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A violência no Brasil e o nosso racismo

Tom Vieira. Juninho 11 anos.

Três pesquisas divulgadas este ano, realizadas por diferentes autores e fontes, em diferentes âmbitos, voltaram a jogar luz ao tema das relações íntimas, articuladas e causais entre racismo, violência e segurança pública.

Em agosto, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o IPEA publicaram o Atlas da Violência 20201. A cada ano, o Atlas traz números oficiais de mortes violentas intencionais registradas pelo sistema de saúde. Esse detalhe, serem números da saúde, é importante, porque as estatísticas das polícias estaduais podem sofrer influências de governadores e secretários de segurança de turno. Não é raro que secretarias de segurança se neguem a fornecer dados sobre homicídios, criminalidade e principalmente sobre mortes decorrentes de intervenção policial. O Atlas é, portanto, uma fonte confiável sobre mortes violentas no país, pois os números são do sistema de informação sobre saúde. Embora as informações não sejam capazes de identificar motivação dos homicídios (se são crimes interpessoais, dinâmicas entre quadrilhas, latrocínios ou mortes decorrentes de ação policial), por outro lado, os números da saúde, que contabilizaram 57.956 homicídios no Brasil em 2018, permitem conhecer os eventos por local, idade, gênero, cor ou raça das vítimas.

Uma das revelações chocantes do Atlas 2020 é que em 2018, negros foram 75,7% das vítimas de homicídios, que também são altamente concentradas entre jovens. Quando olhamos as taxas de homicídios, isto é, o número de mortes ponderado pela população, verificamos que a taxa de homicídios de não negros foi 13,9 por cem mil habitantes e a de negros foi 37,8 por cem mil. Ou seja, para cada não negro vítima de morte violenta, 2,7 negros foram mortos em 2018. O mais preocupante são as tendências raciais do fenômeno da violência letal no país: olhando os últimos dez anos, os homicídios caíram 12,9% entre não negros e aumentaram 11,5% entre negros.

Em agosto de 2020 a Defensoria Pública do Rio de Janeiro revelou que oito em cada dez presos em flagrante no RJ são negros. O estudo foi resultado de um levantamento de 23.497 presos em custódia entre setembro de 2017 e setembro de 2019. A mesma pesquisa mostrou que custodiados pretos e pardos também são os mais agredidos e têm mais dificuldade de obter liberdade provisória. O estudo é impressionante, porque não se trata de uma amostra, mas do universo de pessoas presas em flagrante pelas polícias em diferentes áreas do estado e levadas às audiências de custódia perante juiz, promotor e defensor público. As classificações de cor ou raça são baseadas em autodeclaração dos custodiados.2

As audiências de custódia são um procedimento obrigatório da justiça para presos em flagrante, em que no menor espaço de tempo possível a pessoa presa é levada à presença do juiz, que observa a prisão sob o aspecto da legalidade, avaliando a necessidade ou não de manter o preso custodiado ou se é caso de concessão de liberdade provisória, com ou sem imposição de outras medidas cautelares. É também possível avaliar eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades, além de permitir que o acusado tenha acesso ao defensor o mais rápido possível, assegurando os direitos à defesa e à compreensão do teor das acusações contra si. No Rio de Janeiro, audiências de custódia começaram a funcionar na capital em setembro de 2015. Um pouco depois de dois anos de funcionamento na cidade, o projeto se expandiu e foram inauguradas mais duas Centrais de Audiência de Custódia, uma em Volta Redonda, para atender os presos em flagrante do sul fluminense, e outra em Campos, no dia 30 de outubro de 2017, para atender os presos em flagrante do norte e noroeste fluminense.

