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Trégua bolsonarista? Conta outra…

No cenário atual, aquilo que não parece imprevisível é da ordem do catastrófico: dezenas ou talvez centenas de milhares de mortos, manipulação dos números oficiais, quebradeira econômica generalizada e, quiçá, caos social. Por outro lado, em termos políticos, a aceleração é atordoante: caminha-se rapidamente, ainda que não se saiba muito bem para onde. Essa sobreposição inaudita de crises abre brechas antes impensáveis: possibilidades díspares que não se anulam entre si — golpe miliciano, autogolpe, intervenção militar, impeachment, cassação de chapa, guerra civil? — em um momento no qual a conjuntura parece a cada dia nos interrogar sobre o que até pouco tempo era tido por estável e evidente. O que em condições normais seria mero detalhe no curso dos acontecimentos passa a ter um peso considerável: a contingência necessária se afigura quase como salvo conduto para qualquer juízo, que pode caducar tão logo tenha sido pensado. No entanto, descontando o que há de imponderável na conjuntura, pode-se traçar um quadro analítico. Dele, surgem imediatamente as questões: haveria meios de ação para dar contornos mais seguros ao processo? Se sim, quais nos levariam a sair do poço muito fundo no qual fomos arremessados?

Em linhas gerais, sabemos o que se passa: há obstinação por parte de Bolsonaro e sua trupe em esfacelar, deslegitimar e aparelhar as instituições, por dentro e por fora. Por dentro, através do desrespeito e da subversão das normas básicas de organização interna, da interferência com mão pesada em nome de interesses escusos (senão criminosos…) e do aparelhamento via demissão sumária de quadros não alinhados. Por fora, através das milícias virtuais: violência verbal, fichamento de dissidentes, remédios falsos, teorias conspiratórias e disseminação de fake news; e das milícias reais: revogação do rastreamento de armas, autorização da compra de quantidade exorbitante de munição por civis, liberação da venda de fuzis exclusivos das Forças Armadas para privados. O gap entre a violência simbólica, marca característica de toda sua campanha, e a violência real é cada vez menor: uma se converte na outra e ambas se retroalimentam — intimidação de movimentos sociais, de jornalistas, de estudantes, de manifestantes, de cientistas, de profissionais da saúde… É a passagem do protofascismo em potência para o protofascismo em ato, inclusive com discretos mas claros acenos para grupos neonazistas.

Bolsonaro já não é, há muito tempo, apenas mais um líder autoritário de direita, tampouco um populista, seja nos moldes clássicos ou contemporâneos. A crise sanitária precipitou o momento da revelação de sua verdadeira natureza: trata-se de um sociopata que venera a morte. Essa perversidade tanatofílica que se apoderou do Executivo instaura o conflito e o definhamento para proteger — à prova da realidade, dos valores e da vida — sua pele e a da própria família. Não estamos diante de um Estado-Máfia, como alguns exemplares europeus, mas de um Estado-Milícia, de mais uma infeliz monstruosidade que o neoatraso brasileiro tem a expor para o mundo: é o laboratório dessa combinação infernal entre neoliberalismo econômico, devastação institucional, (para)militarização política e um antimessias que semeia a destruição.

Em face desse projeto, como ficamos? Feitas as contas, a situação seria, mais ou menos, da seguinte ordem: nós temos a razão, eles, as armas; é possível combater as armas com a razão? A pergunta pode soar estranha, mas não é absurda. As armas não estão totalmente liberadas (ainda…) e a razão não é inoperante, desde que ela consiga se manifestar na realidade. E essa manifestação se dá por meio de intervenções públicas em jornais, rádios, redes, manifestações de rua, oposição parlamentar, enfim, ela deve se estender a tudo que estiver dentro de nossas possibilidades, evitando armadilhas e exposições desnecessárias. Pode-se dizer que, diante das armas, a razão é impotente: de fato, o poder das pistolas, fuzis e submetralhadoras se impõem. Mas também é verdade que a pressão popular da maioria, ainda que desarmada, encurrala o poder: ou se topa uma aventura de extermínio sem precedentes, ou se aceita a rendição incondicional.

