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A dupla verdade do capital: Bourdieu às voltas com o neoliberalismo

Resenha do livro Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal, de Christian Laval, lançado em 2020 pela editora Elefante

Da série Enforcados, Marilia Furman.

O novo livro de Christian Laval surge em boa hora. Não faz pouco tempo que as ideias e práticas neoliberais se estabeleceram como um elemento incontornável de nossa vida política. E, no entanto, testemunhamos hoje um momento de inflexão nessa história. Se é verdade que as implicações autoritárias do neoliberalismo já podiam há muito ser vislumbradas, tendo assumido contornos particularmente nítidos na América Latina e sobretudo no Chile, no presente elas parecem manifestar-se em uma intensidade e em uma extensão sem precedentes. E isso, paradoxalmente, num contexto em que a governamentalidade neoliberal exibe por toda parte sinais de esgotamento, e mesmo de uma profunda crise. A ocasião é, portanto, oportuna para retornar às reflexões de Foucault e de Bourdieu sobre o assunto: ela nos permite atentar para conflitualidades intrínsecas ao neoliberalismo que não somente foram tematizadas por esses autores, mas também, como podemos hoje perceber, exprimiram-se na forma de tensões internas a seus próprios pensamentos.

Esse retorno reflexivo é importante sobretudo no que diz respeito aos escritos de Bourdieu. Suas análises sobre o neoliberalismo não tiveram, afinal, uma fortuna crítica nem de longe comparável àquela dedicada aos textos de Foucault sobre o assunto. Não raro, as considerações do sociólogo francês a esse respeito foram encaradas como uma parte menos significativa de sua obra, tendo merecido após seu falecimento uma atenção substancialmente menor do que outras dimensões de seu trabalho. Um dos grandes méritos do livro de Laval reside, com efeito, em seu esforço original de reexame da sociologia bourdieusiana a partir da questão neoliberal. O autor mostra como, longe de resultar de uma súbita politização do sociólogo bearnês nos anos 1990, sua abordagem sobre o neoliberalismo apresenta continuidades importantes com motivos que marcaram o desenvolvimento de suas pesquisas e de sua teoria nas décadas anteriores. Seria por isso um equívoco contrapor, como muitos fizeram, um “Bourdieu político” a um “Bourdieu sociólogo”. E no entanto, suas investigações sobre o neoliberalismo não consistiram na mera aplicação a um novo problema de um corpo teórico já estabelecido — ainda que o próprio Bourdieu, movido por um permanente empenho de sistematização conceitual, tenha contribuído para gerar essa impressão. A análise da questão neoliberal não representou na trajetória do autor nem raio em céu azul, nem continuidade sem fricção. Ela implicou transformações consideráveis, embora nem sempre explicitadas como tais, em sua visão do mundo social.

Crítica da dominação simbólica

Um aspecto central dessa história, captado de maneira arguta por Laval, reside nas alterações ocorridas ao longo do tempo na concepção bourdieusiana de uma economia dos bens simbólicos ou, dito de outro modo, na relação entre as dimensões econômica e simbólica das práticas sociais. Sendo atravessada desde o início por uma tensão entre essas dimensões, a teoria de Bourdieu — como pretendo argumentar adiante — deriva desse atrito tanto sua produtividade crítica quanto determinados problemas vinculados a sua abordagem do neoliberalismo. Atento a isso, Laval distingue duas variantes da economia geral das práticas, duas “linhas teóricas” que emergem de modo concomitante na obra bourdieusiana, mas adquirem ênfases particulares em períodos distintos da trajetória do autor.

