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Mallarmé: fundador da arte contemporânea ou Broodthaers: jamais fomos autônomos

Breve e denso, O espaço das palavras — de Mallarmé a Broodthaers pode, como sonha o Livro mallarmeano, ser desdobrado ao infinito. E, no entanto, sua potência maior se revela na apreensão multifacetada da operação “paradoxal” de desdobramento e limitação dessas mesmas forças de dobragem, por meio da qual Broodthaers estanca e simultaneamente relança o horizonte da infinitude em Mallarmé.

Reapresentada em língua portuguesa, mediante tradução inteligente e acurada a cargo de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira, chega assim ao público brasileiro a aguda leitura por Jacques Rancière do encontro entre dois artistas incomensuráveis e convergentes. No centro desse teatro político-filosófico, encontra-se a reenunciação, por Broodthaers, do Un Coup de Dés Jamais N'Abolira le Hasard (1897) de Mallarmé, obra-emblema da modernidade poética, que reaparece sete décadas depois (1969) reagenciada como livro mallarmeano-anti-mallarmeano, integrando uma manifestação da tão peculiar ideia de “exposição” de arte proposta pelo decisivo artista “contemporâneo” belga.

Assim sendo, a leveza material do volume não deve desviar o futuro leitor do peso do nó estético e histórico, denso e múltiplo, que caracteriza o ensaio de Rancière, publicado originalmente em 2005. Pois, se estamos diante de um esclarecedor encontro de historicidades modernas e “contemporâneas”, também encontraremos no livro um entroncamento de questões fulcrais para os campos em questão: as negociações entre a esfera da “arte” e produção política do comum; uma revisão estética-histórica do paradigma modernista da autonomia nas artes; um enfrentamento do inadiável horizonte de contaminação entre essa última esfera e a dinâmica da mercadoria, este pareado com o datado, ambíguo e aberto horizonte das artes enquanto capacidade de fundação. Tudo isso atravessado por um pensamento dinâmico acerca das potências da linguagem, em seus processos de configuração de espacialidades plásticas e teóricas.

Sereia em leque, ouro do ouro e ouro de tolo, espiral

Nesse sentido, é preciso começar pela atualidade desses gestos de retomada de começos anteriores. E, portanto, pela incursão anterior de Rancière pelo “caso” Mallarmé,1 Mallarmé: politique de la sirène (1996). Álvaro Faleiros (2012) situa a intervenção de Rancière no âmbito do que circunscreve como a terceira fase da recepção da obra do poeta francês. A um “primeiro” Mallarmé identificado com a ideia mesma da modernidade poética, seguiria uma construção da figura do poeta no contexto imediato da “década simbolista” do autor (1885–1895) e, finalmente, um terceiro Mallarmé, construído a partir do final do século XX.

Referência central para Faleiros, Marcos Siscar (2010) caracteriza a terceira versão histórica de Mallarmé situando-a no contexto de esgotamento dos ciclos vanguardistas do século passado, cujo viés empenhado-civilizatório delimitaria uma cena de recepção taxativamente polarizada entre posições pró e antimallarmé. Ao que o crítico acrescenta, ainda, um decisivo deslocamento de abordagem, correspondente a uma “valorização sem precedentes” da prosa crítica de Mallarmé, refletindo uma “revisão de perspectiva” contemporânea ao centenário da morte do poeta em 1998, ano em que inicia-se a republicação de sua obra na coleção Pléiade, da editora Gallimard.

Com efeito, um núcleo duro do movimento de Politique de la sirène consiste justamente no diálogo cerrado com a prosa crítica reunida em Divagations (2003)2 — estas que, como ressalta Siscar, integram o mesmo projeto de escrita que dá origem a Um lance de dados. Este o esforço que afere posição notável à perspectiva de Rancière no âmbito desse novo horizonte interpretativo, que coloca no centro do palco a preocupação de Mallarmé com a “aspiracão a instituir ‘comunidade’” e, ao mesmo tempo, com “um tipo de dramatização da violência consensual dos fluxos culturais que [excluem a poesia], ou que a recuperam com uma bem medida tolerância ou complacência (Siscar, 2010: 128. grifo nosso).

É disso que se trata com a “política das sereias”: sobretudo, retirar Mallarmé da noção de sua autocondenação à “intransitividade” do topos da “torre de marfim”, tendência amplamente difundida, mas individualmente bem ilustrada por Sartre. E, ao mesmo tempo, desviar o foco da leitura do poeta como “herói de uma aventura do espírito”, (Rancière, 2011: xv) cujo marco consensual é a associação entre a busca do absoluto da passividade da linguagem e do indizível e o absoluto da impotência e à questão do suicídio, que marca o decisivo e inacabado projeto Igitur, e tem como expoente interpretativo a leitura de Blanchot.

