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A questão neoliberal: quando a revolução mudou de lado

Resenha do livro Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, de Christian Laval, lançado em 2020 pela editora Elefante

Estudo para guerra de todos contra todos, Marilia Furman.

Em 11 de setembro de 1973, com um brevíssimo anúncio que prometia instaurar a “civilidade, a justiça e restaurar a institucionalidade quebrada” de uma junta militar, presidida pelo general do exército, Augusto Pinochet assume o comando de governo no Chile. O golpe, que assassinou o presidente eleito Salvador Allende, rapidamente se autodenominou revolução, em um movimento comum em boa parte dos países da América Latina. Não se pretende, aqui, tratar propriamente dessas ditaduras militares que marcaram a segunda metade do século XX. Essa breve referência ao Chile deve-se apenas ao fato de que, antes de Thatcher e Regan, foi sob o jugo de Pinochet que se conheceu o primeiro governo explicitamente comprometido a colocar em marcha uma política econômica autoidentificada como neoliberal.

Em todo caso, é preciso tomar o devido cuidado para não atribuir à ditadura de Pinochet a invenção do neoliberalismo1 ou mesmo o marco de primeiro governo subsumido à essa racionalidade política. A relevância de mencionar o Chile se deve mais ao fato de Santiago ter sido o palco da estreia oficial de uma arte de governar que já se apresentava em diversos outros picadeiros no século XX, mas sempre com um número tímido ou modesto. Foi no ano de 1973 que essa companhia se deu conta de que o pudor poderia ser deixado de lado ao subir no tablado calçando coturnos.

O vínculo entre neoliberalismo e crise da democracia é apenas um dos muitos aspectos dessa racionalidade política que podem ser iluminados por essa obra de Christian Laval, cuja tradução foi recém publicada no Brasil pela editora Elefante sob o título Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal.2 Longe de se tratar de uma análise de governos comumente referidos como neoliberais, Laval apresenta em seu livro um estudo bastante característico do debate acadêmico francês. A obra objetiva apresentar duas trajetórias intelectuais, de Foucault e de Bourdieu, tendo como fio condutor a maneira como esses dois autores abordaram precisamente a questão neoliberal. Não há a pretensão de formulação de uma síntese capaz de unificar o pensamento dos dois professores do Collège de France. Laval apresenta uma leitura muito cuidadosa das obras e das trajetórias dos dois autores se atendo ao que separa o pensamento de cada um e, ao mesmo tempo, mostrando como, por caminhos bastante distintos, os dois tocaram a temática do neoliberalismo. Nas palavras de Christian Laval: “trata-se de realizar uma investigação sobre suas próprias investigações”.3 Ainda assim, para além de apresentar uma leitura atenta e coerente das obras dos dois pensadores, Laval mobiliza a potência crítica tanto de Foucault quanto de Bourdieu para oferecer a seus leitores um conjunto de ferramentas poderoso e inovador apto a ser empregado para compreensão da atualidade.

O livro é uma obra simetricamente dividida, a primeira parte é dedicada a Foucault e a segunda parte a Bourdieu. Nesse sentido, o projeto editorial da tradução brasileira privilegia essa divisão ao ressaltá-la em sua formatação com um sumário distinto para cada parte do texto.

Iniciando por Foucault, pode-se destacar que o tema do neoliberalismo aparece de forma direta na obra do filósofo francês em seu curso ministrado no Collège de France, no ano letivo de 1978–1979, intitulado: Nascimento da biopolítica.4 O que se pode depreender com a leitura de Laval é que o neoliberalismo no pensamento de Foucault não se trata de um desvio ou de uma digressão em sua obra.5 Ao contrário, é perfeitamente possível inscrever as lições de Foucault daquele ano no Collège de France na trajetória geral do filósofo, especialmente se for tomado como referência o conjunto das pesquisas que Foucault desenvolvia na década de 1970, em seu esforço de descrever uma genealogia do poder.

