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Cansados de esperar

Fumaça antifacista, 2020.

Ainda em pleno vigor em diversos países — como Brasil, Índia e Estados Unidos —, e dando sinais alarmantes de recrudescimento em outros — Espanha, França, Austrália —, a pandemia do Covid-19 não mais se vê acompanhada das regras estritas de quarentena que, de algumas regiões da China às principais cidades europeias, prevaleceram durante o primeiro semestre.

As ruas, antes desertas, retomam aos poucos suas atividades. Mas não como se nada tivesse acontecido. De forma esparsa, desconexa e imprevisível, protestos e manifestações populares reaparecem num mundo talvez cansado de esperar — de esperar pela vacina, de esperar pelo emprego, de esperar pelo apodrecimento final de governos e sistemas fundados na irracionalidade e na injustiça.

Em Hong-Kong, nos Estados Unidos, em Belarus, uma onda de mobilizações passa a desafiar, não mais as precauções que a pandemia vinha impondo, mas as certezas de que o “normal” é uma situação em que uma burocracia autoritária sufoca a liberdade de expressão, em que negros são assassinados por um polícia branca, em que resultados eleitorais se manipulam impunemente, em que a violência dos mercados destrói o futuro e a dignidade de milhões.

Os últimos anos foram marcados pela ascensão de uma direita troglodita em diversas partes do mundo, enquanto se mantinham inabalados os dogmas neoliberais que, hipnotizando de conservadores convictos a social-democratas défroqués, impuseram políticas de austeridade e desmantelamento do Estado desde os anos 1980.

Estaríamos presenciando, depois do Covid-19, o momento de uma “virada”? Num plano pragmático, mesmo governos de direita parecem se assustar com a queda vertiginosa dos índices de atividade econômica; os gastos governamentais aumentam em ritmo desesperado na Inglaterra de Boris Johnson; no Brasil de Paulo Guedes, um forte auxílio governamental à renda familiar provisoriamente arquiva as prioridades de controle do orçamento. Falar em aumento de impostos deixou de ser tabu em alguns setores de opinião. As imposições de uma nova realidade encontram, por outro lado, os hábitos de sempre: em meio ao debate sobre quebra do teto do gasto, o governo Bolsonaro e o Congresso repetem a tecla das desonerações fiscais, começando pelas igrejas evangélicas, seguindo pela construção civil e espalhando-se pelos outros 56 setores que a era Dilma agraciou com bilhões de reais não arrecadados.

No terreno vago em que a atitude política se mistura ao instinto solidário, o discurso da austeridade e a demonização do Estado cedem espaço à revalorização dos entes públicos de saúde: atos de aplauso e gratidão a médicos e enfermeiros do sistema médico gratuito não parecem insinceros. Não se torna tão fácil, aparentemente, justificar como importantes para o controle dos gastos públicos a quantidade de medidas que, seguidamente, sacrificam os servidores desse setor. Fora dos círculos do fundamentalismo financeiro, não tem como não parecer chocante a notícia de que o governo sequer se viu obrigado a gastar na íntegra o orçamento extraordinário destinado à saúde. A hegemonia neoliberal, ainda sólida com certeza, ao menos experimenta algumas fissuras no debate de ideias; é no campo prático da política que se saberá o quanto é possível aprofundá-las.

Mais profundamente, o Covid-19 traz a sensação de que todos estamos “no mesmo barco”: que a sociedade, ao contrário do que diziam Hayek e Margaret Thatcher, não é uma ilusão.

Desta perspectiva, não é acidental que extremados e lunáticos neguem as ameaças do coronavírus. Trump e Bolsonaro não podem conviver com uma realidade que lembre, a cada ser humano, que participa de um destino comum. Negam o aquecimento global do mesmo modo que descreem do coronavírus. Dividem o mundo entre “winners” e “losers”, entre “realistas” e “sentimentais”, entre brancos e negros, entre matadores e suas vítimas.

Poucas vezes a esquerda teve tanta oportunidade de superar esse extremismo genocida. Não tem por que se intimidar quando defende a solidariedade e a razão: vem daí a sua força contra uma direita fanática, cega e truculenta.


