço sobre a economia norte-americana na forma de desindustrialização, achatamento dos salários e aumento da violência urbana. A resposta de Washington ao colapso dos “Trinta Gloriosos” (1945–1975), o neoliberalismo de Ronald Reagan, em vez de atenuar o caos, esfregou sal na ferida. Sua política de encarceramento em massa e desinvestimento público vulnerabilizou os pobres, em especial as minorias étnicas sub-representadas. Foi nesse caldeirão que o marxista negro Cedric Robinson colocou o conceito de capitalismo racial para circular no debate público norte-americano.

Em Black Marxism (1983), Robinson transformou capitalismo racial, até então uma categoria da economia política, num conceito de filosofia da história. Seu argumento é que a sociedade europeia já era inapelavelmente racista séculos antes de o capitalismo dar as cartas no jogo da vida — até Aristóteles seria racista — e que o capital se organizou, desenvolveu, ampliou e consolidou sobre esse racismo profundamente arraigado na Europa. Ao nascer no século XVI, o capitalismo precisou das hierarquias raciais para se reproduzir. Sem o racismo pré-existente da Europa, não haveria capitalismo.

Graças ao Black Lives Matter, o conceito de capitalismo racial de Cedric Robinson ganhou nova projeção. Seu uso tem sido relevante porque direciona o movimento negro para a luta contra a organização estrutural do capitalismo, amalgamando tendências particularistas, identitárias e nacionalistas da luta antirracial numa energia social unificada contra a exploração do capital. Tornou-se, assim, uma alavanca para radicalizar a resistência antirracista. Certamente, os próximos anos irão preparar uma fornada de bons livros com as palavras capitalismo racial na capa.

Acontece que o conceito de Robinson tem pressupostos que estão longe de ser consensuais. Robinson transforma a noção de raça como nós a conhecemos num construto trans-histórico — esse procedimento é comum nas academias anglo-saxãs, que tratam concepções atuais de “indivíduo”, “liberdade” e “democracia” como atributos antropológicos universais. E, ao elevar o conceito de raça à condição de essência do capital, reduz o jogo complexo, polimórfico e adaptável das múltiplas hierarquias sociais que o capital põe em movimento no seu próprio movimento de autoexpansão.

A abstração demasiadamente ampla do conceito de raça, bem como o tipo de discussão que gera, produz um efeito contraditório curioso. Embora dê coesão direcional ao movimento antirracista, a expressão tem o potencial de provocar divergências, ruídos e falsos diálogos no interior do campo progressista. Um exemplo desses mal-entendidos apareceu de maneira bem didática nos textos da Dissent Magazine que a revista Rosa apresenta aos leitores do Brasil nesta edição. Para simplificar, vou organizar a discussão em tópicos.

Nacionalismo metodológico

Em sua primeira intervenção, Michael Walzer se pergunta se a exploração da raça é um traço realmente necessário e essencial do capitalismo. A questão faz sentido, pois esse é de fato um dos pressupostos do conceito capitalismo racial. Embora reconheça o peso do racismo na economia de alguns países, Walzer entende que a noção de raça não é conceitualmente intrínseca à de capital e “prova” seu ponto mencionando sociedades capitalistas não racistas. “A forma de capitalismo patrocinada pelos comunistas chineses é obviamente não racial. Ainda que os trabalhadores explorados sejam, na terminologia ocidental, pessoas de cor, a terminologia não se aplica nesse caso. Se os chineses importassem mão-de-obra branca para ocupar os postos de trabalho de menor remuneração, isto poderia tornar ‘racial’ o capitalismo chinês, mas não há registro desse tipo de importação”.

O problema da resposta é confundir o espaço nacional de regulação das relações raciais (Estado) com o espaço não nacional das relações sociais do capital. Não sei dizer se o controle político da maioria Han sobre grupos étnicos minoritários na China influi nas taxas de lucro do capital (Walzer acha que não). Mas seria possível separar investimentos chineses na África, onde trabalho e ecologia são relativamente baratos, dos efeitos cumulativos nefastos de processos racialmente construídos, tais como tráfico negreiro, escravidão e colonialismo? Os insumos minerais e agrários estrangeiros que a China suga não são preparados por gente mal remunerada, o que se deve, em boa parte, ao racismo difuso nos mercados de trabalho espalhados ao redor do mundo? Será que esses movimentos do capital — na forma de dinheiro ou de commodities — passam por uma “lavagem racial” quando integram os processos de acumulação da China? O recorte nacional de Walzer não ajuda a entender as relações complexas entre raça e capital.

