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Estripando a realidade: pontos cegos e escombros de dados em 3D1

Janaina Wagner, You must remember this, a kiss is just a kiss, a sight is just a sight (I).

After BabelNT1, estudo idiossincrásico de George Steiner, termina com uma evocação fascinante. Citando partes obscuras da escritura, Steiner imagina uma rebelião das palavras. As palavras irão “sacudir a servidão da significância. ‘Se tornarão apenas elas mesmas, assim como pedras mortas em nossas bocas’”.2

E se as imagens pudessem fazer o mesmo? E se elas se transformassem nos objetos que reivindicam representar? E se a superfície achatada da representação adquirisse extensão e até mesmo um corpo? E se imagens se transformassem em pedras, concreto, plástico, coisas aparentemente mortas? Iriam elas, então, se sacudir de sua própria servidão e sentido? Iriam elas recusar a significância ou, ao contrário, atribuir-lhe ainda mais peso? Seria isso uma insurreição das imagens? E contra o que elas estariam se rebelando?

As recentes tecnologias em 3D nos confrontam com tais questionamentos. Digitalizações em três dimensões e certas técnicas de impressão são hoje capazes de criar réplicas materiais de objetos e situações: moldes remotos de realidade. Imagens são, portanto, potencialmente substituídas por objetos que servem de dublês para outros objetos. Nessas tecnologias, a representação é substituída pela replicação. Nós já estamos acostumados a copiar e a colar e a replicar rapidamente itens em 2D, como fotos ou palavras. Mas como copiar e colar a realidade? Como alguém criaria uma réplica do material indexical de uma situação? Como uma imagem se torna uma pedra morta?

Imagens de corpos

Recentemente, os scanners 3D foram implementados como uma nova tecnologia da verdade. O equipamento de digitalização 3D é utilizado para o trabalho policial, investigando homicídios, acidentes e explosões, e também para averiguar o paradeiro de pessoas desaparecidas. Scanners 3D geram nuvens de pontos, medições no espaço virtual que, por sua vez, podem ser renderizadas e então impressas como objetos de três dimensões.

Um scanner LiDARNT2 captura informação através de um raio laser, luz branca ou refração infravermelha. Nas palavras de um de seus principais fabricantes, o scanner “mede uma cena com um extraordinário nível de velocidade, precisão e perfeição”,3 transformando-a em uma nuvem de pontos dentro de um espaço virtual. Os pontos correspondem a medições de localização.

Para citar algumas amostras do website da empresa Leica Geosystems:

Essa tecnologia é usada globalmente por agências policiais para investigar cenas criminais, avaliar vulnerabilidades e ameaças, investigar cenários de pós-explosão, averiguar ações policiais, acidentes, dentre outras práticas.

O sistema ScanStation é objetivo e mede inteiramente tudo aquilo que que ele pode “ver”, para posteriormente ser analisado e diagramado.

Nesta terminologia, reconhecemos imediatamente muitos dos aspectos comuns nas discussões mais tradicionais em torno do significado de evidências documentais. A nova tecnologia promete tudo aquilo que a chamada representação documental prometeu: objetividade, representação fidedigna e integral dos eventos, porém desta vez aumentada através de uma dimensão adicional. Uma nuvem de pontos 3D não é mais uma outra imagem achatada, sem profundidade ou extensão. É uma cópia com volume, replicando obedientemente a forma do objeto inicial.

E então, o que vem a significar a noção de documental, se aplicada a replicação em 3D de objetos e situações? Qual a relação da tecnologia 3D com as ideias tradicionais acerca de evidências documentais? Como as noções de verdade documental são atualizadas ou deslocadas pela tecnologia 3D? Como a habilidade de criar reproduções em 3D afeta ideias sobre verdade documental? O que significa substituir representação por replicação?

