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Se não fosse por Ruy Fausto, teríamos sido todos mais autoritários1

Ruy Fausto era um sujeito que entendia de Karl Marx (1818–1883), entendia mesmo, de verdade; passou décadas lendo a obra de Marx, colocando-a em atrito produtivo com a de outros bons autores, procurando libertá-la da carga ideológica do autoritarismo soviético, procurando descobrir saídas para os impasses da esquerda.

Levou a sério a crise do marxismo, a denúncia do totalitarismo, e soube aprender com teóricos da democracia como Hannah Arendt (1906–1975) e Claude Lefort (1924–2010). Entendia de Marx o suficiente para saber quando era necessário sair de Marx e quando era necessário voltar.

Sua tolerância com o autoritarismo de esquerda era muito baixa. Foi crítico do chavismo e do castrismo e brigou com muita gente na esquerda brasileira por isso. Se tivesse deixado esses temas de lado, talvez sua influência política tivesse sido maior. Mas não era esse o tipo de influência que buscava.

Lançava suas ideias no espaço público e buscava adensar redes de intelectuais em torno das revistas que fundava. Uma delas tinha o melhor nome de revista política que eu já vi: Fevereiro. Há uma revista marxista chamada Outubro, referência à data em que os bolcheviques tomaram o poder na Rússia. Fevereiro de 1917 foi a revolução russa anterior, de caráter democrático, conduzida por uma imensa variedade de grupos socialistas e não socialistas.

Ruy foi eleitor do PT por muitos anos, mas denunciou com indignação os escândalos de corrupção da era petista. Se fosse só moralismo, seria legítimo, mas era mais: seu projeto socialista exigia a defesa do público, do democraticamente constituído e o combate à sua captura por interesses particulares.

No lançamento de seu livro Caminhos da esquerda, em 2017, debatemos, em São Paulo, Ruy, Samuel Pessôa, Marcelo Coelho e eu. Em um dado momento, comentávamos que o PT tomou diversas medidas contra a corrupção, mas também se envolveu em escândalos terríveis; mais ou menos o que Moro disse outro dia. Ruy comentava: agora o PT está fazendo “a autocrítica errada”, reclamando mais dos órgãos de combate à corrupção que fortaleceu do que dos escândalos em que se meteu.2

É legítimo ter uma opinião mais favorável sobre os governos petistas, mas é difícil não lamentar que mais gente não tenha se agarrado a seus princípios como fez Ruy.

Apesar das críticas à esquerda, Ruy Fausto morreu socialista, morreu tentando conciliar o patrimônio de esperança dos socialistas com a dura lucidez diante dos fracassos do passado. Sabia da dificuldade de conciliar esse propósito com a complexidade das sociedades modernas. Não pretendeu ter solucionado o problema, mas nunca lhe ocorreu desistir. Se o projeto era difícil, se a democracia o fizesse andar ainda mais devagar, paciência.

Como meus companheiros de geração, apanhei muito com seus livros sobre Marx, porque dialética não é para qualquer um, muito menos para mim. Mas todos aprendemos muito com eles. E teríamos sido todos mais autoritários, menos comprometidos com valores, e menos dedicados ao estudo crítico da experiência bolchevique se não fosse por Ruy Fausto, filósofo brasileiro brilhante, professor da Universidade de Paris 8, ex-trotskista, gente finíssima, que morreu em Paris, enquanto tocava piano.