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Ruy Fausto e o pacto com a dialética1

Qual é a relação que existe entre uma sociedade mercantil simples e uma capitalista? Ou, no mundo marxiano, qual a relação existente entre as seções 1 e 2 do Livro I de O capital? Ela é histórica, lógica ou, quem sabe, trata-se, no caso da seção 1, de um simples expediente heurístico? O que significa a interversão das leis da circulação simples em leis de apropriação capitalista?

É uma simples inversão? Quem a opera? Onde ela se dá? Qual é o exato significado do termo trabalho abstrato? A abstração é resultado de um processo de redução ou de generalização? Se for generalização, trata-se aí simplesmente de trabalho em geral? E, se for isso, que generalidade é essa? É real (fisiológica) ou subjetiva? E se for redução, ela é real ou ideal? Quais são as determinações, qualitativa e quantitativa, que constituem o trabalho abstrato? O trabalho simples é abstrato ou concreto? De que modo se relacionam trabalho abstrato e trabalho assalariado? Qual dos dois cria valor? Como eles aparecem no vivido dos agentes? As experiências são as mesmas? Confunde-se ou não com a alienação a indiferença com relação ao tipo de trabalho concretamente executado? E o dinheiro, o que é ele? É uma mercadoria ou não é uma mercadoria? Ele é lógico ou ontológico? É fundamento ou realidade empírica? É o ouro que é naturalmente dinheiro ou é o dinheiro que é naturalmente ouro? É ele o verdadeiro sujeito do movimento constitutivo da sociedade capitalista ou, contrariamente, é simples predicado do sujeito capital? Qual é a verdadeira relação que existe entre as dialéticas hegeliana e marxiana? Será que Marx simplesmente virou Hegel de ponta-cabeça? E, afinal de contas, existe ou não uma Filosofia da História em Marx? Em caso positivo, teremos necessariamente de compactuar com o determinismo historicista do marxismo ortodoxo? E em caso negativo, Marx não teria nada a dizer sobre a existência do homem como sujeito da História? E o jovem Marx? Esposa ele uma antropologia fundante, ou não? Devemos jogar fora o Marx jovem sob a suposição de que ele nada tem a dizer sobre o capitalismo, ou devemos conservá-lo, abraçando, por tabela, um discurso moralizante e antropológico em muitos sentidos estranho ao Marx crítico da economia política? O que significa dizer, como o faz Marx na seção sobre o fetichismo, que a ilha de Robinson, o feudalismo, a indústria patriarcal de uma família camponesa ou o socialismo contêm todas as determinações do valor? Quer ele dizer que o valor existe também aí? Mas, se é assim, o que distinguiria a sociedade mercantil das demais formações sociais? Se não é isso, por que Marx diz que podem se encontrar aí todas as determinações do valor? E qual é o estatuto da lei do valor? Quando é que ela vale? Sempre? Ou só nas sociedades mercantis? Só na mercantil simples mas não no capitalismo? Ou o inverso? Na última hipótese, que papel cumprem então os preços? E na primeira, qual a importância da sociedade mercantil simples se o que queremos entender é o capitalismo?

O maior mérito do trabalho de Ruy Fausto consiste na ajuda imensa que ele nos fornece para ordenar todo esse quebra-cabeças. A leitura cuidadosa que ele empreende da obra de Marx à luz da dialética hegeliana resolve muitos dos enigmas que aí surgem e sobre os quais muitos autores se debruçaram sem encontrar soluções satisfatórias. Seu trabalho, portanto, é o de ler Marx, mas ler acuradamente. O próprio Ruy Fausto (1983) alerta, na Introdução do tomo I de seu Marx: Lógica e Política, que o marxismo envelheceu, mas, ao mesmo tempo, é desconhecido. O que ele quer dizer é que, se é inegável que temos de fazer uma crítica de Marx, precisamos ter clareza de qual Marx se trata, e para sabermos que Marx é esse, convém que o leiamos corretamente. A questão está longe de ser trivial e as razões são fáceis de adivinhar: a profusão quase promíscua de “marxismos” (que obrigou à criação do termo “marxiano” para designar a obra e/ou as colocações e proposições do próprio Marx) e a imensa confusão que surge sempre que a dialética aparece em cena.