A esse Mallarmé intransitivo e herói impotente do absoluto, Rancière contrapõe um Mallarmé, entre outros fatores, leitor de Zola e admirador de sua coragem cívica na defesa de Dreyfus, além de crítico peremptório à versão wagneriana — essencialista e politicamente catastrófica — da integração das diferentes artes. Um Mallarmé — e aqui já começamos a nos aproximar do encontro com Broodthaers — cuja tentativa de “elevar a página ao poder do céu estrelado”, segundo a formulação de Valéry (Rancière, 2011: 56), responde à constatação de um “blecaute do céu das ideias”. Constatação esta que revela a associação inextrincável entre a “crise de versos” e uma “crise do ideal e do social” (xvi). Ou, nas palavras de Mallarmé, retomadas por Rancière, constatação do desaparecimento de qualquer “molde supremo para algo que não existe”, de qualquer “possibilidade de denominador divino de nossa apoteose”, irreversivelmente afundada no naufrágio de uma ideia de Bem, ou de uma “ideia-sol”, como diz Rancière, que iluminaria “o mundo inteligível do mesmo modo como o sol iluminaria o mundo sensível” (11).

Bem entendido, o horizonte de Mallarmé é o ideal, ou, pode-se dizer, a apresentação da Ideia. A “forma” do poema mallarmeano, lembra Rancière, “deve simultaneamente ser o corpo e a ideia de sua ideia”. Isso, porém, em meio a uma situação histórica em que o que resta é apenas o “pó dourado” da ideia. Esta é a empreitada impressa na figura da sereia: a da produção de um “traço exemplar de uma idealidade sem modelo”, a captação e apresentação da virtualidade da “dança” que se dá no intervalo entre um “movimento” sensível e a “sugestão” de uma “figura”, ressoando na orla entre o sensível e o inteligível.

“Combinação aleatória e momentânea do movimento de uma mulher […] e uma forma de mundo”, a sereia torna-se o símbolo das tentativas mallarmeanas de articular um “teatro interno do espírito” e um “teatro do mundo” (13). Daí a centralidade da concepção mallarmeana de ficção. De um lado, a ficção constitui para Mallarmé o campo possível de “autenticação” — a atualização pertinente à potencialidade do espírito e à concretude da situação — da “relação entre o infinito e o nada”. O emblema, aqui, é a dinâmica mallarmeana de dobragem, ou, digamos, o batimento ontológico do “leque”, “a magnificência do puro movimento de aparecimento e desaparecimento”. Nas palavras de Rancière, “O poema é o movimento do leque, que é o infinito dobrado e desdobrado em novo (anew) em um número rigoroso de dobras reduzidas a apenas uma” (22).

Porém, de outro lado, a ficção equivale, para Mallarmé, ao próprio “funcionamento do espírito humano”. Aqui entramos com Rancière no coração do problema da possibilidade de configuração sensível de uma “comunidade à qual falta sua ideia” (28). Com apoio em textos reunidos no Rabiscado no teatro de Mallarmé, e outros textos de Divagações que abordam esse nicho de problemas com sintaxe retorcida e atitude explicitamente dirigida de intervenção situada, Rancière reconstrói os posicionamentos do poeta diante da “religião do século”. Ou seja, diante do imperativo geral de construção de uma nova religião e de novos mitos no seio do desencantado século XIX, aberto incialmente pelo romantismo alemão.

Em contraste com as investidas de Ludwig Feuerbach e dos saint-simonianos, o religare mallarmeano sonha com uma religião “do artifício”, ou uma “religião musical”. Se o topos central da modernidade heroica da poesia é o “mistério”, a religião não estaria distante, com sua vocação à “celebração da ausência” suprema em presença. Mas, antes disso, para Mallarmé, “o verdadeiro ‘fim’ da religião é a restituição da linguagem aos seus poderes”. Apresentar o movimento puro da ideia corresponderia à atualização do lugar-fonte da palavra, anterior a todo discurso, de onde poderia emanar o “ouro simbólico” da poesia.

