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Memórias

Duas lembranças do Ruy

Diante do desafio de escrever algo sobre o Ruy que não seja indigno dele, empaco. Ruy era 17 anos mais velho que eu, e já ouvia falar dele desde os idos de 1971, muito antes portanto de conhecê-lo pessoalmente. Eu namorava nesses anos uma vizinha de Boris Fausto, seu irmão mais velho, que visitávamos, então, com alguma frequência. Vez por outra, o assunto recaía sobre o Ruy e o mote era sempre o mesmo: Ruy era um trabalhador compulsivo que encarava como um grande problema ficar um dia que fosse longe dos livros. Pude comprovar esse fato, mais tarde, quando o conheci em Paris. Muitas são as recordações de uma convivência quase cotidiana de habitués da Bibliothèque Nationale, ainda na rue de Richelieu, entre 1978 e 1986, quando voltei ao Brasil. Tudo isso faz muito tempo e, de qualquer modo, não tem interesse geral. A amizade continuou, de longe, desde então e sempre nos víamos, em Paris ou em São Paulo. Mas amizades são feitas de nada. São para se viver, não para se narrar. Salvo nas mãos de um escritor, que obviamente não sou, elas se esfarelam diante da narração.

Valerá a pena lembrar, no entanto, duas ou três coisas. A primeira é o apreço que Ruy tinha por seu orientador, Jean-Toussaint Desanti, falecido em 2002. Comentava com admiração que Desanti estudava matemática todos os dias. Veio-nos então a ideia de ter aulas particulares de matemática. Ruy descobriu um professor meio esquisito e não me lembro quanto tempo essas aulas duraram. Poucos meses, por certo. Depois, um pouco à maneira de Bouvard e Pécuchet, passamos a aulas particulares de lógica, tendo por base um livro introdutório do Quine. Quem já abriu um livro de lógica sabe como seus exercícios são aborrecidos, de modo que tampouco fomos muito adiante. Brincávamos que a ideia era transcrever a Lógica do Hegel, que ele estava lendo ou relendo, na linguagem da lógica formal. Brincadeiras à parte, Ruy era um leitor apaixonado da Lógica de Hegel e discorria sobre ela, por vezes. Se algo desconfio desse livro, que me foi sempre inexpugnável, devo isso a ele.

O segundo episódio que merece ser lembrado nesses cerca de oito anos de convivência cotidiana revela algo relevante de seu jeito de ser. Fomos em quatro ou cinco amigos ver um documentário, chamado Sauvage et Beau (1984), dirigido por Frédéric Rossif e Jean-Charles Cuttoli. O filme, se bem me lembro, fazia a volta ao mundo, mostrando uma sucessão infindável de botes magníficos de diversos tipos de predadores sobre suas presas. Ninguém escapava à carga mortífera daqueles carnívoros, à lógica impiedosa do matar ou morrer, e a fotografia se esmerava em exibir closes de perseguições implacáveis e do desespero das presas, em tomadas de cena tão belas quanto atrozes. Depois do filme, comentávamos empolgados, num café, esta ou aquela cena. E ninguém se dava conta do silêncio do Ruy. Até que ele entrou desconcertantemente em cena, com um comentário digno de La Fontaine ou La Rouchefoucauld: “Pois é, no filme, o mais fraco nunca vence o mais forte”. Ruy transformara o filme, subitamente, numa fábula. Lembro que alguém ainda tentou argumentar que a natureza não admitia moral. Mas era inútil. A natureza não podia fornecer um álibi para o nosso gozo da força. O problema moral havia se posto e nos arrancara do êxtase da estetização da violência.

Ruy trazia à baila, não raro, a questão do adoecimento e da morte. Às vezes, do nada, no ônibus ou no hiato de uma conversa banal. Era proverbial, por exemplo, seu temor ao “courant d’air”, personagem central, de resto, de uma de suas crônicas mais divertidas. Em seguida à sua morte, troquei mensagens com a Beth, pessoa querida, verdadeira até a medula, e que o conheceu melhor que ninguém. Ela relembrou como conviver intensamente com a morte e transpirar uma grande vitalidade era um paradoxo do Ruy e de sua longa coexistência com ele. “Mas no final”, escreve ela, “a vitalidade se sobrepõe à morte real”.