Ruy Fausto nos ajuda, assim, a navegar nas águas turbulentas da obra de Marx, usando a dialética como bússola. E como esta é uma aventura extremamente perigosa, prenhe de armadilhas e riscos, a competência do timoneiro afigura-se elemento da maior importância: sem seus conselhos o naufrágio é quase certo! Ressalve-se de antemão que Ruy Fausto só consegue tão bons resultados porque enfrenta destemidamente aquilo que ele chama, seguindo Hegel, de “discurso do entendimento”. Com isso, a dialética revela-se em suas mãos uma arma tão poderosa que chega a causar pena o que sobra de Althusser, Castoriadis, Benetti, Cartelier, Balibar e outros mais. Daí que, uma vez introduzidos no infernal rigor de sua análise, nunca mais conseguimos nos libertar: torna-se quase impossível ler Marx de outra forma.

O modo decisivo com que Ruy Fausto investe a dialética nas questões marxianas produz uma leitura que torna as demais inconsistentes, insuficientes ou, no mínimo, ingênuas. Ele pavimenta o caminho com tanto rigor que não deixa saída a quem se aventura a segui-lo. Guardadas as devidas proporções, tudo se passa como no modelo dedutivo: aceitas as premissas, não há como fugir das conclusões. Assim, Ruy Fausto atualiza a potência do raciocínio dialético, conferindo-lhe um poder insuspeitado (depois de tanta vulgarização) para lidar com os problemas postos na obra de Marx.

Mas ele paga um preço alto por isso: como não se furta a determinadas conclusões, ainda que elas se choquem de frente com os pressupostos lógicos do pensamento convencional, seus desenvolvimentos são criticados mesmo por quem demonstra boa vontade para com a dialética. Texier (1990), por exemplo, afirma acompanhar de bom grado a análise de Ruy Fausto sobre a questão da validade da lei do valor. Assevera sua concordância a respeito da impotência de uma lógica da identidade para pensar contradições reais e não parece se importar de estar avalizando frases tais, como: “se enquanto o valor não é (pré-capitalismo), ele de certo modo é, ele só será plenamente (capitalismo) senão quando de certo modo ele não será (existirá) mais” (Fausto, 1983, p.120), ou, ainda, “e na medida em que, como vimos, não se pode dizer que a lei do valor tenha chegado a existir antes do capitalismo, se deverá concluir que é só quando o valor não é mais que o valor é, ou que o valor só é quando ele não é” (ibidem).2 Contudo, afirma Texier na sequência: “Que a dialética seja o discurso da contradição, admitimo-lo de bom grado. Mas dizer que um pensamento dialético ‘pode ser rigoroso não apesar de contraditório, mas porque contraditório’ nos deixa perplexo” (1990, p.76-7, grifos do autor).3

Para Texier, afirmações deste tipo indicariam uma tendência de Ruy Fausto a “derrapar” em algumas de suas formulações. É o caso de perguntar, porém, no que consiste uma “derrapada” quando se trata de uma formulação dialética. No âmbito do discurso do entendimento é fácil perceber uma derrapada: se alguém diz que A = B e em seguida diz que A ≠ B equivocou-se, derrapou. Evidentemente não é isso que se passa com a dialética (o que não quer dizer que não possa haver derrapadas também aí). Se Ruy gasta um bom número de páginas para mostrar que o rigor e a originalidade do pensamento marxiano residem justamente no fato de Marx pôr no discurso a contradição que o objeto apresenta, evidentemente este discurso é rigoroso porque contraditório (de outro modo a dialética seria tão-somente uma outra lógica e não uma lógica que é ontologia). Fazer a afirmação contrária (o pensamento é rigoroso apesar de contraditório) é implicitamente admitir que o rigor (o verdadeiro rigor) está na lógica da identidade, independentemente do objeto sobre o qual se constrói o discurso.

Derrapada existiria, pois, se Ruy Fausto se eximisse da afirmação que fez, já que estaria fazendo uma concessão inadmissível à lógica da identidade e ao discurso do entendimento. É o rigor de suas formulações, pois, que o leva, por uma questão de necessidade lógica, a fazer a afirmação que tanto chocou Texier. O incômodo deste leitor de Ruy Fausto, apesar da atitude aparentemente camarada com relação à dialética, é resultado do choque frontal com o discurso do entendimento e seus pressupostos lógicos: não derrapar, para ele, significa, é o que se deduz, se instalar na lógica da identidade, fazendo, de quando em quando, concessões à dialética, enquanto, para Ruy Fausto, trata-se justamente do contrário.4

