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Sobre Capitalismo sem rivais, de Branko Milanović

Há muita coisa verdadeira em Capitalismo sem rivais, livro do economista Branko Milanović lançado há pouco pela editora Todavia. Conforme avanço na leitura, vou entretanto me tornando mais cético.

O livro é relativamente curto, claro e bem-organizado. Um capítulo trata do “capitalismo meritocrático liberal”, que Milanović, a exemplo de muitos outros autores, descreve como uma verdadeira máquina de produção de desigualdade social com baixo crescimento econômico.

Rivalizando com esse modelo (cujo exemplo maior são os Estados Unidos), surge no capítulo seguinte o “capitalismo político”, sistema vigente na China e em alguns outros países (Milanović cita Vietnã, Malaísia e Cingapura).

Estaríamos diante de dois “modelos” rivais, e Milanović não aposta poucas fichas na possibilidade de que o “capitalismo político” chinês venha a sair vitorioso. Claro, a China acumula recordes de crescimento econômico nas últimas décadas, e isso parece ser suficiente para o autor fazer uma avaliação grosso modo positiva do que acontece por lá.

O “capitalismo político”, diz ele, não é conveniente apenas para os detentores do poder.

[…] também proporciona algumas vantagens para a população. Se o sistema se associa a uma administração eficiente e a um nível tolerável de corrupção, pode com mais facilidade superar os numerosos impedimentos legais e técnicos que atravancam o crescimento econômico nos países mais democráticos

(p. 118 — traduzo a partir da edição americana, Belknap, 2019)

Afinal, “no mundo frenético e comercializado de hoje, os cidadãos não têm nem tempo, nem conhecimento, nem vontade para se envolver em assuntos cívicos, a menos que estejam diretamente envolvidos numa questão”. (p.119)

Para Milanović, não importa muito, para esse tipo de cidadão, se um sistema é democrático ou autoritário; a preferência será para o sistema que atende melhor as suas necessidades privadas.

Fico espantado. É como se, para ele, os países desenvolvidos crescessem pouco porque há democracia demais. Ecologistas atrapalham a construção de usinas e gasodutos: que chatice! Uma burocracia bem-formada nas escolas do Partido Comunista Chinês é capaz de prover “administração eficiente”. Quanto à corrupção, cria problemas (no sentido de estimular contestações ao regime), mas tem havido sucesso em mantê-la sob controle.

Deixo ao critério de cada um aderir ou não às simpatias políticas de Milanović, que não são as minhas. O problema é conceitual e de método.

Milanović pensa em termos de “modelos” e não de formações históricas. Entre um “modelo” e outro, coloca-se uma questão de “escolha”, ou, pelo menos, surge uma “alternativa histórica”.

No primeiro modelo, o do “capitalismo meritocrático”, todos os fatores se retroalimentam, todas as suas características se intensificam, e por mais horrível que pareça a crescente concentração de riqueza e de poder, tudo “funciona” para o mesmo fim. As pessoas cada vez mais se isolam do interesse coletivo, cada vez mais pensam no exclusivo sucesso material, e graças a privilégios herdados, os ricos se tornam mais ricos. Não há contradições.

O livro simplesmente desconsidera os muitos descontentes do sistema, tanto à esquerda como à direita; desconsidera a iminência de uma catástrofe ambiental; desconsidera a crise financeira de 2008. Não é exagero: são raríssimas, quase inexistentes, suas menções a tais acontecimentos e problemas.

No segundo modelo, Milanović identifica algumas “contradições”, mas a rigor poderiam ser chamadas de “riscos”: uma corrupção fora de controle, uma exigência de maior respeito à legalidade e diminuição do arbítrio decisório poderiam, diz ele, descaracterizar o sistema chinês.

Mas será que estamos realmente diante de um “modelo” diferente de capitalismo? Ou apenas de um capitalismo em fase de ascensão, com uma ditadura política por cima? Sou velho o bastante para me lembrar do quanto se escrevia sobre o “modelo japonês” — empresas que contavam com uma lealdade feudal por parte de seus empregados —, na época em que o crescimento nipônico era a sensação do mundo.

Por outro lado, quando uma economia cresce acima de dez dígitos, num processo frenético de urbanização, tudo parece “eficiente”. Fico pensando se algum economista não terá dito, por volta de 1972, o quanto a ditadura brasileira era “eficiente” em promover desenvolvimento econômico, com investimentos em infraestrutura como a rodovia Transamazônica.

O fato é que China, Europa e Estados Unidos estão em fases históricas muito diferentes; não é possível pensar que sejam “modelos” rivais. Sem querer ser profeta, parece-me impossível que a China sobreviva sem algum forte movimento de democratização. Uma sociedade que se urbaniza e cresce economicamente se torna mais complexa, e seus conflitos também. O crescimento da burguesia e da classe média (penso nas centenas de milhares, nos milhões de estudantes que saem do país para estudar) traz novas demandas de poder e de liberdade. Não sei se isso é “natural”, mas termina acontecendo.

Países como Alemanha, Japão e Coreia do Sul entraram no capitalismo graças a uma forte intervenção do Estado; hoje, para o próprio Milanović, pertencem à esfera do “liberalismo meritocrático”. No que a China seria uma alternativa?

Outra omissão notável no livro de Milanović é a Rússia. Seria, provavelmente, um exemplo de “capitalismo político”; mas como seus níveis de eficiência e crescimento deixam a desejar, o autor achou melhor não levar o caso em consideração.