De modo que a glória do espírito humano ressoaria em uma simples sala de teatro, desde que as convenções naturalistas fossem postas em suspenso. “Forma gloriosa por excelência”, o teatro seria o espaço privilegiado para a comunhão pelo prazer, para a abertura ritual ao mistério — sem, no entanto, que o público necessariamente pudesse formular de modo consciente essa experiência majestática.

Essa intuição aparece formulada em divagações como “Confrontação” e “Conflito”, nos termos da relação entre o “poeta” e o “trabalhador”. Diante de um buraco em obras em que homens trabalham em pleno domingo, Mallarmé traça as linhas de contato e desvio entre as duas posições. Se na mineração do ouro de troca, o ouro dinheiro, poderia estar refletida a destinação de uma libertação do trabalhador para além do círculo fechado do trabalho. Ao trabalhador, no entanto, não seria dada a possibilidade de “ver simbolizada a quimera que suplementa o trabalho” (32). Já ao prospectar o outro ouro, o “ouro simbólico”, o poeta não poderia entrever índice algum que, situado, pudesse identificar sua posição com a do trabalhador. Antes, sua ação deveria se restringir a ocupar o lugar verdadeiramente prospectivo negado a seu outro, diante do “risco” de que essa “dupla economia” que será central em O espaço das palavras dissolva-se, tornando o poeta um “financista, arrancando o ouro do futuro para a mediocridade da falência ordinária” (34).

O problema central de Mallarmé diante de seu tempo, afirma Rancière, é a “ausência de presente”. “As condições ainda não existiam para a união do poeta e da multidão no “hino dos corações espirituais”, constatação que não deveria ser tomada em uma chave niilista de leitura da “solitude”, “sendo mais justo comparar a ‘ação restrita’ à noção marxista de uma necessária maturação de condições revolucionárias” (33).

Vê-se, assim, a ligação inextrincável entre a “crise do ideal” e a “crise do social”. Resta, contudo, vê-la se apresentar ao longo de uma “espiral”, nos termos de Rancière, que poderíamos nomear com a espiral múltipla das artes. Pois, em Mallarmé, a resistência do teatro da época à liberação das potências de apresentação da ideia em detrimento do enquadramento naturalista conduz a um foco na música, enquanto linguagem que abstrai a representação em prol da possibilidade de um “ritual de consagração do lugar”. E, contudo, a própria “religião musical” correria o risco de decair na concretização de uma crença essencialista — e, como sabemos hoje, autoritária3 — na possibilidade de produção de um Hino para O Povo. Esta é a crítica explícita e contundente de Mallarmé ao caso Richard Wagner: incapaz de dar conta da necessidade de esperar pela maturação das condições sociais, o teatro musical wagneriano transformaria, ainda, “a comunhão ‘através de um espaço vacante’ na presença real do povo em si, convidada à celebração de uma comunidade de origem” (40).

É assim, então, que Mallarmé retorce ainda a espiral em direção à dança, à apresentação do movimento do “pensamento-ritmo”. Movimento que encontraria seu investimento último no Livro de poemas — sem que isso encarne, contudo, a noção hegeliana da “conquista, pelo movimento do espírito, da reconciliação de seus poderes”. A apresentação, virtual e antecipatória, da “conflagração do horizonte unânime” só poderia se dar em uma Obra que “fizesse do poema a religião do futuro e, simultaneamente, recusasse toda encarnação para essa religião ou um corpo de qualquer tipo para garantir o poema” (58).

Obra-livro, portanto, articulada em um modo paradoxal e ambíguo de materialidade, infenso tanto à ideia da “incorporação carnal” da letra, quando da abertura absoluta ao “sopro imaterial”. Escrita “mais que escrita” e “menos que escrita”, Livro “simultaneamente pintado e apagado”, “corpo e ideia da ideia”, material-imaterial, para que o poema possa se constituir na religião do futuro. Esta reapresentação da espiral mallarmeana das artes poderia soar excessiva. Contudo, é ela quem pode lançar luz sobre fórmula decisiva e pioneira de Broodthaers: Mallarmé seria o “fundador da arte contemporânea”.4

Mallarmé: fundador da arte contemporânea

Ao eleger Un coup de dés como superfície para sua intervenção reagenciadora, Broodthaers elege a realização máxima da busca mallarmeana pela “verdadeira coreografia da ideia”, “o branco da página aberta, de linhas desiguais de caracteres emprestados a diversas fontes, apta a reproduzir a topografia do espírito (Rancière, 2001: 53-4). Seu gesto incidirá, portanto, sobre a teatralização de uma espacialidade aberta simultaneamente (podemos lembrar, para começo de conversa) em partitura para o ouvido e superfície para o olho. Teatro que põe em cena uma multiplicidade de relações, “entre a constelação e o abismo”, “um lance de dados e a leveza de uma pluma”, “um bater de asas e o naufrágio” (Siscar, 124). Espaço de “comunidade de signos e formas” (Rancière, 2020: 17 — ênfase nossa), entre palavras e espaço, dando a ver uma organização singular e instantânea do “pó da Ideia” em um feixe de virtualidades heterogêneas, cuja “autenticidade” torna-se apta a “rivalizar com o fólio do céu”.