Texier revela o poder de sedução do discurso do entendimento, há formas mais sofisticadas de prestar tributo a essa mesma tradição. No prefácio à segunda edição d’As origens da dialética do trabalho, José Arthur Giannotti (1985) afirma que o livro de Ruy Fausto Marx: Lógica e Política – volume I é um livro labiríntico, marcado pelo desprezo às questões lógicas. Giannotti critica particularmente a forma como Ruy Fausto desenvolve sua leitura dialética de Marx. Trabalhando com juízos (juízo de reflexão, juízo de inerência, juízo de sujeito etc.), em vez de enveredar pela trilha correta dos “objetos reflexionantes”, Ruy Fausto estaria caindo no “jogo do Sujeito e do Predicado” e “renovando a separação entre fundamento e aparência, que o hegelianismo tentou superar” (p. iii do Prefácio à 2ª edição). Para demonstrar sua posição, Giannotti toma inicialmente a questão colocada por Marx na VI tese sobre Feuerbach: “a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade é o conjunto das relações sociais.”5

Giannotti, que trabalha com objetos reflexionantes, entende esta relação como uma relação de igualdade. Marx estaria dizendo: essência humana = conjunto das relações sociais. Ruy Fausto, porém, a compreende como uma relação de negação, uma vez que, em se tratando de um juízo de reflexão, o sujeito se nega (dialeticamente) no predicado e só o predicado é posto. Marx estaria dizendo: a essência humana é negada pelo conjunto das relações sociais. Ruy Fausto, segundo Giannotti, estaria assim caindo na teoria clássica da representação e (sic) cometendo um erro de lógica, já que “no interior da lógica aristotélica, ipso fac to hegeliana [eis como Giannotti se justifica], nem todo é indica predicação. Quando está entre dois nomes aponta simplesmente para uma igualdade” (p. iv).

Essa confusão impediria Ruy Fausto (é o que fica subentendido) de compreender exatamente a natureza da “ruptura lógica entre uma dialética do ser genérico do homem e a dialética de objetividades fantasmagóricas como o capital” (ibidem).

No que consiste de fato a diferença entre essas duas interpretações? Tomemos inicialmente a posição de Giannotti. Se se trata aí com efeito de uma igualdade, o homem (a essência humana) jamais poderá ser entendido como um sujeito em potência, como um vir-a-ser; ele será, para sempre, o que sempre foi: o conjunto das relações sociais. Lendo ao contrário, isto significa: o homem não é nem nunca será; o que é o conjunto das relações sociais. Mas como se trata de uma igualdade, o inverso também tem de ser válido: o conjunto das relações sociais não é nem nunca será; o que é a essência humana. A igualdade que reclama Giannotti redunda, pois, ou numa espécie de antropologia fundante às avessas, na negação plena (vulgar) da essência humana6 (por que não abraçar de vez o estruturalismo?),7 ou numa antropologia fundante de fato (aquela que Giannotti acha “que vai por água abaixo” com sua interpretação). Porém, como a existência está colocada do lado direito da equação, vale dizer, no conjunto das relações sociais (visto que, ao menos no plano empírico, esse elemento tem mais “realidade” que o outro), essência humana, nessa trilha, permanece como generalidade abstrata, legítima pressuposição do universo apenas subjetivo das determinações.

Assim, a despeito dos “objetos reflexionantes” que Giannotti tanto preza, o universo que resulta dessa crítica endereçada a Ruy Fausto é quase kantiano: pressuposição, de um lado, no reino subjetivo, onde cabem apenas determinações dentre as quais não consta a existência; posição (existência), de outro, no reino objetivo. Ora, o que impede Ruy Fausto de cair nessas armadilhas é justamente seu respeito pela dialética. Ou, dito de outra forma, seu rigor na apreensão da contradição, única possibilidade de guarnecer o “discurso teórico” de Marx da ontologia do ser social aí pressentida — que, segundo interpretações autorizadas,8 Giannotti, curiosamente, teria sido dos primeiros a reivindicar. A negação da essência humana não pode, pois, ser absoluta, total, ou, se se quiser, não se trata de uma ruptura lógica entre a dialética do ser genérico do homem e a dialética das objetividades fantasmagóricas.9 O que aqui está em jogo, já se adivinha, são as interpretações das proposições do jovem Marx formuladas por ambos os autores.

Se Giannotti sustenta que Ruy Fausto, pela confusão alegada, não consegue perceber a natureza dessa ruptura, é porque, para ele, trata-se aí efetivamente de dois mundos distintos, incomunicáveis, por assim dizer. Percebendo a dificuldade de compatibilizar as proposições humanistas do primeiro Marx com o papel de suporte reservado aos homens nos escritos do segundo, Giannotti opta por este último e, na formulação feliz de Paulo Arantes, “ajusta-se com recursos próprios à dificuldade de escrever um livro contra seu próprio título”.10 Com isso, porém, Giannotti joga fora igualmente o vir-a-ser do homem como Sujeito, comprometendo, de quebra, o espaço que deveria haver, no universo marxiano, seja para a prática política seja para a reflexão das categorias na esfera do vivido (a experiência da alienação em particular), resultado, este último, não sem consequências, é o mínimo que se pode dizer, para quem pretende de fato investigar as peripécias do ser social, sua objetividade, fantasmagoria etc.