Num primeiro momento, de inclinação “anti-idealista”,1 a utilização de um conjunto de conceitos econômicos (mercado, distribuição, capital etc.) para a análise de fenômenos simbólicos (os gostos artísticos, a educação, a circulação de dádivas, as formas de conhecimento filosófico e científico etc.) serviu ao propósito de revelar os interesses de tipos diversos subjacentes a práticas tidas por desinteressadas. A noção de uma economia dos bens simbólicos exercia, então, uma função crítica: ela permitia romper com concepções naturalizadas de competência individual que ocultam e, nessa medida, contribuem para reproduzir uma distribuição desigual de capitais (econômico, cultural, social, simbólico etc.) que confere às classes sociais oportunidades distintas de se verem reconhecidas como portadoras daquelas atividades consideradas desinteressadas e universais. A força crítica dessa linha teórica torna-se nítida quando se considera o contexto social no qual ela foi articulada: tratava-se, então, de pôr em questão “a conivência entre o culto do Estado e o culto das grandes obras da cultura e da arte, […] o reforço mútuo entre alta cultura, forma de liturgia republicana do Estado cultural e educador, e a dominação da nobreza de Estado saída das grandes escolas […]. É [o sistema de ensino] que permite a perenização e o reforço do poder da nobreza de Estado pela imposição das categorias escolares legítimas separando, segundo a distribuição desigual de ‘dons’, o trigo da elite do joio da massa”.2

Essa variante da economia dos bens simbólicos assumiu uma posição dominante nos escritos de Bourdieu entre meados dos anos 1960 e final dos anos 1970, culminando no seu monumental estudo sobre A distinção. Ela se torna, no entanto, cada vez mais problemática à medida que o neoliberalismo ganha terreno. O recurso a um sistema de conceitos derivados da economia para a análise da dominação simbólica tende, afinal, a perder sua força contestadora uma vez que a teoria bourdieusiana, a despeito de todos os seus matizes críticos, parece vir a coincidir num ponto fundamental com o novo modo de dominação instituído pelo neoliberalismo. Tudo se passa como se sociologia crítica e pensamento neoliberal, apesar de seus estranhamentos mútuos, encontrassem um solo comum na mesma inclinação a remontar as dinâmicas sociais ao princípio econômico da concorrência por bens escassos.

Os problemas dessa aproximação se tornam particularmente visíveis, a meu ver, na interpretação da dádiva proposta pelo sociólogo francês e sustentada mesmo em suas últimas publicações sobre o tema.3 A dádiva, segundo Bourdieu, possui uma “dupla verdade”: sendo vivida sob o registro simbólico da gratuidade e da generosidade (os agentes sociais doam sem expectativa consciente de retribuição), ela configura uma circulação de bens pautada objetivamente pela lógica econômica do interesse e do “toma lá dá cá” (de um ponto de vista estrutural, as dádivas são efetivamente retribuídas). Aqui se vê como o autor procura dar conta da coexistência entre aquelas duas dimensões da vida social, bem com de sua tensão mútua, evitando a unilateralidade de abordagens que tomam o partido de uma em proveito da outra. É graças à distância temporal entre os atos de dar e de retribuir que a circulação de dádivas pode ser vivida como uma série de atos de generosidade e, ao mesmo tempo, consistir objetivamente em um sistema de atos de troca. A despeito da simultaneidade de duas “verdades” inteiramente opostas, a tensão entre elas é apaziguada na medida em que tal hiato temporal abre espaço para que a sociedade “pague a si mesma na falsa moeda de seu sonho” (segundo uma fórmula maussiana cara a Bourdieu). Se os agentes podem viver como desinteressada uma circulação de bens que se mostra ao sociólogo como interessada do ponto de vista estrutural, é porque se submetem a um “autoengano coletivo” que oculta esta última dimensão. Isto é decisivo, pois indica como a interpretação bourdieusiana da dádiva, embora reconheça suas “duas verdades”, estabelece uma assimetria entre elas: a verdade econômico-estrutural é, ao fim e ao cabo, mais verdadeira do que a simbólico-fenomenológica. O que é vivido como generosidade desvela-se estruturalmente como troca. A economia constitui a verdade última do simbólico.

