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Obscurantismo, intelectuais e novas mídias

A corrente do anti-intelectualismo tem sido um fio constante na nossa vida política e cultural, alimentada pela falsa noção de que democracia significa que “minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento”.

A Cult of Ignorance, Isaac Asimov

Traço congênito da mentalidade autoritária, seja de esquerda ou de direita, o repúdio feroz à figura do intelectual passou a ganhar ares de normalidade. No caso do Brasil atual, misturando referências conservadoras e mentalidade pragmática, o anti-intelectualismo faz carreira. Inspirado em lugares comuns da cultura norte-americana, o combate virulento aos intelectuais, à ciência e mesmo à verdade é levado adiante em nome ou do utilitarismo dinheirista, ou do fanatismo religioso, ou, com mais frequência, da suposta autenticidade do “homem comum”.

Tanto a estreita visão de mundo economicista de certo liberalismo quanto o irracionalismo convicto de muitos fiéis, por distintos que sejam, alimentam o ranço anti-intelectualista. Entretanto, tratemos da mais perigosa — porque mais universal e cativante — justificativa para o ataque à razão, para a rejeição enojada ao homem ou à mulher de letras: o elogio dos vícios do “homem comum”, que passam a ser retratados como virtudes.

A ignorância autoproclamada, a brutalidade intencional e o apreço pela violência são erigidos ao patamar de sabedoria popular, como se fossem atributos inerentes ao povo. Em nosso caso, esse conjunto de trejeitos estaria sumamente representado pelo troglodita que ocupa a presidência da República, sendo ele, nessa concepção, o retrato mais bem acabado do dito brasileiro médio: preconceituoso, tosco e intuitivo — mas autêntico.

Essa visão distorcida das classes populares, retratando-as preconceituosamente como inaptas, desprovidas de inteligência, pouco afeitas ao estudo e desejosas de uma vida pueril, é, na verdade, uma descrição acurada de certa classe média e de parte de nossa elite. A ostentação da própria incultura está longe dos mais pobres, que não raro fazem esforços extraordinários para conseguir estudar.

Assim, nada mais injusto do que tomar Bolsonaro por modelo de nossa gente. Sua autenticidade programada inclui o culto à religião, à família e ao ambiente doméstico, demonstrados constantemente pelas redes sociais. Todo esse figurino é orientado para construir a imagem da “simplicidade” presidencial, próxima ao povo, em contraste com a distância dos intelectuais afastados da verdadeira vida popular.

Essa veia anti-intelectualista do presidente está, paradoxalmente, fundada no discurso de um suposto intelectual. Olavo de Carvalho não se cansou de proclamar a necessidade de refundação da cultura brasileira, que teria sido degradada pelo esquerdismo. A fórmula olavista é de formar intelectuais anti-intelectualistas, simulacros de pensadores — que se sobressaem midiaticamente apenas por seus trejeitos teatrais, seus palavrões e discursos de ódio. Mas por que se desdenha dos intelectuais? Por que a trupe presidencial sistematicamente se ocupa de criticar jornalistas, pensadores, escritores, filósofos etc.?

Ataca-se o clubinho dos intelectuais: ele comete o pecado de exigir credenciais mínimas para que uma pessoa se arrogue como detentora de um saber qualificado. Ora, é claro que um diploma universitário não é uma garantia absoluta de conhecimento e que tampouco seja uma necessidade para construir uma opinião embasada, mas sem dúvida ele pode ser ao menos um filtro para evitar a propagação de bobagens. Daí o esforço muito presente nos tempos atuais de se menosprezar e diminuir a importância do saber universitário, como se ele fosse mero proselitismo, doutrinação ou balbúrdia.

O ódio à universidade vindo de pessoas que se apresentam como paladinos da alta cultura é risível — e diz mais sobre essas pessoas do que sobre aquilo que criticam. Curiosamente, desses anti-universitários ferrenhos, para os quais a ausência de diploma se transformou em prova de notório saber, não se conhece nem sequer uma obra digna de nota, que passe pelos mínimos crivos de rigor e honestidade intelectual.