Nas audiências podemos verificar sem qualquer filtro o resultado do “trabalho policial”. Porque o juiz ouve pessoas presas em flagrante na véspera ou algumas horas antes. Luiz Eduardo Soares, em Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos (Boitempo, 2019), uma coleção de textos sobre polícia, drogas, raízes da violência, direitos humanos, cultura e poder, já tinha descrito o paradoxo do trabalho policial, cujo mérito é baseado em produtividade medida por prisões, apreensões de drogas e armas. As prisões e apreensões não são o resultado do trabalho lento de investigações ou inteligência, que levaria ao alto da pirâmide da criminalidade. A produtividade policial é buscada diariamente, sofregamente, sistematicamente e repetitivamente no varejo das drogas vendidas em pequenas quantidades nas ruas das favelas e periferias por jovens predominantemente negros.

E é dessa forma que a máquina de encarceramento em massa é colocada em prática todos os dias, ano após ano num país que atingiu uma população carcerária (estimada em 773 mil presos) considerada uma das quatro maiores do mundo. E é dessa forma que as facções das drogas (e, mais recentemente, os grupos de milícias, no caso do Rio de Janeiro), além de grupos criminosos dedicados a crimes contra o patrimônio, são alimentadas pelo ingresso de contingentes ainda maiores de jovens negros das periferias. Num ciclo que começa com o foco do trabalho policial, jovens que estão na periferia dos pequenos crimes ingressam nos grupos armados, cujos conflitos entre gangues, intragangues e com a polícia contribuem para produzir o panorama de homicídios traçado no Atlas da Violência.

Esse panorama é ainda mais violento e racista quando focalizamos exclusivamente as mortes decorrentes de intervenção policial. No Rio de Janeiro, a polícia matou 1.819 pessoas em 2019, entre as quais 86% foram negros. Esse número recorde traduziu um modo de agir policial que se tornou um símbolo das polícias brasileiras, com a folclorização do Bope, a tropa especial que “entra na favela e deixa corpo no chão”, como diz o canto entoado nos treinamentos dos agentes de segurança. Depois de décadas de operações e tiroteios diários no entorno e dentro de favelas, o resultado tinha sido a expansão dos grupos armados exercendo controle nos territórios de pobreza. Facções do tráfico e milícias nunca foram tão poderosas no Estado como atualmente. A violência policial escalou durante os governos Bolsonaro e Witzel iniciados em 2019 e o cenário tornou-se desesperador na vida das favelas, com operações permanentes durante a pandemia de Covid-19, inclusive no momento de ações comunitárias locais para a distribuição de alimentos e materiais de limpeza durante o auge do crescimento da doença. Em abril, a polícia do Rio de Janeiro havia matado 177 pessoas e 129 em maio. Até que em 5 de junho de 2020 o ministro Edson Facchin da Suprema Corte decretou medida cautelar proibindo operações policiais em favelas durante a pandemia, exceto em casos de excepcionalidade, que devem ser justificados ao Ministério Público.

A decisão histórica do STF produziu efeitos simbólicos e práticos surpreendentes: as mortes por ações policiais caíram 74% imediatamente, contabilizando 34 em junho. No mesmo mês, outros indicadores de criminalidade também caíram, demonstrando pedagogicamente que violência policial não tem a ver com controle da criminalidade, pelo contrário. A medida também teve o efeito de um recado para governadores e polícias estaduais, de que existe um Supremo Tribunal que está atento a excessos nas políticas de segurança pública, ainda que um recado tardio.

Um terceiro estudo foi publicado em julho de 2020 pela Rede de Observatórios da Segurança Pública, intitulado Racismo, motor da violência.3 Nos dados apresentados é possível compreender mecanismos mais complexos e menos óbvios envolvidos nas dinâmicas que encadeiam racismo, violência e segurança pública.

Observatórios vêm se tornando mecanismos relevantes de monitoramento e divulgação de dados em várias esferas de conhecimento, como meio ambiente, políticas sociais e ciências. A missão deles é captar e produzir informação para transformá-la em conhecimento útil a diferentes atores. Eles são sistemas organizados e estruturados de coleta, descoberta e análise de informações sobre um determinado setor de atuação.

Durante um ano, observatórios da Rede de Observatórios da Segurança Pública monitoraram acontecimentos sobre violência e polícia em cinco estados (Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo).