É neste ponto que a teoria de Bourdieu pode ser vista como aproximando-se de tendências neoliberais que ganhavam força no mesmo momento histórico em que o projeto sociológico do autor, em sua vertente anti-idealista, chegava ao ápice de seu desenvolvimento: ambas compartilham, afinal, uma mesma inclinação a ver na dinâmica econômica do toma lá dá cá, na concorrência autointeressada por capitais diversos, a verdade última da vida social. Essa coincidência é certamente paradoxal; ela convive com aspectos centrais da sociologia de Bourdieu que ao mesmo tempo a distanciam do neoliberalismo. A referência a uma verdade econômica última possuía nos escritos do sociólogo francês, como vimos, uma função crítica: ela visava desvelar uma ideologia do desinteresse que contribui para a dominação de classe. Além disso, o autor nunca deixou de ressaltar a especificidade do simbólico e sua tensão com o princípio econômico do toma lá dá cá, vendo nisso uma característica definidora das modalidades simbólicas de capital em contraste com suas variantes econômicas em sentido estrito. E, no entanto, qualquer avaliação da sociologia bourdieusiana como abordagem crítica do neoliberalismo não pode se esquivar de suas aproximações problemáticas com determinados princípios do pensamento neoliberal. O livro de Christian Laval tem o grande mérito de levantar essa questão e de fornecer uma reconstrução consistente das tensões internas à teoria sociológica de Bourdieu. Parece-me, contudo, que seria preciso levar essa interrogação ainda mais adiante do que ele o fez.

A revolução neoliberal

Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal não deixa de esclarecer de modo perspicaz como foi possível que, procedendo a partir dessas bases, o sociólogo francês tenha se tornado um crítico ferrenho do neoliberalismo. Laval argumenta que nos anos 1980 as análises bourdieusianas sofrem uma inflexão significativa, antecipando (embora sem designá-la ainda nestes termos) a crítica ao neoliberalismo que o autor viria a articular na década seguinte. Respondendo às transformações sociais em curso, Bourdieu muda progressivamente a ênfase de sua crítica: o foco se desloca da ideologia do desinteresse, que favorecia as classes e frações de classe detentoras da legitimidade cultural, para um imperialismo econômico que pretende reduzir a totalidade da vida social à sua lógica. Tal como o entende Bourdieu, esse processo não tem nada de automático: ele não resulta de imperativos incontornáveis estabelecidos pelo funcionamento da economia capitalista, mas se estabelece mediante um projeto político de transformação do Estado levado a cabo por grupos sociais específicos, distintos daqueles que eram antes o alvo principal de sua crítica. O neoliberalismo não se confunde, assim, com um mero “recuo do Estado” — e nisso a visão bourdieusiana se distingue do senso comum altermundialista, com o qual o sociólogo bearnês, como mostra Laval, por vezes chegou a se identificar. Ele representa, antes, um projeto de transformação da função estatal por uma nova “nobreza de Estado” cujo programa é tornar este último um agente da economização geral da vida. O projeto neoliberal se impõe, assim, por meio de embates no interior da máquina pública: ele significa uma investida da “mão direita” do Estado (os altos funcionários, notadamente do Tribunal de Contas, os membros do governo e seus especialistas) contra sua “mão esquerda” (os pequenos funcionários de setores como a educação, a saúde e os serviços sociais, cuja função é compensar, sem dispor dos meios necessários, os efeitos mais intoleráveis da lógica mercantil estimulada pela nova “nobreza de Estado”).