De fato, o saber universitário tem problemas, mas eles são bem distintos daqueles que apontam a extrema-direita. Se os conchavos, a burocratização excessiva, a esterilização do pensamento autônomo, o produtivismo inócuo e incomunicabilidade da universidade com a sociedade devem ser atacados, essas críticas são feitas pelos próprios universitários há muito mais tempo. Algumas delas já existem ao menos desde o século XIX. Para ficar em dois exemplos, em especial no campo da filosofia, gente do quilate de Schopenhauer e Nietzsche, infinitamente superiores a nossos anti-universitários direitistas, questionavam os maneirismos do conhecimento universitário.

À ascensão de uma extrema-direita raivosa e anti-intelectualista, soma-se uma intelectualidade de esquerda que, com raras exceções, preocupou-se até muito recentemente em ser apenas cão de guarda de partidos políticos. Esse processo de submissão aos poderes, aos dirigentes ou cúpulas partidárias, contribui de forma vertiginosa para desbancar a imagem dos intelectuais, que são vistos apenas como defensores de um interesse partidário e nada mais.

Dos que não se sujeitaram a essa tarefa, muitos optaram por uma reclusão no espaço universitário, falando apenas para seus pares e se dedicando a praticar a micropolítica, desfazendo os laços com a esfera pública e desmerecendo o debate na mídia como um rebaixamento da atividade intelectual. O trabalho de divulgação científica, de educação popular ou de debate público minguou. Assim se aprofundou o conhecido processo do declínio do homem público.

A consolidação da extrema-direita, o servilismo partidário na esquerda e a retirada dos intelectuais críticos para a torre de marfim levaram a uma degradação impressionante do debate no Brasil, relegando a esfera púbica a uma situação de calamidade. O problema é ainda mais drástico em um país que não tem tradição intelectual enraizada, cuja população, mesmo a supostamente bem-educada, está submetida a todos os perigos das fake news, de embusteiros de plantão, da circulação de análises vazias e da proliferação assustadora de bots.

Se a censura deixou há muito de ser uma forma viável de controle do debate público, a estratégia corrente passou a ser a de infestar a esfera pública, metódica e planejadamente, com tantas mentiras e desinformações que não se pode mais distinguir entre o que é importante e o que não é, entre o que é razoável e o que não é, e, no limite, entre o que é verdadeiro e o que não é.

O debate não se trava mais em torno de opiniões, mas em torno dos próprios fatos, que deixaram de ser aceitos universalmente. Antes, a narrativa era construída por fatos; hoje, a narrativa antecede, formata e manipula os fatos. O real é hoje não mais entendido como um dado exterior e impassível diante de nossa opinião, mas como mera possibilidade idiossincrática adaptável ao desejo de cada um.

Daí surgem os piores monstros que passaram a habitar nosso cotidiano: o terraplanismo, o movimento antivacina, os falsos remédios milagrosos, o negacionismo climático... O que começa como um ataque aos intelectuais rapidamente se transforma em ataque ao intelecto, à razão e à ciência. Em seguida, no lugar da democracia — que exige autoridades, ponderações e formalidades —, ergue-se o democratismo: não há mais verdade e qualquer opinião indiscriminada passa a valer tanto quanto a de um estudioso renomado.


No caso brasileiro, um país de poucos leitores, o vídeo, a imagem e o áudio são as formas predominantes de comunicação. Até pouco tempo, isso significava uma hegemonia quase total dos meios televisivos e, em menor grau, do rádio. No entanto, na última década, mais e mais esse poderio da mídia tradicional passou a ser questionado pelas redes digitais. Se a mídia tradicional não teve seu poder esvaziado, a esfera pública se alargou, englobando as redes sociais, que, em um processo inverso, passaram a ter mais capilaridade e, em alguns casos, até mesmo a pautar a mídia tradicional.

Surge então o problema de saber até que ponto as redes sociais são fontes legítimas de informação, uma vez que na internet não há qualquer tipo de filtro. Ainda hoje muitos canais de extrema-direita se aproveitaram dessa desregulamentação para propagar todo tipo de absurdos e assim transformar a utopia de uma rede democrática e bem informada em um sonho distante. Se as mídias tradicionais eram atacadas por apresentarem opiniões tendenciosas, as novas mídias passaram a apresentar fatos que nem sequer existem. A discussão passou do problema da manipulação da opinião para o problema da própria verdade factual.