De modo mais preciso, os estudos de Michel Foucault sobre o neoliberalismo aparecem como último momento de uma série de análises que ele havia iniciado em seu curso anterior, intitulado: Segurança, território, população.6 Trata-se do esforço empreendido para construção de uma história das sucessivas artes de governar predominantes no continente europeu. No curso de 1977–78, Foucault apresenta, no primeiro terço das aulas, as formas pelas quais pretende trabalhar esta nova temática geral do governo. Além disso, ele também aponta como esse trabalho se inscreve na esteira de suas análises mais amplas de uma genealogia do poder. O recorte apresentado por Foucault toma o poder pastoral do medievo europeu, a Razão de Estado característica do absolutismo, o liberalismo do final do século XVIII e século XIX e termina seus estudos com o neoliberalismo do século XX. Essa sequência percorrida ao logo dos dois cursos mencionados é o que compõe o projeto foucaultiano de fazer uma “história da governamentalidade”.

Nesse sentido, já se pode destacar o que, talvez, a abordagem de Foucault apresente de mais inovador ao tratar do neoliberalismo. Para o filósofo francês, neoliberalismo não é uma ideologia, também não é um conjunto teórico de ideias econômicas, nem se pode tratar o neoliberalismo como apenas uma fase do capitalismo. Igualmente, não se pode confundi-lo com uma agenda econômica de austeridade ou com a financeirização da vida. Para Foucault, o neoliberalismo é uma “racionalidade política”, um conjunto de práticas discursivas capaz de se apresentar como razoável em um dado tempo. Ou ainda, de modo mais abrangente, o neoliberalismo é o componente de governo de um modo de vida, ele corresponde a uma maneira específica pela qual se passou a estruturar o campo de ação da população ao longo do século XX.

Estudo para guerra de todos contra todos, Marilia Furman.

Com esta maneira de abordar o neoliberalismo, é possível observar o fenômeno de um modo muito característico de Foucault tratar as relações de poder. O que emerge dessa análise é toda a positividade, toda a capacidade desta governamentalidade não de reprimir ou tolher condutas, mas de fomentá-las, imprimi-las no espírito público, produzi-las. Desde o princípio da pretensão foucaultiana de desenhar uma genealogia do poder, o caráter positivo, produtivo do poder é uma marca de foco desse pensamento. Nas lições sobre o neoliberalismo o tratamento não é diferente, e um dos traços rascunhados por estes estudos de Foucault indica que, justamente a positividade desta racionalidade política não nasce repentinamente com governos que explicitam sua filiação às agendas econômicas de teóricos famosos da intelligentsia neoliberal. Diferente disso, as aulas de Foucault sobre o neoliberalismo mostram um processo muito mais fino e longo de constituição deste modo de governar, presente já mesmo nas políticas de seguridade social do welfare state, muito antes do golpe de Pinochet ou dos governos Thatcher e Regan, estes dois últimos, inclusive, posteriores ao seu curso no Collège de France.

Qual seria, então, para Foucault, a marca característica do neoliberalismo que permite apontar sua presença mesmo em momentos históricos em que as práticas de governo são tradicionalmente vistas como antíteses do termo? Em uma palavra: a concorrência.

A política neoliberal consiste, então, em criar e sustentar uma ordem concorrencial na qual os sujeitos serão colocados e à qual devem se adaptar, funcionando como empresas, ou seja, como unidades de capitalização privada.7

Desde seu livro A nova razão do mundo,8 Laval e Dardot já apontavam o elemento da concorrência como um caracterizador fundamental do neoliberalismo para o qual Foucault chamou atenção. Trata-se de atentar para o fato de que, ao longo do século XX, a noção de concorrência passou, cada vez mais, a aparecer como uma espécie de regulador social geral. Para colocar em outros termos, o que Laval destaca do pensamento de Foucault é o fato de as ações de governo, já desde a primeira metade do século XX, terem como objetivo uma intervenção exaustiva na sociedade com o propósito de fazer com que ela se comportasse como um mercado.