Foi em reação a esse imperialismo econômico — bem como às críticas, apresentadas na mesma época, ao utilitarismo de sua sociologia — que Bourdieu procurou reformular aspectos centrais de sua teoria. Também no que se refere aos embates entre as formas de conhecimento, sua crítica muda de alvo: ela não se volta mais tanto para as vertentes idealistas da filosofia e das humanidades, mas sobretudo para a ciência econômica mainstream, com suas ficções matemáticas e sua concepção de ação racional. Ganha relevo, assim, uma segunda “linha teórica” da sociologia bourdieusiana, não mais de perfil anti-idealista, mas antieconomicista ou, como diz Laval, “anticapitalista”.4 Permanecem, em todo caso, continuidades importantes entre elas. No que diz respeito às formas de conhecimento, o que une ambas as variantes da teoria sociológica de Bourdieu, como bem mostra Laval, é a crítica ao ponto de vista escolástico. Assim como a filosofia idealista, a ciência econômica dominante vê as coisas de longe e de cima, de maneira abstrata. À diferença daquela, contudo, suas abstrações são a expressão purificada de um senso comum econômico que faz do interesse monetário mais bruto a verdade última de toda prática social.

A crítica de Bourdieu — como ocorrera antes no caso da associação entre filosofia idealista e processos de legitimação cultural — não se restringe, porém, a apontar as limitações teóricas do pensamento escolástico. Para o autor, a pretensa universalidade da teoria da ação racional não é senão a expressão teórica de uma racionalidade capitalista historicamente situada. Retomando seus trabalhos da década de 1960 sobre as transformações econômicas na Argélia, Bourdieu argumenta que o capitalismo pressupõe a inculcação de disposições específicas que generalizam e naturalizam uma conduta maximizadora, voltada para um futuro de possibilidades abstratas e não mais para um “porvir” concretamente fundado nas regularidades da experiência tradicional. O neoliberalismo representa, para Bourdieu, um passo adiante nesse processo: a extensão das disposições específicas da economia capitalista é continuada, acelerada e, sobretudo, ampliada a todos os campos sociais. Ao imperialismo teórico de um Gary Becker corresponde, então, um imperialismo social mais geral: o nomos econômico agora pretende reger não apenas o campo da “economia econômica” a fim de purgá-lo de todo elemento heterogêneo, mas a sociedade por inteiro — num processo que coloca em xeque a autonomização dos campos tida até então pelo autor como uma característica central da modernidade. A especificidade da visão bourdieusiana a esse respeito consiste, uma vez mais, em desvincular essa dinâmica de qualquer automatismo próprio à economia capitalista: tanto o estabelecimento da economia econômica (como demonstrado, por exemplo, em sua pesquisa etnográfica na Argélia) quanto o imperialismo neoliberal se apoiam numa “revolução simbólica” que, originando-se das lutas sociais, vem a instituir de modo duradouro, nos corpos como nas coisas, um novo princípio dominante e naturalizado de di-visão do mundo social.

Um quiasma insolúvel?

É possível ver nessa inflexão teórica nos escritos de Bourdieu uma inversão da operação crítica de desvelamento característica de sua concepção prévia de uma “economia geral das práticas” — o que me parece sugerido pela análise de Laval, mas não desdobrado em aspectos importantes. Em lugar de considerar o princípio simbólico da generosidade como um recalque da “verdade econômica” da vida em sociedade, trata-se agora de encarar o imperialismo econômico neoliberal como um recalque da “verdade simbólica” das relações sociais. Se, afinal, a ideologia do desinteresse significa o ocultamento (por meio da naturalização e universalização do desinteresse) das estruturas desiguais de distribuição de capitais nas quais ela se apoia, é próprio ao neoliberalismo o ocultamento (por meio da naturalização e universalização do nomos econômico) de todo o trabalho simbólico necessário para a constituição de corpos e de coisas ajustados a um mundo social plenamente economizado. Em suma: se a primeira linha teórica (anti-idealista) se ocupava em desvelar a lógica econômica do simbólico, a segunda (anticapitalista) trata de desvelar a constituição simbólica do econômico. Para Bourdieu, portanto, responder às novas ameaças postas pelo neoliberalismo implicava repensar aquela assimetria entre o econômico e o simbólico que subjazia sua concepção anterior da economia dos bens simbólicos. Não é somente a dádiva que se mostra então fundada em uma “dupla verdade”: o mesmo vale agora — em relação inversa — para o capital, cuja verdade econômica se mostra enraizada em uma verdade simbólica.