Eis o gesto, paradoxal, como observa Rancière, de Broodthaers: reapresentar o Lance de dados tal qual, em doze placas correlatas às páginas duplas ocupadas pela distribuição plástica-coreográfica dos caracteres, porém, substituindo o texto inteiro, linha a linha, por retângulos pretos de diferentes magnitudes. Broodthaers relança a espacialização dupla do poema de Mallarmé, “virtual” e “material”, em uma “espacialização indiferente” (Rancière, 2020: 16). Realiza um “tratado de arte antiplástica”, ao interditar o estatuto “plástico” do poema, porém na “forma contraditória do devir-plástico do seu texto”. Sedimenta em livro-imagem a recusa mallarmeana à redução imagética de sua constelação de virtualidades.5 Homenageia Mallarmé, defendendo o “poder das palavras em criar espaços”, demonstrando no mesmo passo que “não existe espaço próprio das palavras. Existem as palavras e existe a extensão”.

Relançando a potência do “desdobramento” mallarmeano entre o “quase-visível da palavra” e sua constituição em “um espaço material concreto”, Broodthaers “fecha o poema de Mallarmé entre dois extremos: as palavras sem espaço e o espaço sem palavras” (54). Em poucas palavras, reabre a analogia entre a “potência espacializante do poema e o alfabeto dos astros” para, poderíamos dizer, fechá-la paradoxalmente em nova potência de dobramento-desdobramento.

Em torno desse núcleo, o leitor poderá gravitar na órbita da longeva teorização de Rancière acerca da “revolução estética”, que ocuparia lugar privilegiado nessa escansão dos regimes pós-representativos da modernidade artística, em seus entrelaçamentos de estética e política. Mallarmé e Broodthaers fundam e refundam o estatuto moderno das relações entre as artes ao erigirem em emblema a noção de que o paradigma autonomista representante “da teorização modernista da autonomia da arte como autonomia das artes” (18 g.a) “deixou de ser válido […] porque nunca foi válido”.

Jamais fomos autônomos. Se o paradigma modernista é emblematicamente encarnado por Clement Greenberg ao identificar a modernidade artística com um processo generalizado de purificação e especificação de cada meio artístico (a pintura é a bidimensionalidade da superfície pictórica despida de qualquer traço tridimensional, e assim por diante), bastaria olhar para um Klee, um Magritte, um Apollinaire, para reconhecer outro paradigma. Posto em crise o império da representação, longe de decantar-se em uma progressiva autopurificação, a superfície converte-se em uma “superfície de troca onde os procedimentos e as materialidades das artes deslizam uns sobre os outros, onde os signos tornam-se formas e as formas tornam-se atos” (22 g.n).

Teatro-coreografia-pantomima-tipografia, o espaço mallarmeano apresentava de modo antecipatório e com máxima nitidez esse “espaço de troca”. A constelação difrata-se em múltiplas direções. A indistinção entre “formas de arte” e “proposições da linguagem” reflete-se mutuamente com uma “política da revolução estética: a ideia de uma revolução da vida como revolução das formas”, moderna enunciação de um contínuo utópico ao longo de longo do qual deslizam e se identificam “signos, formas e atos”. O horizonte mallarmeno prolonga a hesitação entre o “infinito e o nada”, pois a restrição de seu lugar histórico não ofusca sua vocação à potência de fundação (23).

Um Lance de Dados Jamais Abolirá o Acaso, tradução de Haroldo de Campos, 1974. Leitura por Marcelo Zoppi, 2020.

Daí o gesto de redobramento concebido por Broodthaers: fechar o poema de Mallarmé significa opor-se à identificação “da superfície das palavras-imagens com um novo céu coletivo” (34). Afinal, na dobradiça dos anos 1960 para os 1970, já era claro que o “risco” de dissolução identificadora entre o ouro de troca e o ouro simbólico que preocupava Mallarmé já se realizara. O nome político-econômico dessa irônica realização da própria utopia mallarmeama da transformação dos objetos em signos, “forma de vida cumprida prosaicamente”, é “fetichismo da mercadoria” (51).