Isto posto, a única possibilidade que temos de escapar desta sorte de “mau infinito” (ou antropologia fundante ou negação da possibilidade de o homem vir a ser sujeito) é Ruy Fausto quem descortina: é preciso negar o homem, mas negá-lo dialeticamente, vale dizer, tomá-lo como sujeito pressuposto (porque ainda na sua pré-história). Porque ele é e não é, ele não desaparece no predicado, ele se conserva, ainda que não exista plenamente (vide Fausto, 1983; especialmente a segunda parte do primeiro ensaio).

É esse tipo de existência (uma existência que não existe) que não cabe no discurso do entendimento. Entender a VI tese como uma igualdade significa não levar às últimas consequências a lógica das formulações dialéticas.

Giannotti se defende da acusação afirmando que, se ele abandona o “logicismo” de seus críticos (logicismo que reclama o respeito pela dialética), não pode mais enveredar pelo caminho de desenvolver todas as possibilidades inscritas nas contradições. Eis aí, involuntariamente expresso, o tributo que Giannotti presta ao discurso do entendimento e eis também explicado por que Giannotti acusa Ruy Fausto de ter cometido um erro de lógica (ao tomar o é da VI tese como indicação de predicação) e ao mesmo tempo critica seu “logicismo”: é que uma lógica devemos respeitar integralmente, à outra devemos fazer concessões. Ruy Fausto, é o que parece estar dizendo seu crítico, teria feito a escolha errada.

A sofisticação dessa crítica está em Giannotti sugerir que é justamente quem procede como Ruy Fausto que cai no discurso do entendimento. Para ele, é preciso abandonar certas ideias feitas a respeito da dialética, e a primeira delas “reside em pensar o movimento dialético inserido entre os polos Sujeito e Predicado” (p. ii). Segundo sua argumentação, não há mais a necessidade de pensar o sujeito como matriz que se determina pelos predicados. Fazer isso seria continuar aristotélico e sustentar uma lógica cuja metafísica deságua numa ontologia da substância. Esta última apresentar-se-ia aí como núcleo infenso à aparência, ao fenômeno de que é o fundamento, e isto equivaleria a “[isolar] o Sujeito e o Predicado, para, em seguida, simplesmente dizer que um vira o outro” (p. iii).

Contra Giannotti cabe argumentar, porém, que o par posição/pressuposição11 não implica o “isolamento” de ambos os elementos, seja como idênticos, seja como distintos. Em ambos os casos seria a lógica da identidade que estaria sendo seguida: A = A; A ≠ B. Além do mais, se um está isolado do outro, um não pode “virar o outro”, não há mágica que dê conta desta transubstanciação. Sendo assim, no caso da VI tese, é lê-la como uma relação de igualdade que redunda na interpretação de Marx que Giannotti imputa a Ruy Fausto e que critica.

Se, ao contrário, a entendermos como uma relação de negação dialética, em que se fala de um sujeito pressuposto através de suas determinações (visto ser esta a única expressão que dele se torna possível), veremos que não é “simplesmente” que um “vira o outro”. Então, não se trata de tomar o Sujeito como “matriz que se determina pelos predicados”. A noção de “matriz” não faz nenhum sentido aí, tampouco a alegação de que a lógica aí considerada descambe numa “ontologia da substância”. Onde, portanto, o caráter “residual” do Sujeito, sua transformação num “núcleo” infenso à aparência? Onde a renovação da separação entre fundamento e aparência que o hegelianismo tentou superar?

Uma das saídas de Giannotti é afirmar que, para que a contradição possa ser incorporada à realidade, vindo a ser um logos, não se deve fazer dela um processo que se desenrola no tempo. A introdução da dimensão temporal estaria, pois, conferindo ao Sujeito dos juízos desenvolvidos por Ruy Fausto o atributo aristotélico da indeformabilidade, da resistência, da invulnerabilidade. Para ele, pelo contrário, “a fim de que a contradição real exista, é preciso que os atributos opostos estejam numa certa presença que não se reduz simplesmente a um ponto de sequência temporal. Requer, assim, um movimento de presentificação que afeta o núcleo substancial do objeto” (p. v, grifos de Giannotti). (Reparemos bem que é o próprio Giannotti quem afirma a existência de um “núcleo substancial” no objeto: se ele não existir, como poderá ser “afetado” pela presentificação de atributos opostos?).