Nesse monitoramento, realizado a partir da análise diária de jornais, sites e redes sociais, de junho de 2019 a maio de 2020, foram registrados 12.559 fatos. Foram monitorados 16 indicadores, entre eles a violência contra a população LGBTQI+, chacinas, linchamentos, ataques de grupos criminais, ações de policiamento, sistemas prisionais, racismo e violência contra mulheres.

Os resultados são impactantes e revelam muito sobre as dinâmicas de segurança e atos violentos nesses estados. Por exemplo, foi revelado que o policiamento é o foco de 56% dos fatos registrados. Circula um mar de notícias em sites e jornais e nas redes sobre ações policiais. Entre 7.062 ações policiais observadas, foram registrados 984 mortos, 712 feridos e 27 crianças e adolescentes mortos. As notícias dão conta de parte das “prisões em flagrante” contabilizadas pela Defensoria. As narrativas sobre “traficantes”, “drogas”, “apreensões”, “tiroteios” e “mortes” frequentam todos os dias os jornais, portais e redes sociais.

Em geral, naturalizamos e banalizamos as prisões, os tiroteios e até mesmo as mortes quando eles ocorrem ali onde são previstos: nas favelas e bairros pobres. Em geral, são jovens negros os presos, os apreendidos, os mortos. Mesmo assim, é raro que uma notícia seja veiculada com a descrição de que um jovem negro foi preso, que um jovem negro foi baleado, que um negro foi morto. E assim convivemos com um cotidiano de violências que se repetem quase com naturalidade, como uma forma de ser dos jovens de periferias e dos policiais. E nos surpreendemos todos os anos quando os números do Atlas da Violência são divulgados e percebemos que mais de 70% das mortes são de jovens negros. E nos surpreendemos que mais 80% das prisões cautelares no Rio de Janeiro sejam de negros.

A tendência dos veículos de mídia de privilegiar a fonte policial já era conhecida em outras pesquisas. Dos anos 1950 até os anos 1990, as páginas dos jornais dedicadas às notícias sobre violência e segurança urbana eram chamadas de “páginas de polícia”. Em pesquisa sobre Mídia e Violência de 2004, um estudo levantou que 41% das notícias que circulavam nos grandes jornais de São Paulo e Rio Janeiro tinham como foco principal as ações policiais.4 Mais importante, a pesquisa descobriu que 31% das notícias tinham como fonte das matérias as próprias polícias. Ou seja: as histórias sobre violência eram contadas pelo olhar e pela voz de policiais e autoridades de segurança. Dez anos depois, esse levantamento foi replicado e o quadro tinha se alterado pouco: 36% do foco principal das notícias eram sobre ações policiais e 23% tinham como fonte única as polícias.5

Mas surpreende que duas décadas depois, e mesmo contando com a possibilidade das redes sociais, o monitoramento da Rede de Observatórios revele que quase 60% dos fatos registrados na imprensa, sites de notícias, redes sociais e em grupos de Whatsapp e Telegram durante um ano tiveram como foco as polícias. É claro que temas antes pouco relevantes, como violência de gênero (11%), violência contra crianças e adolescentes (5%) e outros tópicos, como racismo, violência LGBTQ+ e intolerância religiosa, também aparecem no momento atual; e talvez não tivessem tanta relevância há 20 ou 10 anos. Mas as polícias continuam no centro das pautas sobre violência e segurança, mostrado que a internet não alterou substancialmente os discursos sobre esses temas.

Quando olhamos para o volume de notícias sobre ações policiais, verificamos que palavras como “operações”, “prisões”, “suspeito”, “drogas”, “tráfico” são as que circulam com mais frequência nos discursos sobre violência. Em contraste, a palavra “negro” apareceu apenas uma vez nos mais de 7 mil registros relacionados a operações e patrulhamentos. Tanto os estudos mencionados aqui, como o Atlas da Violência e o levantamento da Defensoria Pública, como a observação de longo prazo mostram que o racismo, ou o viés racial, é a variável estruturante mais persistente da violência e da segurança não só pela ação das autoridades públicas de segurança, como pela circulação de notícias sobre crime e violência. Essas esferas — ações policiais e discursos sobre violência e segurança — se confirmam, se justificam, se legitimam.