Do mesmo modo, aquela grande “utopia-simbolista, simultaneísta, futurista ou dadaísta” (38), reatualizada a partir de Mallarmé, havia “congelado”. Mesmo as configurações da superfície concebidas pelos três modernos com relação às quais Broodthaers contrasta seu lugar estético teriam decaído da condição de “projetos de vida” à de “obras de arte”, “guardiãs da autonomia da arte” em chave greenberguiana. O mimetismo caligráfico-tecnológico de Apollinaire, a harmonização entre planaridade pictórica e elevação propagandística do céu do trabalhador soviético por Rodchenko, o “espaço de indiferenciação” entre espaço da obra e objetos da vida ordinária onde reluziria o “comunismo estético” de Kurt Schwitters — todas essas utopias de homogeneidade entre formas e vida teriam de ser rebatidas pelo novo artista por meio da reintrodução “na superfície da heterogeneidade dos signos e das formas” (39).

Broodthaers “reativa” a superfície, nela introduzindo um “distanciamento” crítico. Ela se torna, então, um “espaço de confrontação”, de “choque” entre elementos incompatíveis. Mesmo Magritte, posto em reserva por Broodthaers com relação às demais linhagens que direcionariam a imagem surrealista à futura pop art, por desenvolver a imagem-choque surrealista em detrimento da imagem-fusão de mesma estirpe, recairia na tendência de “homogeneização” do espaço das palavras.

Aqui entra, afinal, o redimensionamento decisivo que, encarnado por Broodthaers, conflagra todo um horizonte não-unânime que é nada menos que nosso horizonte atual: a transformação do estatuto do artista. Poeta que deixou a poesia para tornar-se artista, artista que deixou de ser artista para ser uma espécie rara de curador, sem nunca deixar de ser, precisamente, artista, Broodthaers é o emblema da atualização da explosão dessa ficção nominativa cujo emblema primeiro fora Duchamp.

Rancière encaminha os últimos movimentos de seu texto nessa direção, enfatizando a dimensão negativa dos gestos artísticos de Broodthaers e com acento em um campo de procedimentos sintetizado na chave da demonstração. Rancière transita entre diferentes regiões dessa artisticidade centrífuga de Broodthaers, como a materialização radical do “devir-coisa das palavras” sob a forma da conversão de seu livro Pense-bête em um livro-escultura corporificado entre uma transitoriedade amorfa do branco e seu estancamento em objeto. Rancière salienta, no entanto, trabalhos como O corvo e a raposa e o inteligente procedimento utilizadopor Broodthaers também em seus museus imaginários, ligado à notação textual técnica “figura”.

Broodtahers subvertia a operação, própria a textos didáticos ou a classificaçõea museológicas, de indexação de um objeto por meio da indicação paratextual “fig. 1; fig. 2…”, autonomizando-a com relação a sua função de indicação do objeto, de diferentes modos. Ao assumir-se como funcionalidade autossuficiente, essa, digamos, operação-“figura” permite designar simultaneamente “qualquer coisa e sua ausência”(41). Rancière sublinha a funcionalidade demonstrativa da operação, que daria corpo à noção de que “Se as palavras tomam a aparência de coisas físicas sobre a obra-quadro de Broodthaers, é apenas para explicar quais são as relações entre as palavras e as coisas, ao modo das imagens de livros de aula” (49).

Se a apropriação das “figs.” por Broodthaers aponta novamente para a questão da generalização da equivalência própria à conversão das coisas em signos de troca mercantil,6 Rancière ainda caminhará ao fim do ensaio esbatendo todo esse último movimento pela marcação da “ambiguidade” que pontuaria constantemente a arte de Broodthaers. Dada a brevidade do ensaio, abre-se um espaço para diálogos mais amplos com a trajetória do artista. Pois as últimas páginas nitidamente reforçam a dimensão de demonstração do funcionamento da equivalência reificadora e, contudo, Rancière faz questão de concluir realçando o sabor de paradoxo do gesto de Broodthaers. A conversão subversiva do Lance de dados em imagem,7 plasticidade criticamente dividida em sua superfície, daria corpo à necessidade de uma “‘imagem’ que não seja o duplo de nenhum objeto do mundo, mas a realização de uma ideia” (58).