Para elucidar essa postura, Gianotti retoma a análise marxista do valor. Segundo sua interpretação, nessa análise e no pressuposto (ele deveria ter dito suposto), que lhe é imanente, da plena vigência do mercado e da divisão do trabalho, a presentificação da trocabilidade enquanto negação da negação é que garante a efetividade da contradição, seja na possibilidade aí inscrita da existência do dinheiro, seja na constituição do valor “como substância fantástica na travessia de suas aparências, no curso de seus valores de troca” (p.vi). Giannotti procura com isso salientar que “não existe uma substância valor, algo fixo e residual, que pudesse receber determinações contraditórias” (p.vi). Por isso, para ele, a contradição é plena desde o início, desde a constituição da mercadoria, ao passo que, na interpretação de Ruy Fausto, é preciso esperar pelos esquemas de reprodução. De fato Ruy Fausto afirma (e não faz aqui mais do que seguir o próprio Marx) que a interversão das leis da circulação simples em leis de apropriação capitalista só se consuma na seção VII de O capital, com o encadeamento das voltas do capital. Mas o que ele quer dizer com isto? Que antes não há contradição? Claramente não é disso que se trata.

O que Ruy Fausto quer dizer, e esta questão está inevitavelmente imbricada com a do papel da seção I de O capital, é que no plano puro e simples da constituição da mercadoria, presentificada que esteja a contradição, para usar os termos de Giannotti, na plena vigência da trocabilidade, a teoria é a da aparência do sistema, que põe o que nega sua essência: o valor de uso como finalidade, o princípio do intercâmbio de equivalentes, a lei da apropriação pelo trabalho próprio. A interversão dessas leis exige, como não ignora Giannotti, a transformação da força de trabalho em mercadoria, mas não apenas isso. Enquanto as voltas do capital não estão encadeadas, é o que demonstra Ruy Fausto, a relação entre capitalista e operário continua a aparecer como um ato livre que decorre da vontade dos agentes, tal como na circulação simples (nega-se aí apenas a primeira das leis, qual seja, a do valor de uso como finalidade).

Supondo a continuidade, a segunda venda de força de trabalho aparece como um ato forçado, já que operário e capitalista são recriados pelo próprio movimento da reprodução. O contrato livre “é agora a aparência de um ato que não é mais de liberdade” (Fausto, 1983, p.191). O mais importante, porém, é que, com a continuidade, não faz mais sentido comparar salário e força de trabalho, ou seja, uma mercadoria e uma soma de dinheiro que correspondem a seu valor, mas, sim, o valor em dinheiro que é transferido ao operário com o valor que ele produz. Depois de algumas voltas, depois que a totalidade da mais-valia apropriada torna-se equivalente ao montante do capital adiantado, consuma-se a negação da lei de apropriação da circulação simples e do seu fundamento, a troca de equivalentes: ela se transforma na lei da apropriação sem troca do trabalho de outrem.

Eis por que, na interpretação de Ruy Fausto, é preciso esperar a seção VII para que o capitalismo esteja plenamente constituído, vale dizer, para que esteja consumada a contradição entre capital e trabalho. Então há um non sequitur na argumentação de Giannotti. A dimensão temporal que está envolvida nesta espera é claramente categorial, ou seja, lógica. Como relacionar então esta questão com a recusa de Giannotti em pensar a contradição como um processo que se desenrola no tempo, erro esse que impediria sua incorporação à realidade? Onde há presentificação maior da contradição do que em dizer que as leis da circulação simples, ainda que duplamente negadas pelo sistema capitalista, permanecem como sua aparência?

Se, categorialmente, é só com o encadeamento das voltas do capital que se consuma a apropriação pelo trabalho alheio, de que maneira se pode justificar o aparecimento pleno da contradição desde o início, ou seja, desde a constituição da mercadoria? A dimensão temporal recusada por Giannotti tem que ver com a compreensão do homem enquanto vir-a-ser e com os sujeitos pressupostos de modo geral e não pode, portanto, ser apenas categorial: ela é, por definição, histórica, o que, curiosamente, Giannotti parece admitir, ainda que por vias oblíquas, quando afirma que, conforme o sistema vai se determinando, mais carregada de história se torna a passagem de uma categoria a outra. Então a “espera” pela seção VII não pode ser usada como argumento para invalidar a utilização que Ruy Fausto faz dos juízos (por conta de sua suposta inadequabilidade à realidade).