Corpos ausentes

Este é um estudo de caso sobre replicação 3D em que trabalhei em 2011, utilizando um scanner a laser FARO e diferentes softwares. Gostaria de enfatizar que não o considero um caso documental, ainda que tenha sido baseado na realidade. Ele é apenas um modelo para testar essas tecnologias para uma prática documental em potencial. O estudo de caso parte de uma fantasia específica. Vamos pensar em beijos. Beijos são eventos viajantes. Podemos imaginá-los sendo transmitidos como mensagens ou até mesmo como vírus. Eles excedem uma dada situação porque um beijo entre duas pessoas pode se deslocar para uma outra situação. Ele pode se multiplicar e pode ser disseminado. Pode se espalhar e pode criar trajetórias no tempo e no espaço. Os beijos não apenas podem desaparecer como também, quando copiados e repetidos, se auto renovar. Eles estão sujeitos a constantes mutações e é quase impossível repeti-los identicamente. Porém, um beijo, visto do ponto de vista da digitalização tecnológica, funde vários agentes, geralmente dois, em uma única superfície. Superfícies conectam corpos e os tornam indistinguíveis. Elas conectam corpos a terrenos, e a outros objetos que porventura com eles estejam em contato. Superfícies capturam corpos como formas ondulares, emaranhando-os ao seu entorno material. Um beijo é uma transmissão energética que dobra superfícies e as conforma em topologias afetivas. Podemos pensar em superfícies sendo esculpidas por beijos, e em formas e dobras sendo curvadas por sua energia. Mas podemos também pensar em cada beijo que vemos e testemunhamos como derivativos, versões ou procriações de outros beijos.

E, na verdade, cada beijo que acontece ao nosso redor pode ser uma versão de um beijo específico.4

Este beijo aconteceu em 1993, durante a Guerra da Bósnia, quando vinte pessoas foram sequestradas em uma estação de trem no leste da Bósnia chamada Štrpci.5 Elas foram retiradas de um trem que viajava de Belgrado a Bar. Uma unidade paramilitar as sequestrou. Nenhuma delas foi vista com vida novamente. Existem dois elementos não usuais nesse incidente. Primeiramente, o fato de que apenas dezenove dos vinte sequestrados foram identificados: isso é, seus nomes, identidades e parentes foram identificados. A exceção de três, cujos restos mortais emergiram recentemente em um lago de barragem, todos os outros continuam desaparecidos. A vigésima pessoa, porém, é um mistério. Nem o seu nome, nem a sua identidade são conhecidos. Nos depoimentos de três testemunhas que a viram sendo levada para longe na estação de trem, ela é relatado como tendo estado presente no local do crime. Ela também está ausente da maioria das contas oficiais ou de reportagens da imprensa. E também ninguém fez perguntas sobre quem ela era, possivelmente porque ela não se encaixava no mapa étnico desse conflito. Ninguém a reivindicou como sua.

3D bósnio

A Bósnia e Herzegovina, em seu estado pós-guerra, é uma construção multidimensional de entidades e federações divididas em linhas étnicas. Bósnia e Herzegovina consiste na Federação da Bósnia e Herzegovina e na República Srpska. A Federação também combina dois outros órgãos políticos não oficiais.

O status da cidade de Brčko, na parte nordeste do país, é um bom exemplo da complicação territorial. A cidade é uma unidade administrativa autônoma sob a soberania da Bósnia e Herzegovina e, como tal, é o único território diretamente sob o mandato do governo central. Além disso, faz parte da Federação da Bósnia e Herzegovina e da República Srpska. Oficialmente pertence aos dois, porém não é governada por nenhum. Seu status muda de acordo com a perspectiva de ambas as entidades, que cada uma interpreta de maneira diferente.

A composição espacial desse território foi acordada na cidade de Dayton, Ohio, usando simulações militares 3D mais antigas. Um episódio ficou particularmente famoso: o design em 3D de um corredor para Goradze, que ficou conhecido como Scotch Road ou Whisky Corridor. Ele foi vividamente descrito em um artigo do New York Times:

WASHINGTON — O vinho havia sido bebido, um luxuoso jantar de lagosta comido, e chegara a hora de resolver uma das mais delicadas questões das negociações de paz na Bósnia: uma rota para o governo da Bósnia, partindo de Sarajevo, passando pelo território sérvio-bósnio, até o enclave muçulmano sitiado de Gorazde.

O presidente Slobodan Milosevic, da Sérvia, dirigiu-se a um auditório de alta tecnologia para dar o play no PowerScene, programa de mapeamento de computadores do Pentágono que reproduz o terreno em uma vasta tela de cinema. O líder sérvio estava convencido de que o corredor não podia ter mais que duas milhas de largura.

O Tenente General Wesley K. Clark, oficial militar americano sênior nas negociações, levou Milosevic em uma viagem aérea imaginária da região, para mostrar por que um corredor tão estreito não fazia sentido estratégico. “Como você vê, Deus não separou as montanhas a três quilómetros de distância”, disse o general Clark.

Milosevic engoliu um grande gole de uísque, considerou esse fato geofísico, e o acordo de um corredor de oito quilómetros de largura foi consumado. O corredor tornou-se conhecido como a Scotch Road.NT3 , 6

Uma reportagem da revista Wired retomou essa anedota, continuando:

Durante as negociações, que duraram 21 dias, o PowerScene foi usado diversas vezes para quebrar tais impasses, estabelecendo detalhes tão pequenos quanto em qual dos lados de uma estrada específica uma fronteira cairia.

