1

O legado de Ruy Fausto e os desafios da esquerda

Uma justa e completa homenagem ao pensador e amigo Ruy Fausto não caberia num artigo compacto. A análise mais aprofundada da sua importância para a filosofia e a política deveria compreender a avaliação de sua obra filosófica, dos seus textos sobre política e também sua paixão pela arte e pela música, em especial o piano. O estudo da sua contribuição no âmbito da dialética marxiana está fora do meu escopo de estudo e certamente há um foro mais adequado para esse debate. Por essa razão, escolhi alguns aspectos de seus textos políticos e de análise crítica à esquerda, como ponto de partida para problematizar algumas questões que me parecem cruciais nos dias de hoje.

Meu primeiro contato pessoal com o Ruy ocorreu no ano de 2008, em um debate na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), do qual participei como ouvinte. À época, estava prestes a concluir meu mestrado e partiria para minha primeira estadia na França. Após o término do debate, conversamos e anotei seu contato para que marcássemos um almoço em Paris. Ao chegar no velho continente, escrevi um e-mail e, para minha surpresa, ele prontamente aceitou o convite. Nesse primeiro almoço, duas características marcantes da sua personalidade me chamaram atenção: seu conhecimento enciclopédico e sua simplicidade no trato com as pessoas. Recordo-me da sua primeira frase: “Não me chame de professor ou senhor. Me chame de Ruy”.

A partir disso, desenvolvemos uma amizade marcada por inúmeros encontros nos quais discutíamos a política brasileira, fazíamos a resenha das notícias da imprensa brasileira (confesso que nesses dias eu lia os jornais com atenção redobrada para ter um desempenho mais digno nas nossas discussões), falávamos de assuntos triviais e ouvia suas histórias (verdadeiras palestras) sobre temas diversos (filosofia, história, política, arte) por horas a fio. Naquele momento, eu percebia sua imensa generosidade com os alunos brasileiros na França, fato bem observado por Pierre Dardot e Christian Laval em texto em homenagem ao Ruy.1

O aprofundamento da nossa amizade me permitiu compreender com mais precisão seus posicionamentos políticos. Uma das coisas que chamava atenção era uma impressão que eu tinha (ainda hoje não estou seguro disso) de que muitas vezes ele se preocupava mais com a crítica à esquerda do que com a crítica à direita, o que em um primeiro momento pode parecer estranho para alguém de esquerda e que tem a direita como seu principal oponente. Mesmo sob o risco de ver seu discurso instrumentalizado pela direita, ele acreditava que a verdade e a análise crítica, que inclui a autocrítica da esquerda, eram elementos centrais e indispensáveis para o seu triunfo, conforme a seguinte análise feita por ele: “De fato, como que se impôs a ideia nefasta de que o discurso político é de ordem retórica, e de que, portanto, não é necessário ter maiores preocupações com a verdade ao falar de política. O importante seria combater o adversário, como se fosse possível levar adiante esse combate sem respeito pela verdade”. 2

O respeito à verdade é traço definidor de seu pensamento, que deve ser compreendido como um valor ético inegociável, mas também como estratégia política para o triunfo da esquerda. A coragem em problematizar a esquerda, tendo a verdade como diretriz fulcral no horizonte do seu pensamento, colocou-o diversas vezes em posição de confronto dentro da própria esquerda, mas tornou-se a mola propulsora da força de seu pensamento.

No mesmo texto citado, Ruy define as três doenças que afetam a esquerda. São elas o totalitarismo, o adesismo e o populismo. Para ele, as experiências totalitárias de esquerda não representaram a morte da esquerda, mas ao contrário, significaram o seu renascimento. Portanto, a queda do Muro de Berlim possibilitou o rompimento dos grilhões da esquerda em relação ao totalitarismo e acarretou uma oportunidade histórica de remover essa patologia do passivo da esquerda. Dessa maneira, é importante deixar claro que é possível, e necessário, ser de esquerda e repudiar todas as formas de totalitarismo. A defesa de regimes totalitários, que não são exclusivos da esquerda, deve ser banida da agenda progressista. Nesse sentido, concordo com Celso Rocha de Barros, que, no título de seu artigo em homenagem a Ruy Fausto, afirmou que sem ele teríamos sido todos mais autoritários.3

Essa postura pode levar a um caminho mais árduo e tortuoso para a esquerda, mas também serve como uma vacina imunizadora contra os ataques da direita, conforme análise do próprio Ruy: “as doenças da esquerda são graves porque elas limitam o alcance da sua atividade e dão armas aos adversários”.4