Eduardo Jorge de Oliveira (2017) faz nota de certa “reticência” de Rancière quanto ao procedimento do Lance de Broodthaers, inclusive fazendo eco com a crescente fortuna crítica do artista, ao trazer à tona outras dimensões dessa “conquista do espaço”, que ampliam a consideração do problema da materialidade da escrita plástica, incluindo outras potências de exploração do “espaço da fala” e das “interpretações possíveis de uma outra lei, a da literatura”. Com efeito, não é de se estranhar que certa perplexidade interpretativa possa restar ao final da leitura de O espaço das palavras, concluído com a insistência no incômodo ato-paradoxo de Broodthaers: seu trabalho apresentaria o “choque de duas grandes políticas estéticas”, ou modos de “autossupressão” moderna da arte: “a arte que ultrapassa a singularidade das artes e dos suportes para construir formas do espaço comum” e a que “denuncia sua própria pretensão utópica revelando a relação de suas formas às da vida alienada”.

Nesse sentido, a notável e múltipla densidade do ensaio não poderia deixar de trazer à tona nossos próprios campos de reverberação das questões tão agudamente amarradas pelo filósofo nos limites da extensão do seu livro. Pois, se há cinquenta anos já germinava o paradoxo de que o branco da página nada mais é que o branco da página e, simultaneamente, um branco múltiplo aberto em novos espaços, o que fazer hoje do poder de fundação pela palavra, quando esta a um só tempo jaz no fundo do fundo do naufrágio e se espraia por todos os mundos das artes, apta, a dar espaço senão a “formas de mundo”, ao menos a formas múltiplas de vida?

Mundos em dobras

Em sua supracitada apresentação à tradução do Lance de dados por Álvaro Faleiros, publicada em 2017, Siscar marcava, de passagem, o afastamento do “visual” no poema com relação ao estatuto de suporte — jargão modernista, é preciso lembrar, para a noção de estruturas técnicas, concretas e dadas de antemão sobre a quais incidiria o gesto artístico. Enfatizava, em contraste, seu agenciamento enquanto “mídia”, ou, conforme o significante difundido pelas teorias da arte contemporânea, meios.

No clássico contemporâneo A voyage on the North Sea. Art in the age of the post-medium condition (1973/1999), Rosalind Krauss situava Broodthaers como “porta-voz” dessa “condição”. Tratava-se não de se livrar do significante “meios”,8 mas de fornecer uma alternativa a sua concepção enquanto suporte físico maciço e dado de antemão, nos termos de uma “estrutura recursiva — uma estrutura, isto é, alguns dos elementos a partir dos quais serão produzidas regras que geram a estrutura em si” (6), o que incluiria processos de internalização reagenciadora das convenções sedimentadas no campos das artes.

Krauss elegia como realização emblemática da condição sub-intitulada o trabalho de Broodthaers que fornece o título do ensaio. A partir desse brilhante filme-livro-quadro de Broodtahers, a autora colocava em evidência uma operação de desdobramento temporal, que explicitava o trânsito da constelação do trabalho entre o caráter “compósito” do meio fílmico (radicalizado pela vanguarda cinematográfica do “filme estruturalista” pós-minimalista) e, em chave benjaminiana, uma potência “redentora” extraída de reabertura do obsoleto campo de experimentação tecnológica dos primeiros passos da história do cinema.

A Voyage consiste em um breve filme estruturado como a exibição, página a página, de um livro que apresenta ao espectador nada mais que uma sucessão de tomadas de uma paisagem pictórica marítima. Mais que isso, o que vemos é uma alternância entre tomadas gerais e hiper-close-ups da pintura, que, no segundo caso, é exposta na trama mais irredutivelmente material entre a tinta e a tela. Como observa Krauss, à medida que as páginas se “desfraldam”, viajamos entre a suposta noção tradicional do quadro como produtor de uma imagem e aproximações ao sumo do gesto de extração modernista do monocromo, evidenciado, no entanto, em sua objetualidade já problemática, uma vez que entre tela e tinta já se faz presente necessariamente um ato de agenciamento.

A viagem consistiria “na busca pela origem do trabalho, origem esta suspensa igualmente entre a materialidade da tela flatbed9 do trabalho (a origem “modernista”) e a imagem projetada nessa superfície opaca, como índice do desejo originador do espectador para abrir qualquer dado momento de experiência a algo além de si mesma (realidade como ‘origem’)”(53). Nessa “passagem entre diversas superfícies”, Krauss identifica uma operação de estratificação (layering) que pode nos fornecer uma ilustração de toda potência de multiplicidade aberta pelos gestos de Broodthaers, do interior da “demonstração”, em direção à produção de novos meios e noções do artista. O “meio-mestre” de Broodthaers, pensa Krauss, é, no fundo, a ficção  (46).