O primeiro programa de realidade virtual jamais utilizado em negociações de paz, o PowerScene, desenvolvido pela Cambridge Research Associates de McLean, na Virgínia, combina imagens tomadas por satélites e por aviões de espionagem com informações de elevação de terreno altamente precisas, para gerar um nível de detalhe visual que chocou muitos dos líderes em guerra… Em um dado momento, Milosevic disse “Pare o voo” a [Vic] Kuchar [um funcionário da Agência de Mapeamento de Defesa]. “Olhe aquela ponte lá. Ela já era. Você a bombardeou.” De fato, no ano anterior pilotos da OTAN, treinando para ataques aéreos contra alvos sérvios da Bósnia, em setembro, usaram o PowerScene para praticar suas operações de bombardeio.7

Ferramentas 3D moldaram o país instituindo objetivos nacionalistas de guerra: a divisão territorial ao longo de linhas étnicas por meio do Acordo de Dayton. Essa partição territorial contrasta acentuadamente com a proclamação de uma Iugoslávia federal pelos conselhos da AVNOJNT4 em Jajce, na Bósnia, que ocorreu em um cinema 2D em 1943.8 Na realidade, esse cinema foi destruído pela luta entre as tropas croatas e bósnias em 1992, e eu acho que o cinema como tal ficou mortalmente ferido nessa luta e jamais se recuperou.9

Em extensão, essa lógica 3D também significava, muito simplesmente, que uma pessoa negra não fazia parte do território tripartido, e de alguma forma se perdia dentro dos limites dessa paisagem em três dimensões. Ninguém nunca perguntou sobre essa pessoa durante a investigação do caso do sequestro em Štrpci e ninguém jamais a reivindicou como parte de seu próprio grupo ou comunidade.

Existe também um detalhe adicional bastante inusitado reportado por uma das testemunhas do sequestro. O líder da quadrilha paramilitar que sumiu com o homem em questão deu um tapinha em seus ombros e disse “Aqui está meu irmão.” E então o beijou. Quase não sabemos mais nada sobre essa pessoa, que apenas horas depois parece ter sido baleada dentro de um pomar ao lado das outras dezenove, depois de ter sido maltratada e roubada. Seu corpo nunca apareceu, tampouco nenhuma outra informação adicional.

Obviamente, nós tampouco sabemos como foi aquele beijo, que se transformou em uma superfície, uma forma ondular, parcialmente encoberta e espalhada no tempo.

Um beijo como uma superfície

Janaina Wagner, You must remember this, a kiss is just a kiss, a sight is just a sight (II).

Tentar reconstruir esse evento utilizando tecnologia 3D parece uma escolha óbvia, dada a corrente utilização forense desse equipamento. Contudo, uma vez que realmente tentamos rastrear um crime ou um evento real, começamos a tropeçar em enormes limitações tecnológicas.

A primeira razão é a seguinte: esse espaço é um espaço fracionário, um espaço que paira entre o 2D e o 3D, nas palavras de Jalal Toufic.10 É, por exemplo, um espaço em 2.3 ou 2.4D. Para criar uma versão 3D completa, seria preciso digitalizar ou capturar todos os pontos de todos os lados de uma única superfície. Seria basicamente necessário utilizar ao menos três scanners para, em seguida, sobrepor seus resultados no espaço virtual. No entanto, se você tem apenas um ponto de vista, o que você obtém é, na melhor das hipóteses, um 2.5D: uma zona entre a superfície e o volume. O 2.5D foi criado com a tecnologia 3D, mas é ainda assim um 3D imperfeito. Ele se aloca entre as dimensões e as conecta. Um espaço fracionário é um espaço transitório, que permite que as pessoas entrem e saiam de imagens, que as congelem e deixem essa condição novamente, que zarpem para um outro lugar, ou que desapareçam.

Isso tem uma consequência marcante. O que paradoxalmente é destacado pelas tecnologias de digitalização 3D são, nessas circunstâncias específicas, as informações ausentes da representação 2D: pontos cegos e sombras em branco. Só podemos vê-los no espaço fracionário, onde a ausência em si se torna aparente.

As tecnologias 3D não apenas processam as partes que são realmente capturadas como medidas de localização por um scanner LiDAR, como também as partes que estão faltando nas imagens 2D: aquelas sombrias, cobertas ou cortadas da imagem. Aos dados ausentes, é atribuído um volume ou um corpo. As sombras e os pontos cegos não estão fora do quadro, mascarados ou amputados, como poderiam estar em uma tomada 2D, mas apresentados como partes iguais da informação.