Com isso, chega-se a um ponto importante que Foucault salienta desta racionalidade política do século XX. Para o pensamento neoliberal, o mercado não é da ordem do natural, ou seja, é preciso criar as condições necessárias para que se possa fazer emergir um mercado por onde circulam interesses mediados pela lógica concorrencial.9 É nesse sentido que o trecho destacado do livro de Laval é tão assertivo, para ele a política neoliberal deve “criar e sustentar um ordem concorrencial”. Assim, o neoliberalismo é uma governamentalidade que nasce fundada não na pretensão de produzir uma sociedade mercantil ou da mercadoria, mas sim com o intuito de criar e manter sempre vivas as condições para a emergência do mercado. Não apenas um mercado de bens e serviços, mas sim um modo de vida próprio em que todas as relações sociais, incluindo aquelas que não pertencem ao domínio próprio da economia, passem a funcionar segundo a mediação geral da concorrência, como se fossem um mercado. Nas palavras de Laval, o objetivo de Foucault ao tratar do neoliberalismo em seu curso sobre o nascimento da biopolítica seria apresentar “uma forma de governo das populações através dos mecanismos de regulação da conduta individual, consistindo em construir o meio social como um mercado”.10

Com essa referência à construção do “meio social” chega-se a um dos pontos talvez mais relevantes da leitura que Laval apresenta de Foucault: a ideia de que as formas de intervenção mais características do neoliberalismo são “intervenções do tipo ambiental”. Em outras palavras, tratam-se de ações que afetam o meio social, produzindo, assim, respostas adaptativas nos sujeitos para se adequarem às novas configurações do ambiente. Este é um ponto que Foucault enuncia apenas en passant em seu curso de 1979, e que Laval reconstrói, com base em referências teóricas de Foucault,11 de modo a dar coerência a essa afirmação no conjunto mais amplo da genealogia do poder. É nesse momento que Laval permite articular as noções de norma, de governo, de meio e de ação humana para indicar como todas elas podem se imbricar de forma coerente no pensamento de Foucault. Nos termos do autor: “[…] o meio em que o homem vive é um espaço normativo enquanto tal, e a ação humana, transformando o meio, não pode transformar senão o próprio homem. O homem necessariamente se produz, produzindo seu próprio meio”.12

Para Foucault, consoante afirma Laval, é sempre essa relação entre meio e indivíduo que importa analisar. No caso do neoliberalismo, o conjunto de intervenções realizadas na sociedade para que ela possa funcionar como um mercado tem como efeito necessário justamente a produção de uma subjetividade particular, a produção de um sujeito capaz de buscar na economia, ou no cálculo econômico, a matriz primeira de intelecção de toda sua experiência vivida. Neste sentido, a prática de governo, por intermédio de intervenções precisas no meio, é capaz de dirigir as condutas humanas, não por uma imposição taxativa ou por meio de uma obrigação, mas pela construção de um sujeito que “naturalmente” tem seus gestos docilmente inclinados em uma direção. Esse sujeito é o homo economicus, “[ele] aparece justamente como o que é manejável, o que vai responder sistematicamente a modificações sistemáticas que serão introduzidas artificialmente no meio. O homo economicus é aquele que é eminentemente governável”.13

Para fazer um esforço um pouco imaginativo, seria possível postular que a utopia neoliberal almejaria a construção de um governo capaz de manejar de tal modo as variáveis do meio a ponto de produzir sujeitos subsumidos irremediavelmente ao cálculo econômico. A intervenção última seria a ação que permite a construção de uma subjetividade que não mais necessita de condução e onde a sua própria concepção de liberdade seria indistinta da norma.

A nova forma de poder, lastreada em um jogo de incitações de tipo concorrencial, considera que é possível dispensar disciplinas e grandes normalizações, agindo direta e autoritariamente sobre indivíduos. Esta é a utopia neoliberal, a de um regime pós-disciplinar […].14