Passa-se, assim, da esfera pública como República das Letras para outra que funciona como Arena do Espetáculo. No primeiro modelo, havia equilíbrio entre forma e conteúdo: regras de conduta implícitas pautavam a manutenção da qualidade da discussão; nesse novo padrão, passa-se para um desequilíbrio entre forma e conteúdo: a forma se absolutiza, fazendo quase desaparecer as exigências em relação ao conteúdo. Na formulação que se tornou clássica: the medium is the message.

Não se trata de forma no sentido literário, mas principalmente de forma técnica: as imagens e principalmente os vídeos com uma formatação agradável tem chance maior de serem bem recebidos e aceitos. O conteúdo não deixa inteiramente de ser relevante, mas a mensagem que for inadequadamente configurada não atingirá o público. Em alguma medida, isso sempre foi verdadeiro, mas agora se tornou um absoluto.

Nessa nova configuração, a presença dos intelectuais na esfera pública muda de figura. Hoje, um jovem que se inicia no debate conhece muitos influenciadores digitais, mas talvez nenhum intelectual da velha guarda. Se antes apenas poucas figuras tinham acesso aos meios de comunicação, hoje, com a difusão de meios técnicas de baixo custo e amplo alcance, qualquer pessoa com formação razoável pode exercer enorme influência — e, em geral, pessoas bem preparadas e com bom domínio das técnicas digitais são imediatamente mais influentes do que os intelectuais tradicionais. Seu alcance é maior do que o da mídia tradicional e assim o debate público se encontra muito mais pulverizado do que normalmente se imagina.

Se a atuação do intelectual nas mídias tradicionais — jornais, rádio e televisão — continua sendo necessária, as condições sociotecnológicas atuais parecem exigir também sua presença em um universo que lhe é totalmente estranho. Não se pode mais, com ar de desprezo e afetação, lançar infinitas diatribes contra essa nova esfera pública, pois sua existência e influência é um fato consumado. Evidentemente, isso não significa que deva ocorrer uma midiatização dos intelectuais; um intelectual midiático parece uma contradição em termos, ou pelo menos deveria parecer.

Contra qualquer forma de impostura midiática, o intelectual não pode ceder a modismos, violências ou bravatas para gerar um engajamento artificial, imitando as piores técnicas publicitárias que circulam nesse meio. Por outro lado, também deve evitar a recusa completa das novas mídias, sob penas de deixá-las nas mãos de influenciadores inescrupulosos — que há anos vêm conseguindo não só angariar um público cativo como também transformar essa participação em resultados eleitorais efetivos.

Sabe-se bem que o tempo da mídia não é o tempo do trabalho intelectual rigoroso. Dessa forma, os longos exercícios teóricos continuam sendo válidos e tendo seu espaço, mas eles convivem com formas mais imediatas e ligeiras de comunicação: é preciso que o intelectual saiba navegar entre dois tipos de discurso com exigências distintas.

Divulgar sua mensagem de forma concisa e despojada dos jargões tradicionais é imprescindível para realizar um bom trabalho de divulgação, que não se confunde com a vulgarização e com a imbecilização que inundam as redes. Sem dúvida é possível aliar linguagem didática e rigor conceitual para transmitir conteúdo de qualidade, dando o peso que o trabalho de divulgação merece.

A luta vai, portanto, em duas frentes: restituir a importância e a credibilidade da mídia tradicional, criticando suas eventuais falhas, e promover conteúdo de qualidade nas redes, através de um trabalho de divulgação com um formato adequado. Aproxima-se então as exigências de um debate público qualificado com a inclusão de novas modalidades de divulgação em um ambiente difuso.

Para quem acha esse tipo de discussão supérflua, é bom lembrar que se a força das ideias não é total, se a realidade não se transforma apenas por palavras, a presença ativa na esfera pública tem a capacidade de influenciar dezenas de milhões de pessoas, o que pode decidir eleições. Essa desconfiança em relação à capacidade das ideias é o ranço característico de todo tipo de ativismo ingênuo, de militantismo acrítico e de radicalismos não-radicais.