Esse movimento certamente tornou a sociologia bourdieusiana mais equipada para tratar criticamente do neoliberalismo, e isso na medida mesma em que a distanciou daquela tendência a afirmar o princípio econômico como verdade estrutural última das relações sociais. E, no entanto, uma questão permanece: sendo cada uma daquelas linhas teóricas o inverso da outra, seria possível, de algum modo, conciliá-las? Ou a sociologia de Bourdieu se mostra, enfim, marcada por uma cisão, um “quiasma” insolúvel?5

Laval pensa que não. Seu argumento é o de que, a despeito de suas diferenças, as duas perspectivas contra as quais Bourdieu se volta — idealismo e economicismo — compartilham uma mesma propriedade: ambas são marcadas por um viés escolástico que as leva a conceber a realidade social com base na figura de “um sujeito racional obedecendo a um modelo de conduta que a teoria constrói a priori e ‘coloca na cabeça’ dos indivíduos”.6 Faltaria a ambas, assim, a noção de que as condutas individuais se fundam em um senso prático engendrado pela socialização em determinados universos sociais e, por isso, mais ou menos ajustado tacitamente às suas estruturas. Esse é, com efeito, um elemento central no projeto sociológico de Bourdieu: sendo ao mesmo tempo senso (na medida em que está ligado a uma experiência corporal) e prático (sendo capaz de responder de maneira razoável às injunções de uma estrutura de distribuição de capitais), essa noção condensa aquelas duas dimensões, simbólico-fenomenológica e econômico-estrutural, que o autor tinha por fundamentais à vida social. Uma vez que vejamos as coisas desse modo, podemos então — com base em Laval, mas em termos distintos dos dele — perceber como cada uma das tendências escolásticas criticadas por Bourdieu se mostra deficitária num aspecto distinto. Ao idealismo, falta atentar à estrutura de capitais e interesses específicos que subjaz às experiências simbólicas tidas por desinteressadas. Ao economicismo, por sua vez, falta atentar para o enraizamento dos interesses econômicos em experiências simbólico-corporais. O viés escolástico da primeira se funda no recalque da dimensão econômica (relativa à estrutura prática da experiência sensível), ao passo que o da segunda se apoia no ocultamento da dimensão simbólica (relativa ao senso vivido das práticas).

Tudo parece indicar, portanto, que a sociologia bourdieusiana contém os recursos para superar os problemas de ambas as abordagens que ela critica, articulando de maneira profícua a tensão entre aquelas duas facetas da vida em sociedade. Sua teoria, nas palavras de Laval, seria capaz de dar conta da “inseparabilidade das duas dimensões da sociedade, a dimensão simbólica e a dimensão econômica”, que “são como ‘a frente e o verso de uma mesma folha’”.7

Penso ser questionável, no entanto, que Bourdieu tenha sido tão bem-sucedido nessa empreitada. As oscilações em sua trajetória mostram, afinal, como seu esforço de considerar em conjunto essas duas dimensões não se deu sem dificuldades. Um problema fundamental que emerge nesse contexto é àquele relativo ao caráter histórico da própria separação entre o simbólico e o econômico. Pode parecer estranho criticar por falta de atenção à história um autor que tanto enfatizou esse aspecto em seus escritos. E, no entanto, embora o sociólogo bearnês tenha sublinhado a “revolução simbólica” que constitui o fundamento histórico tanto do avanço neoliberal quanto da própria economia moderna, suas análises de sociedades pré-capitalistas revelam uma tendência em tratar a distinção mesma entre o simbólico e o econômico como um universal da socialidade humana (o que é reiterado no comentário de Laval, que os trata como “duas dimensões da sociedade”). Tudo se passa como se as relações (assimétricas) entre as duas dimensões estivessem submetidas a transformações históricas — ora é uma que assume primazia, ora é a outra —, mas o mesmo não valesse para a própria diferença entre elas.