Em linhas muito gerais, este é mais ou menos o ponto a que se chega com as análises de Foucault sobre o neoliberalismo. O que talvez seja ainda interessante observar é que Foucault foi muito criticado por fazer análises apenas de exercícios muito “micro” do poder. Uma crítica recorrente ao pensador francês era justamente de que ele dedicava muito esforço ao entendimento minucioso de instituições, como a prisão, o asilo psiquiátrico, ou o hospital e não abordava as questões “macro” do poder. Os grandes temas do Estado ou da economia seriam negligenciados por ele. Pois bem, o que Laval faz aparecer ao tratar da questão neoliberal a partir dos cursos de Foucault não apenas indica o erro presente neste criticismo, mas evidencia algo de mais interessante. Ele mostra que quando Foucault, com sua genealogia do poder, chega no ponto de abrangência mais ampla das relações de poder, é igualmente o momento onde ele é capaz de mostrar seu funcionamento mais sutil, mais minucioso, mais delicado e, justamente por isso, muito mais evasivo em sua capacidade de dirigir a conduta dos homens.

Deixando agora para traz um pouco essa leitura de Foucault, é preciso anotar que o livro de Christian Laval observa, de modo muito assertivo, que as análises do neoliberalismo não estão encerradas no pensamento de Foucault. É verdade que Foucault apresenta uma maneira de abordar a questão neoliberal muito inovadora. O nascimento da biopolítica foi ministrado mais de quarenta anos atrás e sua publicação no formato de livro, no início dos anos 2000, não cessa de inspirar incontáveis pesquisas e análises que transformaram significativamente a compreensão da arte de governar dominante no século XX. Ainda assim, é preciso considerar que Foucault nunca redigiu um livro com uma tese bem acabada sobre o neoliberalismo, tudo que se tem dele sobre essa temática são parte das aulas do curso de 1979, alguns textos, entrevistas e conferências menos volumosas. Assim, as pesquisas que Foucault apresentou são resultados ainda muito preliminares de um trabalho em andamento. Sendo assim, mais do que postular uma grande teoria acabada sobre essa racionalidade política, o trabalho de Foucault é a abertura de caminhos com o convite a percorrê-los.

Foucault desenvolveu suas reflexões sobre o neoliberalismo fundamentalmente observando um conjunto de transformações que foram se construindo muito paulatinamente entre os anos de 1930 até o final dos anos de 1970. Em oposição a esse longo processo, Laval dedica a segunda metade de seu livro a um pensamento cuja exposição explícita sobre a questão neoliberal se deu em meio à turbulência e ao calor das manifestações dos anos de 1990 contra as reformas na seguridade social francesa.

Em certo sentido, a direção da “utopia neoliberal” aponta para um caminho de crítica interessante de alguns aspectos minuciosos das implicações entre o neoliberalismo e a produção da subjetividade contemporânea, mas não se pode tomar isso como sendo a integralidade das práticas e dos efeitos dessa arte de governar. Se a ambição de conduzir a sociedade como um conjunto de empresas em concorrência produziu, de modo muito eficaz, a hipertrofia do discurso econômico que pôde passar a funcionar como meio de intelecção de todos os aspectos da vida social,15 isso não implicou no abandono de formas menos sutis de exercício de poder. É justamente no enfrentamento, na resistência à imposição de uma agenda econômica de austeridade que aparece, no pensamento de Bourdieu, uma crítica veemente ao neoliberalismo.16

Estudo para guerra de todos contra todos, Marilia Furman.

A primeira observação que precisa ser feita é que Bourdieu não é um continuador de Foucault. É verdade que as análises de Foucault sobre o neoliberalismo foram realizadas mais de quinze anos antes daquelas de Bourdieu, além disso, ambos foram professores no Collège de France. Mas, como bem observa Laval, o aparecimento da questão neoliberal na sociologia de Bourdieu não se reporta, em nenhum momento, aos escritos ou cursos de Foucault. Nesse sentido, o neoliberalismo aparece para Bourdieu como uma decorrência, não só proveniente da urgência de seu tempo, mas também como fruto da adequação do próprio instrumental sociológico bourdieusiano para tratar dessa temática. Com isso, Laval não só aponta para o caminho independente de Bourdieu como ainda afasta o conjunto de críticas que objetivam cindir a sociologia de Bourdieu de sua ação política nos anos de 1990.

