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Memórias

original en français

Tínhamos como interesse em comum a política, mas, como amigos, também falávamos sobre o sentido da vida.

Na ocasião do nosso último encontro, há alguns meses — ele acabava de completar 85 amos —, Ruy, como sempre, se questionava como seria sua morte. Poucas pessoas evocam esse acontecimento com ironia, curiosidade, lucidez, sem pathos, mas também sem arrogância. Para um materialista, esta é realmente uma questão séria.

Há quase dez anos, Ruy tinha consciência de que lhe restava pouco tempo de vida, e via isso como um tipo de presente que precisava aproveitar, e rápido. Tinha que escrever, publicar, o mais rápido possível, para preencher esse bônus de excesso de vida, essa sorte. E, para ele, viver era praticamente só ler, escrever, trabalhar. Ele se agarrou a isso com uma energia juvenil, com um apetite feliz para novos projetos. O que nos permite dizer que ele nunca envelheceu. Não havia nenhuma hybris ou egocentrismo nessa hiperatividade dos últimos anos, mas uma paixão finalmente concretizada para editar, para dar vida a uma revista, para tomar posição, ser ouvido.

Fico contente em saber que uma encantadora mulher veio lhe procurar através da música, no dia 1º de meio, arrastando-o rumo ao enigma que ele questionava. Como era um espírito curioso, eu acredito que, apesar do seu medo, ele teve que se dispor à aventura, e agora conhece o que nós ignoramos.

Vêm-me, agora, algumas imagens ternas, Ruy usando boina de cor indeterminada, aprendendo o russo, lendo tudo sobre a revolução chinesa em inglês, Hegel, em alemão, cercado por muralhas de obras na rua Richelieu ou na sala K à Tolbiac. Lógica e poesia, música e teoria política, conhecimentos que não coincidiam, mas se tratavam de estudos sempre sérios, aprofundados, pessoais. Ruy fiel, à espera no aeroporto de São Paulo, essa cidade gigantesca, violenta, viva. Ruy na Livraria Cultura, também gigantesca, na avenida Paulista. Ruy na Place de Contrescarpe em Paris, nos anos 1980, nas horas de discussão na Rue Mouffetard, sua filha dormindo no carrinho, pilhas de livros em enormes bolsas carteiro. Ruy hipocondríaco, corajoso, audacioso, pusilânime, solitário, às vezes enfurecido com seus monólogos sem fim, tão sociável e humano como só os brasileiros sabem ser com seu jeito simples e talento pra conversa, distante da arrogância francesa e das intrigas universitárias.

O fio de nossos diálogos engajados há quarenta anos na Biblioteca Nacional da Rue de Richelieu, em Paris, foi brutalmente rompido. No próprio dia do anúncio de sua morte, retomei o trabalho de escrita, porque isso é ser fiel ao que lhe era mais caro e ao que sempre nos conectou. Concordávamos quanto a isso: a luta para a emancipação passa por livros, revistas e discussões públicas. É aí que mora a verdadeira vida.

Continuaremos batendo boca, luta de classes versus liberdades republicanas, contrapondo nossos argumentos, e, como sempre, sem nunca concordar com nada, só com o mais importante.