A segunda patologia da esquerda é aquilo que ele denominou como “adesismo”. Dentro dessa perspectiva, ele critica a suposição de que a adoção da agenda neoliberal seria resultado da falta de um projeto alternativo possível. No pós-guerra, as bases do sistema monetário internacional foram construídas no acordo de Bretton Woods. Os horrores das duas Grandes Guerras e o estrago causado pelos regimes capitalistas autoritários de direita, o fascismo e o nazismo, foram cruciais para que prevalecesse um arranjo baseado em rígidos controles financeiros e cambiais e em um protagonismo da esfera real da economia. Na Europa Ocidental, houve espaço político para o fortalecimento dos sindicatos e conquistas de direitos da classe trabalhadora. A hegemonia da macroeconomia keynesiana resultou na estruturação do Estado de Bem-Estar Social, definido por Eric Hobsbawn como a “Golden Age” do capitalismo.5

A partir da década de 1970, cujo marco histórico fundamental foi a decisão do presidente Nixon de colocar fim ao padrão ouro-dólar, houve uma reação liberal, sob forte influência de Milton Friedman e de seus “Chicago Boys”, e foram desenhados os fundamentos do arranjo neoliberal, que preconizava, dentre outras coisas, livre movimentação de capitais, taxas de câmbio flexíveis, livre comércio6 e menor participação do Estado na economia. A crise do bloco soviético e a queda do Muro do Berlim removeram a última barreira que restava para aquilo que alguns historiadores denominaram como o fim da história. A crise da social-democracia europeia e a derrota do socialismo real limparam o terreno para o coroamento triunfal do neoliberalismo.

No caso brasileiro, após a crise da dívida na década de 1980, relacionada ao II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) e à crise do petróleo, a capacidade de ação do Estado foi substancialmente reduzida, o que facilitou a penetração do discurso neoliberal em nosso país. A principal expressão do “adesismo” tupiniquim foi denominada por Ruy como “cardosismo”, por ter como sua principal expressão o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. FHC, assim como parte dos partidos da esquerda europeia, abandonou a social-democracia e aderiu ao neoliberalismo, consubstanciado no chamado “Consenso de Washington”. A migração do seu partido, o PSDB, de uma posição de centro-esquerda para outra de centro-direita, criou um espaço preenchido pelo PT, que nasceu eclético, com tendências internas reformistas e revolucionárias, mas que posteriormente tornou-se o partido brasileiro social-democrata par excellence.

A terceira patologia da esquerda é o “populismo”. Ainda de acordo com Ruy Fausto, ele tem como características a existência de uma liderança carismática autoritária, uma política que concilia, ao menos aparentemente, interesses de classes antagônicos, e uma tolerância excessiva à corrupção. Na minha avaliação, a aplicação desse conceito no contexto brasileiro é o ponto mais polêmico de seu pensamento político. Ruy sintetiza da seguinte maneira a experiência petista no Palácio do Planalto: “esse programa não só veio ligado a uma política de ‘aliança de classes’ — algo que, em si mesmo, conforme as condições, poderia ser tolerado — como também associado a um uso abusivo da máquina do Estado em benefício do partido e de particulares ligados a ele. É esse o lado intolerável”. 7

Para ele, portanto, os problemas de corrupção das gestões petistas não deveriam ser tolerados, mesmo que se reconhecessem as conquistas sociais e econômicas daquele período. A sua avaliação implica em diversas indagações que devem ser objeto de reflexão para a esquerda. Em primeiro lugar, como pensar em um governo de “esquerda autêntico”, para usar uma expressão do próprio Ruy, em uma sociedade que não é e nunca foi majoritariamente de esquerda? Quando me refiro ao termo sociedade, incluo os poderes executivo, legislativo e judiciário (e sua burocracia, cujos concursos muitas vezes selecionam pessoas da elite, e de perfil conservador), a imprensa, os evangélicos, os militares, o mercado financeiro, etc.

O PT, mais claramente a partir da década de 1990, apostou num programa reformista, de conciliação de classes, e de coalizão partidária com setores que não necessariamente eram oriundos da esquerda. Se, por um lado, essa estratégia facilitou (ou talvez fosse a única que garantisse) a sua chegada ao Palácio do Planalto, por outro lado limitou o alcance da implantação de um programa de esquerda autêntico. A chegada do PT à presidência da República não significou sequer a ocupação hegemônica dos cargos do Poder Executivo, com a indicação de políticos de partidos aliados para diversos ministérios, dada a natureza conciliatória de seu programa e de suas alianças, e muito menos a hegemonia no poder legislativo ou judiciário. Portanto, a esquerda nunca teve o controle hegemônico do Estado, e menos ainda da sociedade. Esse fato foi reforçado pelo caráter “republicano” das indicações petistas, que privilegiavam o primeiro colocado de listas tríplices, quando fosse ou caso, ou critérios técnicos em outros, como nas indicações de ministros do STF e demais tribunais superiores, procurador-geral, reitores de universidades federais, etc., fato esse que enfraquece o argumento do suposto populismo petista.

