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Teoria em uma pandemia1

english original

Isabella C. Reiche

Hesito em escrever algo diretamente sobre a pandemia da Covid-19. Alguns comentários de teóricos cujos trabalhos li não foram bem recebidos. A maioria parece tomar a forma de tentativas para demonstrar por que a pandemia valida suas visões. Parece uma tolice fazer tais afirmações. E não digo tolice no bom sentido. Lavo minhas mãos a respeito delas.

Então, o que uma teórica ou um teórico deve fazer? Pode olhar os precedentes. Um precedente que está à mão é a pandemia da AIDS. Claro, é uma pandemia muito diferente, mas ainda há coisas a aprender com ela. Uma delas é que a resposta crítica pedia urgência, mas o trabalho propriamente dito levou algum tempo. Demorou um pouco para identificar as situações em que a teoria poderia articular o que estava em jogo e onde suas intervenções poderiam importar.

Outra coisa é que a boa teoria não tenta ser soberana sobre outros tipos de conhecimento. Nesse caso, a teoria poderia ter um papel intersticial, mostrando as lacunas e tensões entre as linguagens: da medicina, do Estado, da indústria farmacêutica, dos grupos ativistas, da cultura gay, da cultura homofóbica e assim por diante. A teoria como um tipo de prática tinha que encontrar seu lugar entre outras práticas.

Há um limite, no entanto, para se tratar do lugar da teoria no mundo da Covid-19 com base em eventos anteriores que possam lhe ser similares. Talvez o mais significativo sobre um evento é o fato de que, se é um evento, o que há de mais significativo sobre ele é que não se assemelha em quase nada a outros eventos. Relacionar-se com ele baseando-se no precedente revela as formas pelas quais ele é igual a um evento passado, mas há o risco de se perder o que há de novo nele.

Isso não precisa nos deixar sem recursos. Apenas significa que o conhecimento exercido pela teoria pode ser de um tipo particular. O evento pode ser sem precedentes, mas temos o precedente de outros episódios inéditos. Temos os precedentes de outros que encontraram maneiras de responder partindo das capacidades de criação de conceitos para nos dotar de ferramentas de pensamento que são melhores do que dar de ombros com resignação ou terror.

A teoria não cria conceitos por si só. Ela é uma prática na linguagem que parece funcionar melhor quando ao lado de práticas que fazem outras coisas. Mais uma vez, a teoria da pandemia da AIDS é, na verdade, um bom paralelo aqui. Os melhores teóricos não desistiram da teoria para se tornarem ativistas. Para ser honesta, não são muitos os teóricos que são bons mobilizando. Não nos iludamos sobre nossos talentos. Mas a melhor teoria, ou seja, a mais útil, foi escrita por aqueles que participaram, muitas vezes em papéis modestos, do trabalho coletivo de resposta à pandemia.

Para fazer teoria sobre a pandemia enquanto ela acontece, esses são os tipos de precedentes que eu seguiria. Mas, que tal fazer uma teoria na pandemia que não trate da pandemia em si? Pois, com certeza a pandemia postula uma das questões fundamentais da teoria para muitas pessoas: como devemos viver?

Se você não está sofrendo de Covid-19, você está sofrendo da vida neste mundo, nesta situação, de modo geral. É possível que você esteja mais exposto a esse sofrimento agora, quando suas diversas distrações e lutas diárias foram interrompidas. É preciso admitir com honestidade que trata-se de um tipo de privilégio ter esse confronto com a própria vida. Mas a teoria não é sempre o produto de algum privilégio? Em vez de nos preocuparmos demasiadamente com ela, vamos apenas tentar usá-la com sabedoria.

Pode parecer perverso perguntar, quando a vida parece tão ruim, o que poderia ser a boa vida. Mas talvez tenha chegado a hora de perguntar isso. Devemos suportar tudo isso só para colocar de pé, novamente, a velha ordem? Sobretudo porque já sabemos que a velha ordem está implicada não só na pandemia, mas nos sinais multiplicadores da insustentabilidade deste mundo tal como ele hoje está configurado.

A teoria, para mim, é uma espécie de metaprática. É ela que tem curiosidade sobre o que as práticas são em geral, sobre o que podem saber, o que podem fazer, o que querem. Não se trata de uma prática soberana sobre as outras. Ela funciona e joga entre as outras. Agora talvez seja o momento de implantá-la em dois tipos de situações. Uma é específica da pandemia e aborda as configurações de poder, conhecimento e exploração implicadas no seu gerenciamento e controle. A outra costuma estar mais voltada para as deficiências cotidianas reveladas pela pandemia.