Lógica vs. História

Walzer não se sai melhor na sua outra resposta à questão — se a raça é essencial ao capital. Aceitando agora que o capitalismo é uma ordem econômica global (e não uma série de aquários isolados na forma de países), Walzer reconhece que as fábricas britânicas do século XIX usaram algodão granjeado por negros escravizados. Mas então ele adiciona: “Consideremos uma possibilidade contrafactual: se não existissem escravos negros disponíveis, o recrutamento de trabalhadores irlandeses teria começado muito antes do que começou. O surgimento do capitalismo não teria sido impedido se o tráfico de escravos inexistisse”. Admitido que o capital tem uma lógica própria — extrair energia humana e não humana para produzir lucro —, então a escravização dos africanos seria uma contingência.

O problema na resposta é tomar a lógica abstrata do capital como equivalente à sua formação histórica. Walzer pressupõe que o capital já estava pronto quando lhe apareceu a oportunidade de engordar devorando os corpos escravizados dos não brancos — povos asiáticos e indígenas também foram escravizados na teia mercantil da modernidade. Na prática, porém, a formação histórica do capital no longo século XVI (1450–1650) envolveu despossessão, escravização, colonização e imperialismo numa escala demográfica, social e ecológica que uma Europa imaginariamente isolada dificilmente atingiria. A história da formação do capital não é igual à lógica abstrata do capital já formado.

Genealogia enviesada

Em sua crítica a Walzer, Olúfémi Táíwò e Liam Bright supõem que Walzer não entendeu o que é capitalismo racial e oferecem uma genealogia do termo. Desaparecem os sul-africanos Alexander, Wolpe, Legassick e Hemson, que elaboraram e difundiram o conceito nos anos 1970, e no seu lugar surgem Eric Williams e Oliver Cox, dois marxistas negros de uma geração genial de Trinidad e Tobago dedicados ao estudo do peso da raça na formação do capitalismo moderno. O problema é que nem Williams nem Cox jamais balbuciaram a expressão capitalismo racial. Cox dizia até mesmo o contrário que Robinson: o capital teria criado a noção de raça tal como a conhecemos hoje.

Mas quem se importa com essas delicadezas? Táíwò e Bright reproduzem a genealogia intelectual que o próprio Robinson criou em Black Marxism (Robinson tem, evidentemente, o direito de fazê-lo; a questão é reproduzir isso acriticamente). Reduzindo o conceito e sua genealogia à imagem (e autoimagem) de Robinson, Táíwò e Bright limam da expressão aquelas raízes intelectuais que dão ao problema da especificidade histórica sua devida relevância e que resistem aos universalismos abstratos trans-históricos recorrentes na academia anglo-saxã.

Estatística, tempo e espaço

Nos seus meandros, o debate se perde num show de horrores. Táíwò e Bright rebatem a afirmação de que o tráfico negreiro poderia ter sido substituído por imigração irlandesa com um dado estatístico. O comércio negreiro arrebatou 12 milhões de africanos “ao longo dos séculos”, ao passo que “para termos uma ideia da proporção, o total da população da Irlanda no século XVII era de menos de 2 milhões de habitantes”. Na réplica, Walzer percebe a brecha e arremete: “Impossível não comentar o truque estatístico de Táíwó e Bright sobre os escravos negros e os irlandeses. Eles nos fornecem o número de escravos trazidos para os Estados Unidos durante dois séculos, e, em paralelo, indicam o mesmo para a população da Irlanda, mas num período inespecífico ao longo do século XVII.” “Para uma comparação acurada”, ensina, “teria sido preciso saber qual o número de escravos necessários às plantações de algodão em um dado ano, de preferência entre o final do século XVIII e o início do seguinte”.

