Achados na superfície: notas da pesquisa por trás do podcast Praia dos Ossos1

Praia do Ossos, Manuela Eichner.
Uma entrevista radiofônica com Jô Lobato e Ângela Diniz sobre a renúncia de Jânio Quadros. Uma mesa-redonda do programa de Flávio Cavalcanti, opondo o pai de Doca Street à mãe de Ângela. A estreia do Buzina do Chacrinha, em que Ângela faria “declarações sobre sua vida em sociedade”. Vinte horas de filmagens feitas em Cabo Frio e Búzios em 1979. Uma radionovela chamada “Amor e morte na Praia dos Ossos”. Esses são alguns dos fantasmas que habitam minha cabeça desde que tomei consciência deles: registros escritos de material audiovisual perdido, destruído, ou arquivado de forma tão bizantina que chegar até ele se provou impossível.
Comecei a pesquisa que serviu de base para o podcast Praia dos Ossos no final de 2018. Quem me contou a história pela primeira vez foi Branca Vianna, e o que ela lembrava, e o que ficou na memória popular de quem acompanhou o caso na época, virou o tema dos dois primeiros episódios do programa: o assassinato de Ângela Diniz pelo então namorado, Doca Street, em Búzios, na Praia dos Ossos, em 1976, e o machismo virulento da defesa dele em 1979, encabeçada pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Evandro Lins e Silva, que se apoiou no argumento da “legítima defesa da honra” para conseguir uma pena leve para o réu. Mas ao revisitar o caso, queríamos trazer mais: queríamos recuperar a figura de Ângela em toda sua complexidade, e sobretudo entender os processos e o contexto social que possibilitaram que ela fosse tratada como a vilã da história mesmo depois de morta.
A pesquisa de arquivo engatou em duas frentes: enquanto eu estabelecia uma residência semipermanente dentro da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional na tentativa de ler cada ocorrência do nome “Ângela Diniz” na imprensa brasileira (perto de mil textos só na década de 1970, e isso só nas publicações digitalizadas), o pesquisador audiovisual Antonio Venâncio se encarregou de sondar emissoras e acervos em busca de registros sonoros. Desde o começo, meu desafio foi a abundância; o dele, a escassez. Quando mandei mais um e-mail perguntando sobre a aparição da Ângela na estreia do Buzina, por exemplo, a resposta foi curta: “Vou tentar verificar mas com quase toda certeza ‘is gone’”.
Os achados que conseguimos resgatar, remando contra a maré do olvido audiovisual brasileiro, são preciosos e incluem uma rara gravação da voz de Ângela. Mas ao mergulhar na cobertura impressa, o que me surpreendeu não foi a dificuldade de acesso ou a falta de material, mas sim a forma em que os processos e as dinâmicas que queríamos explorar estavam na superfície dos textos mais proeminentes. Eu entrei no processo disposta a enfrentar os arquivos mais poeirentos e a vasculhar milhares de páginas — e teve isso também — mas cheguei a me perguntar se o mesmo trabalho analítico não poderia ser feito a partir de uma única chamada numa capa da Manchete, uma pergunta desconcertante colocada por Carlos Heitor Cony: “Doca Street merece castigo?”.
Duas reportagens assinadas por Salomão Schvartzman na mesma revista formam objetos de estudo riquíssimos que examinamos no primeiro episódio do programa. Em janeiro de 1977, enquanto a polícia de vários estados procurava o assassino de Ângela Diniz, Schvartzman ia se preparando para “a mais dramática entrevista” de sua carreira, indo ao encontro do fugitivo no interior do estado de São Paulo. O livro de memórias que Doca lançou em 2006 leva o título Mea culpa; a reportagem de Schvartzman, apesar de ter saído com a manchete “Doca: porque matei a mulher que amava”, poderia ter se intitulado Culpa dela. Começa assim:
Era ma mulher maravilhosa. Sei que estou vivo porque sofro. Sofro a saudade de Ângela, sofro o amor alucinado que lhe dediquei. Jamais conseguirei amar alguém como amei Ângela Diniz. Eu quero morrer. […] Raul Fernando Street, Doca, estava sentado à minha frente, os olhos inchados, vermelhos, a barba por fazer, fumando um cigarro atrás do outro. Olha para mim, bem nos olhos, e confessa: ‘Propus a Ângela que tivéssemos um filho. Eu queria um filho dela. Mas ela não quis, alegando que isso iria enfear seu corpo, que ela era uma mulher do mundo e que um filho agora só iria estragá-la. Mas eu queria que ela voltasse a ser feliz.
Nada sobre o fato de o assassinato ter deixado os três filhos de Ângela sem mãe. Muitos detalhes na sequência sobre a vida laboral do assassino, numa tentativa de deixar claro que ele não dependia financeiramente da vítima. Voltando à entrevista, sempre me espanto com essa “confissão” colocada logo no começo da reportagem: Ângela, a “mulher do mundo” (a frase que os meus dicionários antigos ainda definem como prostituta); Ângela, a antimãe; Doca, procurando a felicidade dela em vão. Esta primeira reportagem termina evocando duas outras mulheres:
Na despedida […] Raul Fernando Street pede um favor. ‘Procure minha mãe. Diga como estou. Diga mais: diga que eu daria tudo para estar junto dela, colado à sua saia. Queria ter minha mãe, agora, ao meu lado. Queria, também, o meu filho. Queria ver [minha mulher] Adelita [Scarpa]. Sei, apenas, que não posso continuar vivendo como estou, enclausurado como um leproso.’ Torno a mencionar o nome de Ângela e ele o repete com um soluço longo, dizendo: ‘Que Deus a conserve…’.
Essa entrevista surtiu efeito — um efeito que foi documentado na segunda reportagem, publicada em março de 1977: “Doca Street: o dia-a-dia da cela. Abatido mas confiante na Justiça, ele convenceu o delegado de Cabo Frio de que não é um leviano mas um homem comum que matou por muito amor”. Nessa segunda peça, encontramos Doca na cadeia de Cabo Frio junto ao delegado local, Newton Watzl, que se diz impressionado com o texto anterior do repórter.
Li sua reportagem sobre o Doca. Gostei, sabe? Você soube mexer com o romantismo que cada um de nós guarda lá no fundo de si mesmo. Falar hoje em dia de amor ou como você escreveu — amor quando não é loucura não é amor — é um lenitivo, como se o Doca fosse um Dom Quixote moderno dentro do nosso mundo materialista.
Aqui, muito antes do discurso virulento do tribunal, estava plantada a semente: a história de um feminicida excepcional, de alguma forma heroica, digno de compaixão e de admiração. Ao ler a referência a Dom Quixote, pensei na mulher impossível idealizada pelo cavaleiro espanhol, Dulcinea del Toboso, de virtude ímpar e beleza sobrenatural — e também na mulher “real” que inspira os devaneios do protagonista, a camponesa Aldonza Lorenzo. Quando as ilusões de Dom Quixote caem por terra, é ele que acaba morrendo, não a mulher amada.
Tentamos falar com Salomão Schvartzman nos últimos meses da vida dele. Ele não quis dar depoimento ou não estava em condições, e acabou falecendo em julho de 2019 — mas segundo nos disseram, ainda estava muito orgulhoso daquelas entrevistas.