O que vem à tona não é a imagem de um corpo, mas o corpo de uma imagem que em si próprio apresenta informações sobre uma fina superfície ou demarcação, moldada por diferentes forças naturais, tecnológicas ou políticas. Neste caso, dobrando-se em torno de um beijo.

Espaço fracionário

A questão do espaço fracionário já aparece no início da modernidade, em uma das pinturas mais inovadoras da época: The Ambassadors, de Hans Holbein, o Jovem. Em 1533, Holbein retratou duas pessoas, sendo uma delas a embaixadora francesa da corte inglesa, em um cenário repleto de ferramentas científicas e referências culturais. Ambas as figuras estão ao lado de uma estante que exibe livros, relógios, sextantes e outros instrumentos que sugerem aprendizado, cultura e, potencialmente, também conflitos e discordâncias religiosas. Ambos os protagonistas — e implicitamente também quem os retrata — são encenados como mestres dos adereços científicos e das novas ferramentas representacionais da modernidade, de um domínio colonial não apenas sobre o espaço, mas também sobre o tempo.

O elemento mais impactante deste trabalho é, no entanto, um objeto estranho pairando no quarto inferior da pintura: uma superfície bidimensional posicionada em um ângulo que cruza o plano da pintura. Eis que essa forma estranha acaba por ser uma caveira, se a olharmos de uma posição específica. Essa técnica é chamada de “pintura anamórfica” e leva em consideração os ângulos de observação e suas distorções correspondentes de perspectiva. Atualmente, The Ambassadors parece um serviço muito básico de photoshop: uma superfície 2D girada em torno dos eixos Y e X, e arrastada e lançada sobre uma outra superfície 2D.

Essa pintura foi analisada incansavelmente, especialmente sua chamada “mancha anamórfica”, isto é, o crânio, como um elemento revelador do olhar e detentor de implicações que levam além a construção da subjetividade.11 Ela também é analisada da perspectiva da história da arte, como um lembrete da mortalidade, como um exemplo de exibição de ambos conhecimentos ópticos e habilidades pictóricas, e ainda conforme o calculado deslocamento do espectador. Por outro lado, encarada de uma perspectiva contemporânea, essa pintura adquire novos e imprevistos significados. O que significaria o crânio distorcido para a pintura, e dentro dela mesma?

Em vez de mostrar algo externo à imagem, talvez a pintura mostre o corpo da própria imagem, como um osso. Ela revela a construção da imagem: seu esqueleto, ou, por assim dizer, as linhas de fuga: a compressão e a distorção que compõem a construção de pinturas em perspectiva linear. Porém, esse esqueleto geralmente é coberto pela carne da tinta e mantido implícito e invisível. Nesta pintura ele é exposto nu. Isso nos lembra que a imagem em si tem um corpo, expresso por sua construção e composição material, e que esse corpo pode ser inanimado e material.

É curioso que seja um crânio o objeto a expressar o corpo da imagem. Em primeiro lugar, ele é uma parte do corpo, e não um corpo inteiro. Isso nos lembra que, desde o surgimento da reprodução mecânica, química ou digital, a imagem já está sempre fragmentada e espalhada por todo lugar, como um esqueleto despedaçado. Sua produção é difusa e sua circulação o é ainda mais.

O crânio deixa claro que o corpo da imagem está sempre incompleto, e aponta essa incompletude ao revelar, sem rodeios, os achatamento e profundidade ilusórios dos planos pintados em 2D. Quase quinhentos anos depois de ter sido pintado, o crânio parece nos dizer que não existe nada além de superfícies que envolvem indiscriminadamente sujeitos e objetos, e que em todas essas superfícies estão ausentes uma ou outra parte da informação.

Dobras

Até mesmo a digitalização 3D contemporânea não produz corpos ou objetos completos, e sim superfícies dobradas. Essas superfícies podem ser curvadas sobre si mesmas para criarem volumes completos, mas, no espaço fracionário, elas são essencialmente superfícies bidimensionais dobradas na terceira dimensão: superfícies que podem ser modeladas e esticadas topologicamente para assumirem qualquer tipo de forma concebível. A profundidade é criada dobrando-se esta superfície. E, obviamente, em qualquer situação da vida real, a superfície carregará a marca das forças políticas, materiais, sociais, tecnológicas e afetivas que a moldaram.