Enfim, de dentro dessa medialidade compósita e “autodiferente”, como Krauss a designa, da demonstração histórica-estética de nossa condição incontornavelmente ao rés da superfície, poderíamos reabrir O espaço das palavras e perguntar: o que podem as palavras em sua condição de infinitude pós-infinito?

Como mostra Rancière, é porque “as palavras não se assemelham às coisas” que a poesia de Mallarmé vive da apresentação da “reciprocidade dos fogos”, como disse o poeta, ou da “música de relações entre tudo” (2011: 53 e ss.). Entre infinito e nada, a Ideia-sol se espraiaria por uma “multiplicidade de esquemas” de virtualidades relacionais, ou, no jargãoda poesia moderna, “correspondências”: “Um desaparecimento contém muitos outros em seu interior”, O poema operaria por “dobras que recurvam (rebend) o espaço para torná-lo mundo” (2011: 23).

Como escutar essas frases para além do clichê que reduz o simbolismo heroico da poesia moderna a uma participação cósmica geral que dissolveria as diferenças entre os seres e entre as camadas da vida? Poderíamos voltar ao be-a-bá da poesia, com a afirmação de Octavio Paz de que “Tudo é linguagem” (Paz, 2012) — legível também pelo inverso, algo como “a linguagem pode apresentar tudo”. Antes disso, porém, bastaria que nos voltássemos para essa potência de atravessamentos entre superfícies chamada linguagem.

Ao reabrir a invenção da linguística estrutural por Ferdinand de Saussure enquanto “filosofia simbolista”, Patrice Maniglier (2006) recorre a Mallarmé para dar corpo a um paradigma outro da linguagem e da vida simbólica: as palavras relacionam-se com o mundo não enquanto funções representativas, mas enquanto “realidades qualitativas” (26). “Um vocábulo captura uma qualidade na outra”, traça esquemas de virtualidade relacional, pois a própria experiência não é um dado maciço, mas “a apresentação da possibilidade enquanto tal, pura promessa, aspiração”. Dito de outro modo, a linguagem não incide sobre o mundo enquanto determinação subjetiva, mas dá corpo “a possibilidades objetivas” do mundo — opera pela evocação de nuances, pois a experiência é continuamente atualizada sob a forma de nuances. O poeta apenas “recolhe, amplifica, faz ressoar um sistema de ecos já interior ao mundo”.

O prisma mínimo do signo organiza formas de mundo, para voltar à política da sereia. É preciso ler aqui uma insistência em uma suposta potência fundadora absoluta da linguagem? Não. Trata-se, antes, de considerar que cada apresentação do mundo por qualquer tipo de linguagem contém a possibilidade de dar a ver as múltiplas camadas que entretecem os recortes de cada objeto. Donde a possibilidade de um “trabalho constante de exposição da contingência de nossas formas de vida”, enquanto “prática ativa de desobediência” (Maniglier, 2013: 254).

Dessa perspectiva, o nó desatado e desdobrado por Rancière pode ser flagrado em desdobramentos passíveis de ser continuamente relançados: a heroica poesia simbolista pode falar de perto com a contínua reinvenção de medialidades que marca nosso horizonte; os ecos póstumos de Broodthaers espraiam-se em diversas direções para além da ampliação homogeneizante da forma-instalação ou da demonstração da determinação dos espaços das artes pelo enquadramento de seus lugares institucionais (“crítica institucional”);10 reinventar continuamente novas dobras entre materialidade, imaterialidade e a heterogeneidade de materialidades não é gesto tão distante da reenunciação de uma longa história de reinvenção da comunidade.

Assim, para concluir, mais do que reiterar o elogio aos méritos da tradução, talvez valha realçar e desdobrar a constelação iluminada pontualmente pelos tradutores. Muitos tempos em um só tempo. Nas mínimas superfícies de Mira Schendel, campos de brancura onde o germinar da potência vital da linguagem se deposita e entranha, antes da página, na receptividade das mil materialidades do papel, podemos entrever não apenas ecos dos signos-figuras de Klee, mas, como mostra Eduardo Jorge de Oliveira, de uma “glória épica imperecível” às voltas com a interdição de seu próprio horizonte, em hesitação prolongada entre a “épica plástica” do signo e um “lirismo doméstico”, feminino do “sigilo” (Oliveira, 2015). Em um artista como Nelson Félix, a arte é escrita do mundo, não como Livro da ideia, mas como “reinvenção da superfície do mundo”, quando a linguagem agenciada são as escalas do mundo, e a página dos mapas e atlas encarnam o espaço como lugar-situação, fazendo da “ficção” um espaço de hesitação entre “profecia e ausência” (Oliveira, 2015).