Além disso, a estrutura partidária brasileira exige algum grau de composição no Congresso Nacional para a aprovação de matérias de interesse do governo. Nesse sentido, é importante observar que a estratégia do governo Lula da Silva mudou depois das denúncias do “mensalão”. Após a vitória de Lula, em 2002, o presidente eleito vetou a aliança costurada pelo então futuro chefe da Casa Civil, José Dirceu, com o PMDB. A decisão de governar com pequenos e médios partidos cobrou seu preço no “mensalão”, que demonstrou a existência do financiamento de caixa dois em campanhas políticas (note-se que esse tipo de financiamento era um fenômeno praticamente universal no sistema político brasileiro). Com o risco real de impeachment, o ex-presidente Lula fez um giro de 180° na estratégia de articulação com o Congresso Nacional e incluiu o PMDB no seu arco de alianças, consolidando uma robusta base parlamentar, que concedeu estabilidade política ao governo no seu segundo mandato.

Uma base mais ampla significou a necessidade de distribuição de mais cargos e as denúncias de corrupção na Petrobras mostraram que partidos políticos se utilizaram da empresa para fins não republicanos. O PT pode ser responsabilizado politicamente tanto pelo mensalão quanto pelas denúncias de corrupção na Petrobras. Entretanto, a responsabilização política é diferente da responsabilização penal de pessoas que possam ter cometido crimes. Para haver responsabilização penal, é necessário o devido processo legal, que garanta a impessoalidade, amplo direito à defesa, etc. Nesse sentido, a operação Lava-Jato desvirtuou-se e o caso mais notório foi a condenação do ex-presidente Lula, conforme revelação da “Vaza-Jato”8. O efeito da sua condenação, e posterior prisão, foi excluí-lo da eleição presidencial, favorecendo seu principal oponente, Jair Bolsonaro, que nomeou o juiz Sérgio Moro, responsável pela prisão, para o cargo de ministro da Justiça.

Aqui chegamos a um momento crucial. Houve problemas de corrupção nas gestões petistas, como também ocorreram em diversos governos de direita, o que implica em responsabilização política por esses fatos, mas houve também uma instrumentalização político-partidária da operação Lava-Jato, cujo fato mais notório foi a clara perseguição ao ex-presidente Lula, que culminou na sua injusta condenação e prisão. A polarização política do Brasil colocou em lados opostos aqueles que repudiam os casos de corrupção das gestões petistas e aqueles que ressaltam a instrumentalização da Lava-Jato e a injusta condenação do ex-presidente Lula.

Quem está certo nessa peleja? Nesse ponto, eu volto a citar Ruy Fausto, que com sua coragem intelectual habitual, e sendo um homem de esquerda, fazia questão de, usando um jargão popular, colocar o dedo na ferida… da própria esquerda! Ambos os lados podem estar corretos concomitantemente. Houve problemas de corrupção e também houve instrumentalização da Lava-Jato. A realidade é complexa e diversos fatos aparentemente contraditórios podem ser verdadeiros ao mesmo tempo.

Portanto, o grande desafio da esquerda é fazer uma análise crítica desse processo, sem se deixar instrumentalizar pela direita que, como o próprio Ruy Fausto pondera, utiliza-se desse discurso para atacar a esquerda. Os problemas de corrupção tiveram como razão principal erros individuais de políticos que ocuparam cargos públicos nas gestões petistas ou decorrem da impossibilidade de se ter um controle hegemônico do Estado pela esquerda? Qual a melhor maneira de se fazer uma análise crítica desse processo, sem correr o risco de se ter o discurso instrumentalizado pela direita? Se a esquerda voltar ao poder em algum momento, como deve ser a política de aliança programática e de composição da sua base parlamentar no Congresso? Como dialogar com setores, sobretudo da classe média, que se desiludiram com o PT em razão das denúncias de corrupção? É possível a esquerda ser hegemônica no Estado e na sociedade? Finalmente, como livrar a esquerda do totalitarismo, do adesismo e do populismo? Nesse breve texto, não pretendo responder a essas e outras perguntas tão pertinentes para a esquerda, mas procuro apenas problematizar algumas delas, que devem balizar o nosso horizonte.

A motivação para esse artigo surgiu da leitura de textos do Ruy, mas também das nossas inúmeras conversas sobre política. Infelizmente, ele não está mais aqui para comentar esse texto (e brigar comigo!), e também não estará fisicamente presente na minha defesa de tese, conforme combinamos. A última lembrança que tenho dele foi de um sábado em Paris, no final de fevereiro, quando atravessei a cidade até seu apartamento em Boulogne-Billancourt, junto à minha esposa e meu filho de três meses, para gravá-lo em vídeo tocando piano. Ele me fez esse pedido para que houvesse um registro, justificando, com sua habitual ironia, que um dia ele poderia vir a faltar. Coisas do destino. Eu tive o privilégio de desfrutar da amizade de um gigante, e sempre tive consciência disso. Naquela ensolarada tarde parisiense, com Ruy ao piano, meu filho, debutante nesse mundo cada vez mais obscuro, pôde ouvir um pouco do sopro da vida. Ruy faleceu dois meses depois, junto ao seu inseparável instrumento, no Dia do Trabalho. Ficam a sua obra intelectual, seus valores humanistas e seu exemplo de vida. Obrigado, Ruy!