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Memórias

Sotaques e memória

Mais vivre sans tendresse
On ne le pourrait pas

(Bourvil)

Muitos Ruys vêm sendo lembrados por seus amigos e familiares. A combatividade e a lealdade, a palavra enérgica e a de encorajamento, o trabalho sério e o bom-humor estão sempre lá. Incapaz de retrato equilibrado da figura pública, fico com o Ruy cotidiano, dos e-mails longos e dos pequenos cuidados. Penso que é este que explica o talento para os causos e anedotas também fartamente recordado. Se não, como ele faria, dos gestos dispersos, as cenas e imagens que oferecia para nosso deleite? Como se não bastasse, às vezes ainda as arrematava com um Noel inesperado ou algo assim.

Embora não me lembre da primeira conversa que tive com ele, testemunhas me ajudam a atestar que ao menos uma das primeiras versou sobre nossas origens. Era uma roda de “dois nisseis” e eu. Eles trocavam histórias de imigração e de guerra, um as tendo vivido criança e o outro ouvido dos pais e tios. Entre uma informação histórica e outra, o Ruy me pergunta: “e você? Qual sua origem?”. Respondi como de hábito que sou brasileira, nascida da terra, misturando não sei muito bem em qual proporção indígenas, negros e brancos. Sua resposta sorridente (que a memória quase empresta ao ouvido): “Fantástico!”.

Não ouvi melhor comentário ao fatídico Brasil × Alemanha do que o dele: “estou muito feliz, ganhamos de 1 a 7”. E com a Copa do Mundo, vinham as lembranças das superstições futebolísticas com os irmãos na loja de móveis do pai. Junto com os sotaques e trejeitos para contar histórias, guardo também os “goalkeeper”, “corner” e “forward”, com R caprichado para não perder o aceno à minha origem caipira.

Mas de todas as lembranças que ele nos dava lapidadas, a minha preferida é a da Ia, brasileira com sotaque italiano que trabalhava na casa de sua infância, quando ela discorda dos patrões que resolveram tirar os retratos da mãe falecida para que as crianças não sofressem. Ele a registrou em seu Os piores anos de nossas vidas.1 A perda e as formas de lidar com ela eram assunto mais ou menos recorrente em nossas conversas e, “prudência de quem estava para fazer 65 anos”, lá pelas tantas ele encerrava a questão: “vamos virar o disco”.

Agora que os 65 chegaram, encontrei um dos longos e-mails, de quando foi a minha vez de perder a mãe. É terno e engraçado, com episódios do passado e conversas dos últimos dias. Ele o termina assim: “Já é meio tarde, vou dormir. Faz um frio do cão. Creio que menos dois, por aí. Espera-se neve. ‘Cai neve na natureza — diz um poeta português num poema célebre — e neva o meu coração…’. Até que nem tanto. A minha alegria são os amigos e as amigas”. Então me dou conta de que não terei mais notícias de tanta gente que eu só conhecia por suas histórias. É certo que estão todos com saudades, como eu.