Participando de um dos debates online das Rodas de Rosa, o filósofo Vladimir Safatle expressou seu inconformismo face ao que considerava, com razão, uma passividade dos movimentos de oposição ao governo Bolsonaro. Há alguns meses, o que se colocava era um dilema entre o respeito às indicações da saúde pública e a urgência de ir às ruas contra um presidente ativamente engajado numa política de morte e violência. Ao mesmo tempo, a bandeira do “impeachment” não dava mostras de unificar a esquerda. Safatle defendia, com razão, uma atitude mais ativa das oposições. Não faria sentido esperar até que 90% dos cidadãos se convencessem dos erros de Bolsonaro; sequer seria possível “dialogar” com personagens intencionalmente avessos a qualquer argumento racional e à consideração objetiva dos fatos.

A influência de Habermas, continuava Safatle, foi ruim para a esquerda brasileira. Disse isso em tom de brincadeira; poderia ter pensado em Gramsci, talvez uma referência menos presente para sua geração. Mas havia sentido no que disse: seria ingênuo quem confiasse no “diálogo” com quem tem armas na mão e nada na cabeça.

Por outro lado, é preocupante que alguns setores da esquerda brasileira e mundial suspendam seus compromissos com a prática democrática, defendendo ou tolerando regimes autoritários, como o da Venezuela, e cortejando o ativismo militarizado e intolerante de grupos minúsculos e radicais.

A busca pelo diálogo e pelo consenso não exclui a ação política real. Mobilizações coletivas aumentam a voz daqueles que os poderosos não querem ouvir. Protestos violentos contra uma polícia racista são também formas de impor a escuta de quem não está disposto a entrar em diálogo nenhum. Manifestações públicas multiplicam a força das opiniões privadas. Há muita diferença entre reconhecer isso e fazer a justificação intelectual da violência; na conta dessa famosa “parteira da História”, são raros os casos de êxito, e inúmeros os exemplos de retrocesso e de desastre. Pode-se entender que a indignação e a cólera irrompam face a um cotidiano de indiferença e opressão. Não há como superar o autoritarismo, contudo, se não tivermos confiança no argumento, na verdade, na busca do convencimento e no poder da explicação racional. Por frágeis que pareçam, são as que distinguem a atividade intelectual e crítica do endosso à força bruta.


Enquanto isso, a aguda crise vivenciada pelo governo Bolsonaro nos primeiros momentos da pandemia vem dando sinais de arrefecer. Se a demissão do ministro da Justiça Sérgio Moro e a resistência estúpida às mais elementares precauções sanitárias minaram parte da sustentação do presidente junto à classe média, o auxílio emergencial permitiu-lhe ampliar, com sobras, a popularidade junto aos setores de baixa renda. À escandalosa reunião ministerial que explicitou o furor golpista do presidente e de alguns de seus auxiliares — como o também demitido titular da pasta da Educação —, seguiu-se a notícia, publicada na revista Piauí, de que o plano bolsonarista de romper com a institucionalidade democrática não obtém, ao menos por enquanto, apoio das Forças Armadas.

Nada mais arriscado, como se sabe, do que esse tipo de avaliação conjuntural. Os escândalos envolvendo a família Bolsonaro, assim como as dificuldades que o projeto neoliberal de Paulo Guedes experimenta no Congresso e no próprio Executivo, não excluem novos períodos de desestabilização e crise.

Um mínimo de reação popular — as manifestações de torcidas organizadas de futebol em favor da democracia, a greve de motoboys — sugere que não é sem efeito, e sem futuro, o esforço de romper com a inércia prevalente. Novos atores sociais tomam a dianteira na resistência. Os trabalhadores precários, o movimento negro, os índios, os jovens, as mulheres e os movimentos da periferia sabem ser — ao lado da Universidade — os alvos preferenciais da extrema direita; e denunciam os recorrentes casos de brutalidade e preconceito que conhecem na vida cotidiana. Trazem linguagens e referências diversas daquelas conhecidas pela esquerda oriunda dos anos 1970–80, e que a revista Rosa, sem abdicar de seu compromisso crítico, se preocupa em acolher.

Parte dessas energias se canaliza, nos próximos meses, para a disputa eleitoral nas prefeituras, cujos resultados, assim como na sucessão presidencial americana, são ainda incertos. Há poucas dúvidas, entretanto, que a fase mais depressiva da inação já se dissipa. A violência, fruto do medo, da cólera e do desespero, naturalmente seduz quem se sente isolado e sem alternativas. É grande a diferença entre o voluntarismo e a construção de uma vontade comum; esta é a via democrática, com que Rosa procura contribuir.