O arrevesado desse argumento de Giannotti revela, no fim das contas, o móvel da totalidade de suas críticas: apesar da sofisticação dos argumentos, sua irritação é com o rigor do procedimento de Ruy Fausto, com sua incrível capacidade de levar às últimas consequências a leitura dialética de Marx. Mas que outra saída existiria para garimpar no universo marxiano a ontologia do social que aí se pressente? Como pensar em abstrações reais, em universais concretos, sem uma imersão no mundo antikantiano das pressuposições objetivas e das posições subjetivas (ainda que, num universo materialista, a primazia caiba às primeiras)? Essa imersão implica abraçar de vez a contradição, e sem ela fica rifada de princípio a possibilidade da desejada ontologia.

Não é descabido lembrar que a estratégia de nosso crítico para enfrentar o mesmo desafio, a via dos “objetos reflexionantes”, acabou não dizendo a que veio e foi colocada de lado. Em seu último trabalho, A apresentação do mundo, Giannotti (1995) se pergunta o que restou de seu antigo projeto de uma ontologia do ser social. A resposta, que ele mesmo fornece, mostra que, daquelas velhas aspirações, teria restado “o compromisso de continuar a examinar formas de sociabilidade, notadamente a lógica do sistema capitalista”. E de que maneira ele cumpriria esse compromisso? Acompanhemos suas palavras: “para isso é preciso tomar enormes distâncias do trabalho realizado por Wittgenstein” (p.18). Mas como é que Giannotti nos “apresenta o mundo” afinal? Justamente com os óculos do referido filósofo, resultado, ele mesmo nos informa, de um trabalho de dez anos de estudo. Nada sugere, pois, que Giannotti esteja fazendo o caminho que ele mesmo indicou como necessário para levar adiante o já bem mais modesto projeto de estudar as formas de sociabilidade, notadamente a lógica capitalista. Antes parece estar trilhando o caminho inverso. Depois de tantos anos de insistência nos “objetos reflexionantes”, Giannotti finalmente os abandona para dedicar-se ao estudo dos jogos de linguagem. Talvez não seja preciso dizer mais.

Dito isso, cabe então perguntar, considerado sempre o mesmo problema, pelo sucesso da estratégia de Ruy Fausto. À medida que a questão for sendo respondida, também ficará demonstrada a inegável importância de seu trabalho e o papel, a meu ver praticamente insubstituível, que ele desempenha quando se trata de entender Marx. Com isso continuaremos a indicar, ao longo deste caminho, alguns dos enigmas que Ruy decifra, permitindo com isso uma leitura mais adequada e mais profícua do discurso marxiano. Como subproduto deste trabalho, veremos também que, a partir de uma leitura rigorosa, críticas consequentes de Marx podem ser feitas, auxiliando-nos a preservar, do universo marxiano, aquilo que ainda tem sentido, considerado o objetivo de investigar criticamente a sociedade moderna. Evidentemente, como a dimensão da obra de Ruy Fausto é já bastante significativa, seria praticamente impossível fazer um inventário completo de todas as suas contribuições. É preciso considerar, assim, que a escolha dos pontos aqui contemplados deve-se à formação de economista da autora destas linhas, importando num recorte muito pessoal desse universo em franca expansão.

Se a questão é pensar a singularidade da sociedade capitalista diante das formações pretéritas, a análise marxiana nos apresenta dois objetos privilegiados, a saber, o dinheiro e o trabalho. Iniciemos pelo dinheiro. É por demais conhecida a forma como Marx “deriva” o dinheiro em sua apresentação das formas do valor. Sua constituição como equivalente geral, é o que se lê, mostra-se como resultado da externalização da contradição interna à mercadoria mesma entre valor de uso e valor. Ele se coloca, pois, como o elemento que, em sua singularidade, subsume a infinitamente vária diversidade do mundo das mercadorias (determinada pelos seus diferentes valores de uso) e resolve, com isso, a contradição entre universal e particular implicada pelas duas formas anteriores do valor (forma simples e forma total). Como pensar então a relação entre dinheiro e mercadoria? “Poder-se-ia dizer”, pergunta Ruy Fausto, “que a mercadoria e o dinheiro são simplesmente coisas diferentes? Não. Diferentes, simplesmente, são duas mercadorias quaisquer, umas em relação às outras ... E como justificar a afirmação de que se trata de contrários? Eles são contrários porque, por um lado, um é o gênero do outro: o dinheiro é a mercadoria geral ou universal; mas porque, ao mesmo tempo esse gênero existe ao lado das espécies e dos indivíduos que o compõem: o dinheiro é também uma mercadoria. É essa dupla condição de gênero e de indivíduo, de indivíduo-gênero, que faz da coisa social dinheiro o contrário de cada mercadoria” (1983, p.98).