O monitoramento do Observatório confirmou também que seja em crimes interpessoais, como feminicídio, sejam em linchamentos, violência LGBTQI ou policiamento, o racismo atravessa as dinâmicas e processos. No entanto, entre os mesmos 12 mil registros analisados pelos Observatórios, só apareceram 50 casos de acontecimentos declarados como “racismo”. Ou seja, violência, polícia e cor são raramente articulados abertamente. O contraste entre a realidade dos números e estatísticas e o discurso é tão flagrante que é possível supor que trata-se de um processo tipicamente brasileiro de denegação do racismo e de recalque do assunto.

Quando um policial aborda um jovem negro na periferia, alegando que ele é suspeito de tráfico de drogas ou roubo, esse ato não é contabilizado como racismo. No entanto, os meninos negros de favelas aprendem desde pequenos a temer a polícia. Estão cientes de que podem sofrer abordagens injustificadas, humilhações, espancamentos e morte. Sabem que agentes de segurança, independentemente de serem negros ou brancos, vestem a “cor” das corporações quando colocam a farda, e que essas corporações reproduzem discriminações e racismo desde que foram fundadas, há mais de um século. E é por isso que 80% das prisões em flagrante ao longo de dois anos são de negros: a polícia não contabiliza isto, mas nas ruas praticamente só aborda negros. Portanto, prende majoritariamente negros. E a justiça recebe denúncias contra a maioria de negros e quase todos que que condena em processos de criminalidade comum são negros e nossos presídios são habitados por maioria de negros. Como disse várias vezes Celso Athayde, fundador da Central Única de Favelas, “os presídios brasileiros se parecem com favelas”.

Mulheres negras também enfrentam comportamentos violentos por parte da polícia — como mostra a denúncia sobre uma comerciante que teve o pescoço pisado por um policial militar de São Paulo (em julho de 2020). Elas sabem, ainda, que estão menos protegidas de agressões de companheiros e ex-companheiros violentos, e que podem ser vítimas de violências ordenadas facções do tráfico que dominam lugares onde moram. Nos sistemas penitenciário e socioeducativo, onde predominam detentos pretos e pardos, e onde uma parte expressiva ainda sequer foi julgada e condenada, a ordem é a ausência de direitos elementares.

Notícias sobre homicídios, chacinas e linchamentos raramente circulam com indicações de cor ou raça das vítimas, mas sabemos que idade, cor e classe se combinam de forma explosiva com território. Em determinados bairros, a palavra chacina já denota que as vítimas são predominantemente negras. Mortes decorrentes de ações policiais, mesmo que nunca sejam anunciadas com a declaração de cor das vítimas, ocorrem quase que exclusivamente nas periferias e bairros mais pobres.

O racismo é motor da violência. Ele estrutura um cotidiano de violações que até agora não conseguimos superar. Não superamos, exatamente, porque esses fenômenos atingem, predominantemente, jovens negros e negras moradores das favelas e periferias. Mesmo que fatos envolvendo negros e favelas provoquem indignação e dor a cada vez que aparecem como notícia, a verdade é que o impacto passa rápido, ainda que as vítimas sejam uma menina como Ágatha (morta no Complexo do Alemão em 2019) ou meninos como João Pedro (morto em São Gonçalo em 2020), Juan (morto em Fortaleza em 2020) ou Miguel (morto em Recife em 2020 ao despencar do nono andar de um prédio em que morava a patroa de sua mãe). É surpreendente que esquecemos mais rápido as mortes chocantes por violência ou negligência de crianças brasileiras do que o assassinato George Floyd (morto em maio de 2020 em Mineápolis) ou os tiros sobre Jacob Blake (ferido em agosto de 2020 em Kenosha). Apesar do esquecimento e do silêncio, as dinâmicas de violência e segurança pública são, talvez, a face mais aberrante do nosso racismo, essa característica nacional do Brasil.