1

O tempo da crise e a moral do dinheiro: o que legitima o gasto público durante a pandemia?

ilustração: Tom Vieira

A pandemia do novo coronavírus é uma crise mundial com duas faces. A primeira delas é sanitária, com aumento exponencial do número de doentes e mortos e consequente exaustão atual ou iminente dos recursos de atendimento médico-hospitalar em vários países. A segunda face da crise é econômica, com o aumento do desemprego, quedas das bolsas de valores, do preço do petróleo e das expectativas de crescimento.

Diante dessa situação, os profissionais de saúde defendem que a diminuição do contato social com a interrupção de atividades não essenciais é a única maneira de frear o avanço da doença. Em paralelo, outro acordo tem sido gerado no contexto dessa grande crise. Economistas e gestores de diferentes correntes políticas e teóricas parecem concordar que agora é preciso que os governos gastem, “sem se preocupar com o dia de amanhã”, o que contrasta com as políticas de austeridade prevalecentes anteriormente.

Quais as características deste momento histórico fazem com que ações antes consideradas equivocadas ou perniciosas passem a ser defendidas como recurso legítimo? Nossas ideias compartilhadas sobre a origem e natureza desta crise, articuladas à concepção coletiva sobre o papel social do dinheiro, permitem compreender a súbita “inevitabilidade” do aumento do gasto público.

Muitos economistas têm sugerido um aumento de desembolso governamental para enfrentar a crise econômica gerada pelo isolamento físico-social, apoiando, por exemplo, a implementação de renda básica emergencial, a antecipação de benefícios sociais, o adiamento de tributos, a manutenção de linhas de crédito para empresas, o uso de instrumentos de garantia dos empregos e o aumento de gastos com saúde. Mesmo aqueles que defendiam a agenda de austeridade fiscal têm apoiado o aumento dos gastos, colocando em segundo plano a preocupação com a dívida pública.

No Brasil, essa virada foi menos acentuada, tendo em vista as restrições legais do orçamento brasileiro e o perfil ideológico ultraliberal da equipe econômica. Mesmo assim, a transformação tem sido considerável. Sabe-se que crises econômicas, em geral crises financeiras sistêmicas, costumam ser enfrentadas por meio de medidas de expansão fiscal e monetária. As medidas atuais, porém, vão além da mera sustentação do sistema financeiro. Isso sugere que essa não só é uma crise, mas uma crise singular.

É significativo que a própria raiz do termo crise se refira a saúde. Nos séculos V e IV a.C., o termo era utilizado para se referir à fase crítica de uma doença, ou seja, ao momento em que a vida estava por um fio e requeria uma providência definitiva. “Crise”, portanto, não se referia à doença ou à enfermidade, mas à condição que chama por um julgamento decisivo entre alternativas de tratamento. A etimologia da palavra crise, segundo Reinhart Koselleck, remete ao grego antigo krinô, significando cortar, separar, decidir, escolher ou julgar. Ao longo do tempo, o termo adquiriu diferentes significados — crise como julgamento perante Deus, na teologia cristã, por exemplo —, passando a ser utilizado como um qualificador ou prognóstico do tempo. Associado a outros conceitos, como “progresso”, ajudou a conformar nosso modo de conceber a história como uma construção sobre a qual é possível agir (o futuro está em aberto).

Ao denominar um período como “de crise”, marca-se a emergência de uma nova temporalidade, sendo esse um tempo transitório único que será sucedido pela volta a uma (outra) normalidade, uma outra época histórica. Trata-se, portanto, de uma avaliação moral sobre a conjuntura, que diferencia o passado e o futuro a partir de um evento ou uma série de acontecimentos considerados socialmente relevantes. O uso da noção carrega, portanto, múltiplos sentidos sociais e culturais, estabelecendo prioridades coletivas e direcionando ações.

As ideias de “emergência” e “urgência”, muito empregadas de modo conjunto à de crise, apontam para essa associação entre o tempo necessário para se agir e a própria necessidade de fazê-lo. O reconhecimento de que existe uma crise evoca lógica e necessariamente uma noção de normalidade, o momento que a antecede e que a ela vai se suceder, o “novo normal”. A temporalidade crítica e, portanto, de exceção, cria as condições para que decisões e comportamentos antes condenados possam tornar-se legítimos ou mesmo prementes.

O fato de estarmos “em crise”, porém, não parece ser suficiente para compreender a defesa de soluções tão radicalmente distintas da austeridade antes prevalecente. Há alguns elementos, dispersos em discursos, ações e políticas, que permitem compreender a percepção desta crise como uma hipercrise, digna de ser acompanhada nos noticiários por qualificações como “sem precedentes” ou “a maior da história”.