Assim, na interpretação de Ruy Fausto, trata-se, no caso do dinheiro, de uma generalidade posta, e como o geral, em sua concretude, não é possível enquanto tal, o dinheiro se põe como universalidade, como universal concreto. Se aliamos a isso sua interpretação das proposições “o capital é mercadoria” e “o capital é dinheiro” como juízos de inerência, que, no entanto, podem se transformar em juízos de reflexão, temos armada então uma excelente “plataforma de lançamento”,12 para pensar, sob outra luz, toda uma série de fenômenos do capitalismo, incluindo os contemporâneos. Como indiquei em outro lugar (Paulani, 1992), as crises de realização podem ser vistas como o predomínio, em determinadas situações, da presença do dinheiro como indivíduo-gênero, enquanto nas hiperinflações sua presença (no caso, negativa, vale dizer, presença de sua ausência) se dá como a de gênero-dos-indivíduos, revelando escandalosamente a pura forma, que ele essencialmente é.

Na mesma trilha, podemos entender também, com mais facilidade, o equívoco de Marx quando insistia que, no caso do dinheiro mundial, seria preciso que interviesse necessariamente o “valor em pessoa” e que o ouro era a única aparência capaz de conferir ao dinheiro tal dignidade. Marx, como se sabe, foi desmentido, nesse particular, pela evolução do capitalismo — parcialmente, nos anos 30; completamente, nos anos 70; e cabalmente, hoje — com o absoluto predomínio da etérea dimensão financeira do capital. Resultante da conjunção do “padrão-dólar”, consagrado pelo calote de Nixon em 1971, com a abertura e desregulamentação dos mercados financeiros a partir de meados dos anos 80, tal predomínio, contudo, era um desfecho previsível em razão da retirada de cena do “valor em pessoa”, tão presente no tempo de Marx (mundo do domínio inglês, da vitória de Ricardo, do Bank Act de 1844, do padrão-ouro como lei máxima).13 Marx, que demonstrou como poucos a dimensão suprassensível que possui o dinheiro, inscrita que está na análise lógica por ele desenvolvida, foi, no entanto, traído pelo momento histórico que vivenciou. Ainda assim, é só a partir de suas colocações, desde que lidas com o precioso auxílio das análises de Ruy Fausto, que podemos compreender com exatidão qual é a natureza das transformações em questão.

É nesse mesmo diapasão que deve ser considerado o outro objeto. A discussão a respeito do estatuto do trabalho na lógica da sociedade capitalista, assentada nas colocações de Marx, é sabidamente multifacetada. Interessa-me aqui, particularmente, a questão da forma de inserção da força viva de trabalho nos processos materiais de produção. Marx, como se sabe, apesar de analisar em separado processo de trabalho e processo de valorização, indica também que, no caso particular do capitalismo, a forma material do processo de trabalho denuncia a sociedade na qual ele se insere. Isto posto, faz uma análise magistral do movimento por meio do qual, por força dos ditames da lógica capitalista, o processo de trabalho torna-se completamente objetivado. Mediante uma desqualificação paulatina da força de trabalho e de uma concomitante especialização dos instrumentos de trabalho, esse movimento (que é lógico e histórico) culmina com a introdução da máquina. A famosa “subsunção real do trabalho ao capital”, que então se realiza, daria assim por findo o processo.

Do ponto de vista dos processos materiais de produção, porém, duas grandes transformações acontecem desde o momento em que Marx pensa tal movimento. No início deste século, as chamadas revoluções fordista e taylorista impõem inúmeras alterações, tanto no modo como se gerencia o processo produtivo quanto em sua base material. Consideradas conjuntamente, ambas visavam racionalizar o processo produtivo, retirar dele qualquer laivo de autonomia do trabalhador, colocá-lo inteiramente sob o comando da máquina. Mas já não era assim? A introdução da máquina já não havia feito isso, já não colocara o trabalhador como apêndice?

A outra grande transformação está ora em curso e novamente se dá nos dois planos, gerencial e material. Temos, de um lado, aquilo que já se convencionou chamar de “acumulação flexível” e, de outro, o virtual desaparecimento, em alguns setores, dos blue collars. Os dois planos se confundem nessas duas tendências, mas o que importa destacar é que, do ponto de vista do papel da força viva de trabalho, duas possibilidades (não mutuamente exclusivas) estão postas: ou seu desaparecimento (naquilo que Ruy Fausto chama de “pós-grande indústria”), ou sua posição enquanto corresponsável pela produção, seja sob a forma da autonomização e da terceirização, seja internamente à empresa, sob a forma de sua submissão aos imperativos da qualidade total, do just in time, da produção costumeirizada e em pequenos lotes etc.