De largada, estamos atrás: o projeto deles é bem mais unido e homogêneo que o nosso — em que as picuinhas e egos imperam. Também pesa o fato de que eles estão no poder e dispõem de formas de repressão e manipulação que não hesitam em usar. Mas, por outro lado, não contavam com a pandemia e nem com a crise econômica, que vai se aguçar profundamente, além da resistência atual de ao menos 40% da população. Entretanto, estamos na encruzilhada: o impeachment se faz urgente e necessário, mas se o tiro sair pela culatra, o que não é improvável dado o loteamento de cargos para atrair o centrão, Bolsonaro sai muito fortalecido para prosseguir com seu projeto ultra-autoritário. Mesmo que o processo se consume, é duvidoso que ele aceite sair pacificamente: a tentativa de destituir um presidente belicista e com apoio de um terço do eleitorado pode ser o início de uma guerra civil. Contando que não temos nem as forças armadas, nem a polícia e nem os civis armados (leia-se: milícia), me parece que perderíamos o braço de ferro, com consequências funestas.

No plano nacional, que um terço da população ainda apoie o governo é, sem dúvida, assustador. Porém, a popularidade de Bolsonaro parece seguir uma trajetória consistente, ainda que irregular, de queda. Não é possível saber quantos são bolsonaristas até a medula e quantos estão dispostos a se desvencilhar da barbárie, mas o caminho, por ora, é explorar todos os meandros para fazer essa popularidade ficar abaixo dos 20%. No plano internacional, Bolsonaro se transforma, pouco a pouco, em um pária — sobretudo por conta dos delinquentes que foram designados para conduzir o Ministério do Meio Ambiente e a Política Externa. Por aí o próprio governo abre sua cova: dois grupos que se esforçam em todos os sentidos para — com total anuência presidencial — macular a imagem do país nas instâncias globais de poder, contribuindo para o processo de isolamento político e econômico.

Contando com a perda de apoio dentro e fora do país, haveria uma possibilidade real de depô-lo e de suportar um possível confronto caso ele se desenrolasse. Se há alguma chance no horizonte, ela só pode se realizar pela unidade e o intenso trabalho em conjunto das forças democráticas. Unidade que chega, como se sabe, muito atrasada: ela deveria ter se formado durante as eleições, para impedir a situação na qual agora nos encontramos. Ainda que ela se efetive, só poderia ser vitoriosa com o apoio maciço da população: não é possível salvar a democracia, mesmo essa nossa frágil e remendada democracia, contra a vontade da maioria — contra a qual até o Estado de Direito mais consolidado, o que está longe de ser nosso caso, ficaria prostrado. Se a queda presidencial que coroaria essa vitória seria realizada via impeachment, cassação de chapa ou julgamento por crime comum é outra história. Provavelmente o impeachment ou a decisão no STF seriam menos traumáticas, pois não envolveriam a destituição conjunta de Bolsonaro e Mourão. Contudo, anular as eleições parece ser a alternativa mais correta e, ao mesmo tempo, mais perigosa: o Exército está à espreita, e a empáfia golpista do inglório Heleno e sua trupe já cantou alto — chancelada pela patifaria hermenêutica de juristas reacionários.

O cenário é sombrio. A ameaça retórica do golpismo mascara o golpe em câmera lenta: à espera do momento da ruptura definitiva, desenrolam-se silenciosa e subterraneamente, com alguns poucos gritos de protesto, os movimentos de uma quase imperceptível guerra de posição, contra a qual demoramos demais para nos mobilizar. Quando ela estiver terminada, não será mais necessário a intervenção final. A democracia morreria sem atestado de óbito, desconhecendo-se momento exato e causa mortis.

Os gregos antigos usavam o conceito de hýbris para designar aquilo que se mostrava desmedido, ultrapassava os limites e, portanto, deveria ser devidamente castigado a fim de que se restaurasse a ordem do universo. A hýbris é o descaso com as coisas, os humanos e os deuses, quando se pensa poder fazer tudo que se quer. Se à hýbris genocida, vil e desumana de Bolsonaro e seus asseclas não se seguir uma punição irretocável, deixaremos mais uma vez a porta aberta para nossos demônios voltarem a nos assolar, sacrificando o povo e fazendo reinar a barbárie.

— começo de junho de 2020