A perda de milhares de vidas humanas poderia ser uma motivação suficiente para alarmar a todos nós. Mas não parece ser o caso, quando consideramos tantas mortes evitáveis com as quais convivemos e que não chegam nem perto de motivar gastos ou investimentos públicos. Aliás, o corte de gastos acontece a despeito de que acarretem óbitos, por exemplo, com diminuição de verbas para a saúde, para ficar no mais óbvio. Isso sem considerar os gastos feitos para gerar mortes, como o financiamento de guerras.

A primeira característica relevante atribuída a esta pandemia é sua percepção como algo causado por um agente externo ao escopo da ação humana e, portanto, alheio a escolhas políticas, sejam elas econômicas ou não. É uma ameaça que, como vários analistas vêm apontando, “vem de fora”, de animais de uma floresta chinesa. Nos termos da dicotomia ocidental que é tão cara aos antropólogos como objeto, Natureza e Cultura se contrapõem de maneira radical na produção de seu caráter hiperlativo. A ideia de que a crise tem origem em uma externalidade radical tem consequências importantes na concepção sobre sua particularidade. Não há culpados a responsabilizar por más escolhas ou políticas equivocadas.

A segunda característica é que, tendo como origem uma força externa, ela ameaça os humanos como coletividade e tudo aquilo que lhes diz respeito. O temor da morte, portanto, não se refere às vidas humanas individuais que estão sendo perdidas — coisa a que nem sempre somos sensíveis —, mas à vida social como um todo, sendo os sistemas econômicos a expressão dessa ordem ameaçada. Apesar de a crise ser sentida mais claramente entre corpos mais vulneráveis, física e socialmente, entende-se que o vírus, como natural, não reconhece nossas construções sociais de nacionalidade, classe, raça, gênero ou ocupação, nos ameaçando igualmente.

Essa visão sobre nosso momento histórico produz as condições para uma nova moralidade do gasto público. Se a política de austeridade fiscal implica teoricamente uma disciplina moral que serviria como compromisso com gerações futuras, a hipercrise se caracteriza por uma demanda da garantia do presente. A sobrevivência dos corpos, ou sua subsistência (economia), no presente, se torna uma necessidade premente e o gasto público seu instrumento imprescindível.

A doença e seu tratamento passam a funcionar como metáfora econômica para o enfrentamento da crise. O dinheiro operaria como uma força vital cuja injeção é tão essencial quanto o oxigênio bombeado nos corpos fragilizados pelo Covid-19. Seguindo com essa imagem, seria como entubar um paciente para garantir que ele sobreviva e adiar a preocupação por eventuais traumas consequentes.

Essa temporalidade da emergência muda o sentido do dinheiro. O dinheiro pode ser compreendido como, ao mesmo tempo, mercadoria (cara) ou dívida (coroa), sendo esses os “dois lados da moeda”, como sugere o antropólogo Keith Hart. A hipercrise enfatiza o papel do dinheiro como mercadoria, seu uso para efetuar transações, para comprar bens ou serviços. A necessidade da implementação da renda básica emergencial, por exemplo, ressalta esse aspecto, quando o gasto público, não previsto no orçamento nacional, é utilizado não mais para garantir um futuro planejado, mas para garantir a própria possibilidade de que haja futuro.

“Gastar o necessário” garante também a circulação de uma mercadoria que nos permite a própria inteligibilidade sobre nossa existência coletiva. O quantum do dinheiro torna possível calcular, planejar, intervir e governar nossas vidas. O movimento de dinheiro garante também a possibilidade de vislumbrar algum futuro por meio das previsões e cenários que são formulados e atualizados diariamente. Ele é uma condição para a apreensão ou visibilidade do que entendemos por nossa vida econômica. Dessa forma, no momento em que a crise parece mais real do que nunca, porque natural, buscamos resposta em uma de nossas criações sociais ou culturais mais poderosas, o dinheiro, tendo em vista resguardar nossa coletividade.

As despesas governamentais são justificadas, em parte, tecnicamente, com argumentos que não estão ao alcance da maioria das pessoas. Mas escolhas sobre os gastos se sustentam mais profundamente em noções amplamente compartilhadas do que seja o bem público. Essa moralidade se conjuga necessariamente a temporalidades, ou seja, à relação percebida entre passado, presente e futuro e à importância relativa que se dá a cada um deles. A hipercrise em que vivemos, impõe o presente como responsabilidade premente, apagando parte do passado e suspendendo preocupações com o futuro. Gastar mais agora não significa colocar em risco nosso futuro. Não porque não existam riscos, mas porque o futuro, ele próprio, pode não existir.