Como ficamos agora? No caso do desaparecimento da força viva de trabalho, apesar da imensa contradição que se gera por conta da permanência da forma capitalista, o movimento não teria feito mais do que seguir sua própria lógica. Mas, e no segundo caso? Então todo o esforço de Taylor e Ford teria sido em vão? Então o trabalhador agora vai vivenciar uma outra experiência, vai se reconhecer na produção? Ou quem sabe estamos inaugurando de fato uma nova era, um pós-capitalismo? Essas colocações traem decerto ironia, mas não é demais lembrar que, por conta dessas alterações, o presidente Fernando Henrique Cardoso, insuspeito, como se sabe, de falta de lustro ou formação crítica, afirmou que “nós estamos vivendo uma revolução tecnológica que faz revalorizar estes aspectos da criatividade, de responsabilidade individual, da liberdade…”, não sem antes sugerir que os operários seriam, agora, os artesãos, com assinatura e tudo, dos produtos em cuja fabricação estivessem envolvidos.14

Como pensar tudo isso? Consideremos a primeira das transformações. Aparentemente coloca-se aí um dilema, pois, ou é preciso admitir que Marx errou redondamente, uma vez que com a mera introdução da máquina o processo de trabalho não estaria ainda plenamente objetivado, ou é preciso recusar o fordismo e o taylorismo enquanto “revoluções”, entendendo-os como meros “ajustes” num movimento que já estava logicamente concluído. Nos dois casos, o preço a pagar é muito alto. Se ficamos com a primeira alternativa, temos também de recusar as conclusões quase triviais de Marx a respeito das brutais alterações que se operam no processo material de produção quando da introdução das máquinas. Se ficamos com a segunda, porém, não temos como justificar o imenso impacto causado pelo fordismo e pelo taylorismo, restando a impressão de que tal argumentação destina-se apenas a “salvar Marx”.

Pensemos agora nas transformações contemporâneas. Evidentemente, as questões agora ganham um grau de complexidade ainda maior: de um lado, temos a possibilidade do desaparecimento do trabalho com todas as consequências que isto acarreta do ponto de vista da própria ontologia da sociedade moderna; de outro, temos a recondução da força viva de trabalho a um papel de destaque dentro do processo produtivo, implicando uma espécie de anulação do movimento de objetivação que a vitimava desde o surgimento das máquinas. Novamente duas alternativas parecem despontar: ou fechamos os olhos às transformações atuais e simploriamente declaramos que tudo está como antes no quartel de Abrantes (o que significa fechar os olhos aos fenômenos para evitar complicações no plano teórico), ou admitimos a força dessas mudanças e podemos ser levados a conceber, como até mesmo o fez nosso presidente, que estamos inaugurando de fato uma nova era, um novo modo de produção, ainda mal definido e sem nome, mas, de toda forma, não capitalista (o que significa preservar o fenômeno, por sua evidência palmar, mas jogar fora a teoria e asseverar a transição para o tal “pós-capitalismo” — lição de casa complicada em plena era da globalização). Mais uma vez, a leitura que Ruy Fausto nos ajuda a fazer de Marx, bem como o treino que ele nos dá para pensar dialeticamente, aponta saídas promissoras para todos esses problemas. Muitos desses enigmas parecem se resolver com o auxílio do par posição/pressuposição e da noção de sujeito negado, devendo-se fazer menção também da esclarecedora leitura que Ruy Fausto faz das polêmicas passagens dos Grundrisse em que Marx esbarra em algumas dessas questões.15

Desnecessário dizer que o estudo dos movimentos atuais esboçados pelos dois objetos aqui comentados (o dinheiro e o trabalho) só faz sentido considerado o quadro conjunto das transformações que vêm sendo experimentadas pelo sistema capitalista contemporâneo. É preciso, portanto, arriscar interpretações que, a despeito de eventuais erros, busquem os traços ontológicos no emaranhado das mudanças em curso — reabilitando, por tabela, uma prática que caiu em desuso, a saber, a reflexão crítica sobre a sociedade moderna. Enfrentar esse desafio, contudo, só parece possível se estivermos devidamente armados no plano epistemológico e, até onde eu sei, o trabalho de Ruy Fausto parece ser um dos poucos refúgios hoje disponíveis para quem ainda se preocupa com essas questões fora de moda.