Para iniciar pela urgência, é preciso recordar que, em novembro de 1995, durante o primeiro ano da presidência de Jacques Chirac na França, foi apresentado um plano amplo de reformas da seguridade social francesa, o plano Juppé.17 Foi então no contexto das greves mobilizadas para barrar a aplicação dessas medidas que Bourdieu apresenta, publicamente, suas análises e suas críticas ao neoliberalismo.

Em todo caso, Laval salienta minuciosamente que, mesmo não havendo a presença explícita e frequente do termo “neoliberalismo” na sociologia de Bourdieu antes de 1993 ou 1995, é visível a gestação dessa crítica, especialmente quando se observa justamente a descrição apurada feita por Bourdieu de uma grande transformação nas formas mais gerais de dominação, especialmente com o progressivo estabelecimento da Economia como forma científica preponderante: “[…] a compreensão do neoliberalismo, mesmo se o termo não está imediatamente presente em seus textos até esse momento, não surge repentinamente em 1993 ou 1995; vem sendo preparada há muito tempo, pelo registro de uma transformação do sistema de dominação”.18

Uma vez estabelecido o modo como o neoliberalismo desponta no pensamento de Bourdieu, como o sociólogo o entende? O que exatamente Bourdieu está denominando de neoliberalismo? Pode parecer uma resposta simplista, mas, para Bourdieu, o neoliberalismo é sobretudo uma ideologia. Nesse sentido, o neoliberalismo aparece como uma doutrina política extraída da literatura econômica neoclássica. Trata-se da “prática de uma utopia convertida em programa político”.19 Bourdieu é meticuloso e usa de seu poderoso instrumental sociológico para mostrar como foi possível justamente o desenvolvimento e a disseminação dessa ideologia a ponto de ela conseguir reestruturar o funcionamento mais elementar do sistema de dominação vigente. É digno de nota o fato de a sociologia de Bourdieu ter sido erigida justamente de forma a recusar a separação, típica do marxismo ortodoxo, entre superestrutura e infraestrutura. A importância do simbólico na obra do sociólogo já o permitia tratar a própria noção de ideologia com uma complexidade que escapava da sua mera derivação das condições materiais. Assim, mesmo ao se voltar mais propriamente para a economia e para os discursos da ciência econômica nos anos de 1990, Bourdieu não deixa de atentar para o fato de que o simbólico é profundamente produtivo e, por vezes, capaz mesmo de transformar a realidade material. Por isso que ele dá tanta importância à ciência econômica neoclássica, tomando-a como “o âmago do neoliberalismo, que seria, então, primeiramente, um cientificismo fundado sobre o ‘mito walrasiano da teoria pura’”.20

Nessa crítica à Economia neoclássica, evidencia-se um dos pontos que talvez mais separe Bourdieu de Foucault, esta é a diferença que Laval destaca como diferença epistemológica21 entre os dois professores do Collège de France. A denominação de “pseudociência” para se referir a essa teoria econômica já aponta para o que os distingue. Enquanto Foucault postula a verdade como sendo um efeito das relações de poder, e como tal não pode ser tomada como uma οὐσία,22 via de regra, nem mesmo se pode falar em “a verdade” no singular, mas apenas em “uma verdade”, já que sua determinação depende do solo de possibilidades de sua enunciação e está sempre sujeita à contingência da história. Bourdieu, por sua vez, entende a verdade como uma objetividade material que pode ser acessada por uma ciência rigorosa. Ao mesmo tempo, ele postula que o funcionamento do capitalismo opera produzindo um discurso que falseia sua realidade material, esta dimensão simbólica é simultaneamente produto e produtora das relações efetivas que ela visa obscurecer.