Se esse for o caso, então Bourdieu não tem como incorporar reflexivamente à sua teoria o caráter histórico da tensão que a informa, como vimos, de maneira tão central. Isso pode explicar as oscilações de sua sociologia entre o desvelamento da “verdade econômica” (última) do simbólico e o desvelamento da “verdade simbólica” (última) do econômico. Sem que a gênese histórica do quiasma entre essas duas dimensões seja colocado em questão, nada resta ao sociólogo senão tomá-las como dadas e somente jogar uma contra a outra, conferindo primazia por vezes a uma, por vezes a outra. A obra de Bourdieu na década de 1990 oferece um testemunho de como esse problema persiste mesmo após as reformulações em sua teoria. Ao passo que nas análises reunidas em As estruturas sociais da economia, por exemplo, prevalece a visão antieconomicista, num livro como As regras da arte ou em sua interpretação da dádiva predomina o enfoque anti-idealista. A compreensão bourdieusiana do mundo social mantém-se cindida. A despeito do quase desaparecimento de certos conceitos (como o de “mercado”) e o matizamento de outros (como o de “interesse”), o autor continua a conceber a estrutura social como uma concorrência entre agentes movidos pelo investimento em bens escassos. Em sentido inverso, mas complementar, o simbólico continua sendo pensado com base numa fenomenologia do desinteresse que, embora seguidamente mobilizada com o intuito de demonstrar a impossibilidade de redução da vida social ao princípio econômico, tende a aparecer seja como um “encantamento” ilusório, seja como uma força extraordinária e mesmo quase inexplicável.

Talvez em nenhuma outra parte essa dificuldade se mostre mais claramente do que no pós-escrito sobre o amor acrescido ao final de A dominação masculina. Neste texto brevíssimo e altamente ambíguo, Bourdieu reafirma por um lado sua visão desencantada das relações amorosas como “dominação aceita, não percebida como tal” e marcada pela “dissimetria de uma troca desigual”. Ao mesmo tempo, o autor parece ver nessas relações (e “parece” é um termo sem cessar repetido neste pós-escrito) a possibilidade do “milagre do desinteresse”, capaz de arrancar “das águas frias do cálculo, da violência e do interesse a ‘ilha encantada’ do amor”.8 As constantes mudanças de perspectiva, os distanciamentos verbais, o uso abundante de hipérboles (com frequência entre aspas), tudo isso confere aos argumentos do autor um aspecto indecidido, como se não fosse possível manter as duas visões ou linhas teóricas simultaneamente, mas apenas alterná-las.

As tensões do neoliberalismo

Mas o que, afinal, isso tem a ver com o neoliberalismo? Gostaria de sugerir que essa indecidibilidade, essa oscilação entre “verdade” econômica e “verdade” simbólica, não marca apenas a teoria sociológica de Bourdieu, mas também as próprias ideias e práticas neoliberais. A cisão entre os princípios simbólico-fenomenológico e econômico-estrutural não é, decerto, peculiar ao neoliberalismo. Décadas antes da ofensiva neoliberal ela já fora encarada — notadamente por Georg Lukács em História e consciência de classe, embora em termos muito distintos daqueles utilizados por Bourdieu — como uma característica geral da sociedade capitalista. Apoiado na crítica marxiana ao fetichismo, o filósofo húngaro celebremente argumentou que a vida sob o capitalismo se assenta em uma cisão entre o abstrato e o concreto que — tendo seu “protótipo” na forma-mercadoria e sua divisão interna entre valor de troca e valor de uso — se estende potencialmente por toda a sociedade, apresentando-se em formas específicas, mas homólogas, nas diferentes esferas sociais. Considerada desse ponto de vista, a tensão entre os princípios econômico-estrutural e simbólico-fenomenológico que marca a sociologia de Bourdieu pode, então, aparecer como uma expressão conceitual particular dos problemas colocados pelo dilaceramento entre o abstrato e o concreto analisado por Lukács. Por aí se vê um caminho que poderia ter sido seguido caso o sociólogo francês, para além de seu empenho brilhante em ampliar a análise marxiana das classes sociais, tivesse se engajado mais detidamente com as considerações do autor de O capital acerca do fetichismo. Isso poderia ter conduzido, acredito, a um movimento reflexivo por meio do qual as tensões inerentes a sua sociologia, com as quais Bourdieu se debateu até o final de sua vida, se mostrariam enraizadas nas próprias cisões da vida capitalista.