Táíwò e Bright de fato tropeçaram na matemática ao tomar como equivalentes escalas de magnitude radicalmente distintas: movimento de pessoas ao longo de séculos contra o contingente populacional num ano específico. Ao corrigi-los, porém, Walzer tropeçou na geografia e na história. Os 12 milhões de africanos que Táíwò e Bright mencionam vieram às Américas, e não aos Estados Unidos — Walzer caiu refém aqui, mais uma vez, de um recorte nacional inapropriado. O mais importante, contudo, é que a questão não é se havia excedente irlandês para as plantations de algodão em 1780. Os processos de mudança social em larga escala conducentes à Revolução Industrial — pluricontinentais e massivos — já traziam o casamento histórico entre capital e raça fazia séculos: do tráfico negreiro transatlântico à devastação dos maias, astecas e guaranis, das guerras portuguesas no interior da África Central ao tristemente célebre massacre holandês das Ilhas Banda, na Indonésia. Perguntar se havia ou não irlandeses disponíveis para plantations algodoeiras em 1780 é como discutir a altura de uma única onda no meio do tsunami. O raciocínio não faz sentido geográfico. Não faz sentido histórico. Não faz nem sentido lógico.

Pluralidade das formas de dominação

Táíwò e Bright acertam mais a mão quando dizem que precisamos compreender “as formas sociais mais amplas que constituem a vida social sob o capitalismo”. Estudiosos deveriam deixar de lado modelos teóricos e olhar para as relações sociais assimétricas através das quais o capital faz o giro mágico do lucro: “os teóricos do capitalismo racial não estão interessados em saber quais as características que o capitalismo poderia ter tido em algum mundo hipotético”, afirmam. “Descrevem-no com base nos traços que ele de fato tem”. “O capitalismo racial é o único tipo de capitalismo que já tivemos”. É verdade. Na prática, nunca houve capitalismo sem exploração racial.

Por outro lado, é porque a teia da vida se entrelaça com o capital que a raça não é o único princípio pulsante do lucro. Uma produção científica vibrante nas áreas da sociologia histórica, teoria crítica, estudos ambientais, geografia, estudos de gênero, história e economia têm mostrado que o capital opera por um duplo movimento. Ao mesmo tempo que amplia a competitividade dos mercados homogêneos, abstratos e igualitários do dinheiro e das mercadorias, ele restaura suas taxas de lucro ordenando, criando, reforçando e hierarquizando grupos humanos e espaços ecológicos. A raça é um dos moduladores da distribuição desigual de mais-valia. Mas não é o único. Gênero é outro. Exploração de crianças é outro. Defasagem salarial nacionalmente definida (por política cambial) é outro. E devastação ambiental também é um desses moduladores. O capital cria equivalências abstratas e desigualdades concretas ao mesmo tempo.

Para quem acha que mulheres, crianças e ecologia também são submetidas, exploradas, deformadas e destruídas diariamente nas rodas dentadas do capital, o termo “capitalismo racial” pode soar insuficiente. Afinal, a exploração capitalista do trabalho é, ao mesmo tempo, racial, antiecológica, contra o gênero e infanticida. Posta a questão nesses termos, a afirmação aparentemente incontestável — “o capitalismo racial é o único tipo de capitalismo que já tivemos” — se desfaz como um castelo de vento. Dizer que nunca existiu um capitalismo não racial é diferente de dizer que o capitalismo racial foi o único que existiu. Se Walzer confunde lógica com História, Táíwò e Bright confundem História com lógica. Um tipo de confusão facilitado pela abstração excessivamente ampla que Robinson faz do conceito de raça.

Coda

A expressão capitalismo racial terá maior poder de ajudar na articulação de um consenso majoritário contra o arranjo distributivo altamente extrativista do neoliberalismo se o termo “racial” for entendido como alegoria da exploração humana em suas formas mais abjetas: contra os fracos, contra os que não têm exércitos, contra os que não têm sindicatos, contra os que não têm patrimônio material, contra os que não têm dinheiro para o mês seguinte. São negros, indígenas e qualquer grupo humano inferiorizado. São mulheres. São crianças. São todos os que dependem de reservas ecológicas. O capital, no fundo, é contra o gênero humano. Se você disser isso em alto e bom som, já vai “épater la bourgeoisie”. É ela, e não a sociedade como um todo, que não suporta ver seus segredos chamados pelo próprio nome.