Assim sendo, a ambição de Bourdieu é precisamente formular uma sociologia capaz de desnudar a verdade econômica efetiva do funcionamento da sociedade. Essa pretensão de Bourdieu é acompanhada por uma dificuldade que se compõe em um quiasma expresso por Laval do seguinte modo:

[…] enquanto essa sociologia pretendia revelar a verdade econômica reprimida do funcionamento simbólico da sociedade com a ajuda de categorias emprestadas da economia, nessa mesma sociedade, por uma transformação maior do sistema de dominação, a economia econômica tendia a tornar-se, simbolicamente, o nomos universal, a “lei fundamental” e a verdade mais oficial de todos os universos que compõem essa sociedade.23

Em todo caso, o mais interessante na análise de Bourdieu sobre o neoliberalismo, talvez não seja a pretensão que ele atribui a sua sociologia, mas sim o quadro em que o sociólogo expõe a maneira pela qual o neoliberalismo pode saltar dos manuais de economia neoclássica e transformar toda estrutura geral de dominação capitalista. Nesse diapasão, trata-se de dedicar, aqui, algumas linhas para falar do caráter “antiEstado” do neoliberalismo.

A princípio, Bourdieu descreve o neoliberalismo como uma “involução do Estado”, nas palavras de Laval: “O Estado se retira em benefício do mercado na maior parte das áreas, exceto naquelas relacionadas com suas funções repressivas e de segurança”.24 De todo modo, a questão é mais complexa do que a simples identificação do neoliberalismo com a doutrina do Estado mínimo. Quando Bourdieu aprofunda sua análise, mostrando como o neoliberalismo encontra uma de suas portas de entrada exatamente na chamada “nobreza do Estado”, o que o sociólogo faz aparecer não é a simples retirada do Estado, mas uma verdadeira disputa que se trava no interior do ente Estatal. Ele descreve esta luta como uma guerra entre “a mão direita e a mão esquerda do Estado”.

Esse confronto aparece publicamente como o desmonte dos serviços públicos. Passa-se a identificar a prestação dos serviços públicos como ineficientes, os pequenos funcionários públicos, justamente aqueles que atuam mais próximo da comunidade, são repetidamente apresentados como uma despesa elevada demais para ser suportada pelo orçamento público. Para além disso, as obrigações relacionadas à seguridade social são referidas como um gasto insustentável. Esta é a “mão esquerda do Estado”.

Ao minar o fornecimento de bens e serviços, o Estado passa a custear uma política de contenção de populações mais centrada na repressão, garantida pelo incremento, ano a ano, dos orçamentos das pastas de segurança pública. Mas, a mão direita do Estado não é propriamente o conjunto das forças repressivas. A mão direita é a própria “nobreza do Estado”, que para Bourdieu passou a ser formada no âmago da teoria econômica neoclássica e promove a desmobilização dos serviços públicos não para simplesmente suprimi-los, o processo é antes o de uma “destruição criativa”.

Nesse sentido, trata-se de destruir o serviço público em sua função de resguardo de bens e serviços, para fazer com que ele passe a funcionar também como uma empresa, visando a maximização da eficiência por meio da operação de uma lógica concorrencial. Isto desmonta exatamente o espírito comunitário do serviço público. O ataque à “burocracia de nível de rua” finda por atomizar os prestadores de serviço público. A precarização do trabalho é um passo importante justamente para transformar as categorias de servidores em um conjunto de indivíduos que não mais possui um ideal de servir à comunidade, mas apenas tem o propósito de desempenhar uma função remunerada onde o único sentido de suas ações é a competição com os colegas e o montante pago pelo trabalho. Não há mais servidores públicos, apenas funcionários atomizados que realizam uma função dia a dia mais identificada como uma “caridade do Estado”.

Essa transformação nos serviços públicos também tem o efeito de depreciar aqueles que são usuários ou beneficiários de uma política pública. A identificação dos serviços públicos não mais como direitos, mas como auxílios ou programas de assistência faz dos usuários não cidadão membros da comunidade, mas recalcitrantes sob os quais pesa, de antemão, uma condenação moral.