Esse problema assume, em todo caso, uma forma específica no neoliberalismo. Como muitos já argumentaram, um dos traços mais marcantes da dominação neoliberal é a constituição de uma nova figura do homo oeconomicus (o “empresário de si mesmo”) que, à diferença de modos de subjetivação anteriores, caracteriza-se pela incorporação de motivos provenientes das críticas românticas e estéticas ao capitalismo.9 A promessa do neoliberalismo, como discurso e instituição social, é que o sucesso em mercados de todo tipo conduziria imediatamente à realização de um sujeito autônomo e conectado de maneira autêntica consigo mesmo e com o mundo. O indivíduo neoliberal é movido pela possibilidade (e pela demanda) de alcançar uma vida singular e autêntica: autodescoberta e criada experimentalmente, emocionalmente comunicativa e adaptada flexivelmente às condições cambiantes do mercado. Seu horizonte subjetivo — encapsulado de maneira significativa pelo título de um best-seller de autoajuda — é o do desenvolvimento de um Best Self: Be You, Only Better. Não se tem aqui simplesmente a afirmação de uma nova forma de racionalidade abstrata (embora esse também seja o caso); típico da racionalidade neoliberal é justamente que ela se entende não como oposta aos afetos, mas em continuidade com eles. Os mercados são pessoalizados, a vida pessoal é mercantilizada: tudo se passa como se logro mercantil e autorrealização individual fossem uma coisa só — embora a experiência social indique, a todo momento, que esse não bem é o caso. Isso indica uma alteração importante no aspecto assumido por aquela cisão identificada por Marx e Lukács: sob a dominação neoliberal, o conflito extrínseco entre o abstrato e o concreto se torna uma tensão intrínseca em que tais dimensões aparecem imbricadas. No neoliberalismo, interesse (econômico) e desinteresse (simbólico) se confundem e, por isso mesmo, com frequência as tensões entre essas duas dimensões passam despercebidas.

É nesse sentido que a teoria sociológica de Bourdieu pode ser vista como contendo um momento neoliberal: ela se move justamente no terreno movediço das tensões intrínsecas a essa forma de dominação, cuja institucionalização se deu no mesmo período em que a sociologia bourdieusiana tomava corpo. Isso não constitui demérito algum; pelo contrário, é um signo do enraizamento profundo de sua teoria nos conflitos sociais de seu tempo. Como vimos, a crítica de Bourdieu ao neoliberalismo emergiu em boa medida das manifestações, internas à sua teoria, das tensões próprias ao neoliberalismo. Tensões essas que, na crise atual, podem ser vistas como conferindo uma feição própria à “revolução conservadora” neoliberal em contraste com a “revolução conservadora” do entreguerras (um assunto importante examinado pelo sociólogo bearnês e comentado por Laval, mas que não poderei abordar aqui). Foucault, Bourdieu e a questão neoliberal é um livro notável, entre outras razões, por permitir tal retorno reflexivo. Ele fornece não só elementos cruciais para a reconsideração das imbricações entre pensamento crítico e neoliberalismo nas últimas décadas, mas assim também, quem sabe, pistas sobre como sair do atoleiro em que nos encontramos.