Há algum modelo na tradição desse tipo de intelectual que não apenas prima pela verdade, mas que se engaja para que ela esteja o mais presente possível na esfera pública?

Pela experiência histórica do século XX, ao menos duas perigosas concepções do papel do intelectual foram colocados em xeque. De um lado, como aquele que se crê o representante-mor de uma suposta classe universal. Esse tipo, que se acredita detentor de um saber absoluto, é o mais suscetível de embarcar em esdrúxulas justificações de poderes autoritários, em especial daquelas ditaduras exercidas em nome do povo. De outro lado, crítico desse intelectual universal e abandonando o problema de uma instituição global da sociedade, surge aquele que se considera meramente um agente dotado de um saber específico, com atuação setorial e práticas locais. Para ele, pautar os grandes problemas da sociedade, usar conceitos abstratos e universais e colocar-se como defensor de valores humanistas se tornaram concepções antiquadas e proibitivas.

O tempo exige uma dupla recusa. Nem o delírio do intelectual que superestima seu poder, nem o derrotismo daquele que proclama a própria impotência política. Entre a figura do portador da verdade e daquele que renuncia a toda capacidade de intervenção substancial, entre o intelectual-universal e o intelectual-específico, algumas das melhores figuras da tradição política exerceram o papel do intelectual-cidadão: um indivíduo responsável em suas opiniões, lúcido quanto a suas intervenções políticas, engajado em um debate público rigoroso e defensor da ordem democrática. Em resumo, se o intelectual não é o salvador da humanidade, tampouco ele é desimportante ou impotente: entre uma coisa e outra, há muitas tarefas a se cumprir.

Trabalho mais premente é o de afirmar o primado da Razão, o que, diante das circunstâncias atuais, tornou-se um ato verdadeiramente revolucionário. O programa pedagógico do esclarecimento, que parecia superado, é novamente indispensável à medida que o projeto iluminista é afrontado por forças reacionárias e obscurantistas. Diante de uma degradação severa da esfera pública, a função primordial desse intelectual-cidadão é zelar pela verdade, desconstruindo as formas espetaculosas e manipulatórias do obscurantismo moderno.

Mas, pode-se perguntar, o que é a verdade? Para além de quaisquer digressões metafísicas, é preciso defender a verdade mínima, factual, sem a qual não pode haver nenhum tipo de debate público efetivamente democrático. Isso significa exigir a defesa de opiniões embasadas e responsáveis, impedindo que fake news, retóricas midiáticas, teorias conspiratórias ou o senso comum tomem de assalto a esfera pública.

Cumprir essa missão de restaurar o debate público significa restabelecer o nexo perdido entre intelectualidade e crítica. Há intelectuais conformistas, que fetichizam o status quo, e críticos sem rigor, que praticam um juízo desenfreado. Contra uns e outros, cumpre reatualizar a figura do intelectual crítico e rigoroso, devidamente comprometido com a verdade e com a democracia.

É justamente a atuação intelectual crítica, desde que bem exercida, que impede a contaminação do debate público por inverdades flagrantes, plágios notórios, citações inexistentes, em suma, por qualquer forma de desonestidade intelectual. Mas não só. As fraseologias vazias, que operam com malabarismos conceituais sem qualquer conhecimento empírico do objeto em questão, também precisam ser impiedosamente neutralizadas, sob pena de transformar o debate em mera reprodução de slogans e clichês. Esse é o mínimo de rigor que deve ser exigido de qualquer um que deseje participar da vida intelectual democrática.

Esse combate só pode ser levado adiante com o retorno da ideia de que os indivíduos são responsáveis por aquilo que dizem. A responsabilização do indivíduo por suas opiniões é fundamental em um ambiente de debate democrático. E, contudo, o que se vê hoje é exatamente o contrário: a irresponsabilidade generalizada. Pode-se dizer, por exemplo, que o coronavírus não existe, ou que é um vírus criado pelo Partido Comunista Chinês, ou que ele nunca matou ninguém — e logo se esquece tudo isso, meras opiniões ao vento. Sem a responsabilidade, predomina a demagogia — e daí é apenas um passo para o fim da democracia.