Tudo isso se apresenta como uma modernização econômica, mas, de acordo com Bourdieu, se trata apenas de um discurso falseador do real empregado com o objetivo de ocultar a acumulação de capital, e nesse caso, também o papel servil do Estado nesse processo. No mais, essas transformações nos serviços públicos também não são propriamente uma diminuição do Estado, nem mesmo do ponto de vista do orçamento público. Nas palavras de Laval: “o neoliberalismo se apresenta, então, como uma nova lógica que deve presidir a ação pública”.25 Nesses termos, é preciso entender que o neoliberalismo não é uma doutrina de Estado mínimo, em verdade o que Bourdieu aponta é que, em certa medida, o neoliberalismo é precisamente um estatismo.26 O Estado não se retira, ele é antes o propulsor de uma nova racionalidade que passa a presidir o serviço público de modo a intensificar sua disseminação no seio da população. Não compreender que o neoliberalismo é um estatismo é, acrescenta ele [Bourdieu], não compreender o que é a “conversão coletiva à visão neoliberal que, iniciada nos anos 1970, culminou, em meados dos anos 1980, com a adesão dos dirigentes socialistas”.27

Assim chega-se em um ponto muito importante no tocante aos efeitos políticos que a proliferação da lógica neoliberal produz. No caso concreto, no ano de 1995, enquanto Bourdieu se colocava contra as reformas da previdência e seguridade social francesas, parte do Partido Socialista (PS) saiu em defesa da reforma. Para Bourdieu, essa era uma das evidências de que esta lógica econômica já havia avançado em terreno muito mais amplo do que o que poderia se supor. Um dos mecanismos que permite essa permeabilidade do neoliberalismo é a sua apresentação como “revolução modernizadora”, mas para o sociólogo do Collège de France, o termo mais adequado talvez fosse “revolução conservadora”, com a ressalva de que o paralelo aqui com o que aconteceu na república de Weimar não é tão preciso.

Se essa revolução conservadora pode enganar, é porque ela não tem mais nada, aparentemente, do velho bucolismo Floresta Negra dos revolucionários conservadores dos anos 1930; ela se enfeita com todos os signos da modernidade.28

Para além disso, como muitas das ações da política neoliberal, especialmente aquelas atinentes aos serviços públicos, se apresentam, primeiramente, como um desmonte; a resistência a esse ataque se coloca imediatamente na posição conservadora face à mudança. Ao tomar novamente o caso do plano Juppé, justamente uma das críticas direcionadas àqueles que resistiam à reforma era a acusação de que os insurgentes seriam pessoas resistentes a toda forma de mudança, eles seriam um obstáculo ao progresso e faziam da política terreno para um arcaísmo que já não tinha lugar em uma economia arrojada. Em resumo, os insurgentes eram transformados em conservadores.

Mais do que isso, fato é que, ao tomar o exemplo de Bourdieu, as reformas chamadas “modernizadoras” colocaram o sociólogo em uma posição de defender uma estrutura de Estado e de serviços públicos que ele mesmo criticou durante boa parte de sua carreira acadêmica. Não se trata de uma contradição na trajetória de Bourdieu, mas a questão é que essa “revolução modernizadora”, aos olhos de Bourdieu, nada mais é do que uma aceleração dos mesmos processos de acumulação e concentração que ele sempre criticou, justamente por isso, para ele, se trata de uma “revolução conservadora”. Em outras palavras, ela é uma revolução no sentido astronômico próprio do termo, uma volta completa ao local de partida.

Tudo isso coloca o neoliberalismo em uma aparente posição de ocupar todo o espectro político, é como se toda a ação política estivesse subsumida exatamente à sua lógica. Ele se apresenta como revolução modernizadora, usurpando a bandeira revolucionária de seus opositores, ao mesmo tempo em que ele é profundamente conservador de uma ordem capitalista. O neoliberalismo se coloca em todos os campos, ele é simultaneamente o revolucionário modernizador, o agente das transformações progressivas, o conservador da ordem econômica, e o reacionário que almeja o retorno de uma ordem pública perene.