Se, como Rancière observou a partir de Valéry, em Lance de dados, “a área falava”, como conceber a materialidade da plataforma pós-digital aarea, fundada por Marcela Vieira e Livia Benedetti em 2017?11 Perguntar se a internet seria o “meio” nesse campo onde a arte é comunidade aberta de produção de relações artístico-curatoriais seria pouco. Basta olhar para o quilômetro quadrado preto ativado pela plataforma em 2018 por Kenneth Goldsmith, que permite ao espectador “viajar”, para falar em Broodthaers, pela deslizante e infinita extensão da imaterialidade da internet, sem cessar de não encontrar uma origem virtualizada e impassível de ser abarcada em um só olhar, lábil e resistente como as extensões materiais que nunca iremos abarcar de todo.

Seria preciso, ainda, falar em corpos, mesmo porque são estes que compõem, hoje, o campo de incidência privilegiado de atos irreversíveis que configuram o político como rotinização do genocídio. Tomemos, em outra chave, os recentes Contrapposto Studies de Bruce Nauman, reagenciamentos corpóreo-vídeo-sonográficos desse recurso que remete ao cerne da estatuária grega. Enquanto a pose em contraposto era privilegiada por aferir máxima aparência de naturalidade aos corpos representados, balanceados simetricamente se vistos de um ou outro lado, Nauman põem em vídeo seu próprio corpo em sucessivas tomadas em contraposto, para então estratificar as tomadas em diferentes camadas fora de sincronia, sujeitas ainda a alterações binárias da imagem, que se reproduzem fora de fase junto às tensões entre visão e escuta, movimentação progressiva e movimentação regressiva, e assim por diante.12

Seria preciso, ainda, passar, com as “artes visuais”, pelo teatro, lembrando um Valère Novarina, cuja cena relança a consagração da “morada” desse “animal quimérico” que seria o homem, enquanto “morada frágil”13 de um animal profético estilhaçado. Ou, ainda, o Stifters Dinge, de Heiner Goebbels, peça sem atores onde a perda de mundo difrata-se em uma proliferação de dobras inteligíveis-sensíveis. Ambos projetos que talvez façam ver que uma condição atual, “descongelada”, remete à “obra de arte total” wagneriana, porém minando, por dentro e por fora, o enquadramento autoritário do projeto de Wagner.

Como sugere um artista que atravessou algumas dessas temporalidades, é possível operar a “Ficção nas coisas”.14 Há um trabalho-“anotação” de Waltercio Caldas que parece ressoar a epígrafe de O espaço das palavras, em que Broodthaers sugeria que “A palavra ou a ideia — indissoluvelmente ligadas ao ser — está na origem das noções modernas de espaço nas artes plásticas e na música”. E que se a linguagem produz o espaço, este é o “traje dos cegos”.

Uma folha de papel amassada e, então, desamassada exibe a reprodução de uma gravura antiga. Ao que tudo indica, vemos dois profetas cegos, situados na sacada possivelmente de um templo elevado, um clamando aos céus, outro convocando (avisando?) a cidade abaixo. O conteúdo das invocações ficaria eternamente suspenso entre o registro visível e a invisibilidade das vozes. Contudo, Caldas preencheu o vazio dos chamados. Carimbou, literalmente, a projeção vocal de cada profeta figurado com a palavra figura. A superfície, aberta em múltiplas relações, é fechada em sua evidência irredutível — não é mais que campo plástico de figuras, materialidades, ideias, formas e marcas de atos puramente artísticos. Adivinhação ou tempo perdido das revelações? O chamado foi escutado ou jogado fora de antemão? Foi reaberto após ter sido jogado fora? “Ausência de presente”, ou excesso de presente, estreitamento radical das relações entre “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa? (Koselleck, 2012). Amassar não é dobrar, é ato irreversível não de apresentação do vazio, mas de prolongamento de uma construção-destruição. Não há o que comemorar, nem “consagrar”. A arte aqui é uma folha de papel irreversivelmente amassada e infinitamente desdobrável.