Nesse sentido, pode-se retomar as análises de Foucault para relembrar aquele conjunto de mecanismos minuciosos que operaram desde o início do século XX, capazes de produzir uma subjetividade adequada à racionalidade política de seu tempo. Por um caminho muito diferente, Bourdieu mostra, em sua sociologia, o desenvolvimento de uma “nobreza de Estado”, sua colonização pela doutrina neoliberal e toda sequência de movimentos que mostram uma aceleração radical dos processos políticos neoliberais a partir dos anos de 1970. O que se pode observar é que esse conjunto de ações finda por sequestrar a política, permitindo ao neoliberalismo ocupar todo o espectro da ação. A revolução muda de campo não porque as esquerdas se tornam necessariamente opositoras conservadoras ao neoliberalismo, mas justamente porque o neoliberalismo se coloca em todos os lados desta disputa. Para retomar, aqui, ao final, a imagem com que este texto foi iniciado, pode-se mencionar novamente o caso do Chile. Ao mesmo tempo em que o neoliberalismo avança ao lado do regime de Pinochet e monta o ministério da economia da ditadura chilena repleto dos chamados “Chicago boys”, esse mesmo neoliberalismo está igualmente ao lado das forças que ao final do regime militar votaram pelo seu término no referendo de 1988.29 Nesse sentido, é válido ouvir a resposta que Milton Friedman dá ao ser perguntado sobre sua participação na ditadura de Pinochet. Ao responder essa questão, Friedman simultaneamente destaca a adequação da ditadura à agenda econômica neoclássica, bem como coloca as forças que puseram fim à ditadura no mesmo campo político do neoliberalismo da Escola Econômica de Chicago.

Nesse exemplo do Chile, não houve uma mudança que fez com que Pinochet se tornasse subitamente inadequado para a racionalidade neoliberal, a violência do regime tirânico ou a retomada de eleições diretas são igualmente parte dessa racionalidade. O fato é que a hipertrofia dessa razão econômica ambiciona a totalidade, não necessariamente o totalitarismo, mas a totalidade das relações sociais que precisam ser subsumidas à lógica do mercado, a totalidade da política que tem seus campos domesticados por essa arte de governar. Seja pela sutileza progressiva da construção da subjetividade do homo economicus, pela imposição enérgica de uma agenda econômica de austeridade, ou mesmo por meio de um golpe militar que institui, à força, uma economia de mercado. O neoliberalismo se apresenta como o único horizonte político, é uma razão fundada na inclusão, não pela distribuição e pela tolerância à diferença, mas por sua capacidade de reduzir toda alteridade às suas próprias formas.

Essas são apenas algumas das muitas análises presentes nesse livro de Christian Laval. As reflexões críticas de Foucault e de Bourdieu são certamente engajadas, mas muito pouco normativas. Engajadas porque elas carregam uma potência crítica bem como oferecem um instrumental teórico rico para a intelecção da nossa atualidade. Ao mesmo tempo, elas não são, e nem têm a pretensão ser, um manual de ação. Em uma entrevista de agosto de 2020,30 Laval afirma que um dos motivos que o levou a reunir Foucault e Bourdieu em um mesmo livro, para além da temática presente na obra de ambos, foi o fato de os dois terem sido intelectuais públicos, homens que colocaram seu pensamento nas ruas e no cerne das questões políticas de seu tempo. Foi esta atitude comum em ambos que Laval teve interesse em ressaltar e que está presente da primeira à última página deste livro.

Por fim, para fazer jus a essa atitude crítica, é válido concluir esta resenha olhando por uma pequena fresta que se pode, talvez, abrir no muro maciço e totalizante do neoliberalismo. Em uma entrevista concedida por Foucault no ano de 1979, o filósofo apresenta uma breve reflexão sobre seu papel de intelectual, Foucault afirma o seguinte:

Acredito que seu papel é precisamente o de mostrar perpetuamente como o que parece evidente em nossas vidas cotidiana é de fato arbitrário e frágil, e que podemos sempre nos revoltar. E que há, perpetuamente e em toda parte, razões para não aceitar a realidade tal como é dada e proposta a nós. […] Meu projeto, creio que é … um dos papéis possíveis, caso contrário do que serviriam os intelectuais, meu projeto é efetivamente multiplicar por toda parte em que é possível, as ocasiões de se insurgir […].31

Nesse sentido, o livro de Laval se inspira profundamente nesse papel do intelectual, de modo que o instrumental teórico que ele apresenta ao público brasileiro nessa tradução certamente não é um manual de instruções, mas pode fornecer inspirações para a insurreição necessária do nosso tempo.