Isso leva a um novo nível as ideias modernas sobre a representação como superfície. Georg Simmel introduziu a ideia de que as superfícies não eram apenas parte integrante da vida urbana moderna, mas sim, em certo sentido, sua condensação. Isso se opunha às visões mais tradicionais sobre superfícies, que as ligavam à mera aparência, a inautenticidade e a superficialidade. John Allen faz um contraste dessas perspectivas:

O implícito imaginário vertical que sugere que se realmente desejarmos saber o que está acontecendo, devemos, de alguma maneira, sondar as profundezas, é um imaginário difícil de mudar. Profundidade, nesta evocação, atua como sinônimo de verdade cultural, autenticidade ou locus para uma melhor interpretação dos eventos, como em muitas narrativas psicanalíticas do cotidiano. Da mesma forma, é a metáfora da sociedade como uma superfície lisa e plana que pode dar origem a uma geografia bastante estultificante, onde o espaço equivale a pouco mais que um cenário em que eventos acontecem, e não como uma fonte de estímulo e de experiência em si mesmo.12

Rompendo com uma visão mais tradicional que associava superfícies a superficialidade, Siegfried Kracauer estava convencido de que tudo o que valia a pena conhecer em uma época poderia ser lido a partir das expressões latentes na superfície do cotidiano.NT5 Para ele, a superfície era tudo o que precisava ser olhado para se diagnosticar o presente. Ele apresentou uma expressão não mediada do inconsciente social. Kracauer insiste na superfície como um local primário de informações históricas e sociais:

A posição que uma época ocupa no processo histórico pode ser determinada, mais incisivamente, partindo da análise de suas discretas e corriqueiras expressões populares, do que a partir dos julgamentos que essa época em questão teceu sobre si mesma. Uma vez que esses julgamentos são expressões das tendências de uma determinada era, eles não oferecem testemunho conclusivo sobre a sua constituição total. As expressões populares, no entanto, em virtude de sua natureza inconsciente, fornecem acesso direto à substância fundamental do estado das coisas. A substância fundamental de uma época e os seus impulsos ignorados iluminam-se reciprocamente.13

Como Kracauer ressalta em outros lugares, a superfície oferece a menor resistência porque é menos consolidada.14 Os fenômenos de superfície podem ser acoplados e desacoplados facilmente. Eles estão ligados à tecnologias de reprodução de massa, uma tendência também observada em um contexto completamente diferente por Fredric Jameson, quando ele descreveu o pós-modernismo como uma era sem profundidade, uma “emergência de um novo tipo de achatamento ou falta de profundidade, um novo tipo de superficialidade”.15

Assim, podemos interpretar as superfícies dobradas das representações de escaneamento 3D como sensores para o impacto e a tensão de uma matriz de forças diversas e divergentes. As dobras, segundo Gilles Deleuze, descrevem membranas osmóticas que mediam, entre o interior e o exterior, intrusões e extrusões, enclaves e exclaves de subjetividade e de objetividade.16 Elas constituem distribuições topológicas que, teoricamente, podem se morfologizar em diferentes formatos e formas. Modificar as dobras da superfície significa interferir nessas forças e recompô-las de maneira diferente. O escaneamento 3D destaca, assim, a ideia de uma superfície, misturando matéria, ações e forças. A superfície não é mais um palco ou pano de fundo em que sujeitos e objetos são posicionados. Ao contrário, ela se dobra em sujeitos, objetos e vetores de movimento, afeto e ação, removendo a separação epistemológica artificial entre eles.

Objetificação

Como transformamos essas superfícies em objetos materiais? E como as imagens se transformam em pedra, voltando à pergunta inicial de George Steiner? Imprimindo-as em 3D. A nuvem de pontos capturada por um scanner 3D pode ser modelada para que seja impressa como um objeto. As impressoras 3D, algumas vezes facilmente convertidas a partir de impressoras jato de tinta, aplicam um pó fino de praticamente qualquer material possível, incluindo resina, plástico ou até metais, em camadas finas que são coladas umas às outras. Esses objetos dão um corpo material às imagens, não apenas uma extensão virtual. Por isso os dados ausentes devem ser costurados e os furos fechados, para que o objeto resista à gravidade. Esses processos de modelação contêm um elemento de interpretação livre, especialmente quando faltam grandes quantidades de dados.

Em essência, quanto mais avariados forem os dados da digitalização (e em espaços fracionários eles sempre serão substancialmente avariados), mais você precisará ficcionalizar a superfície ao costurá-la e adaptá-la à gravidade. Na verdade, variando de acordo com diferentes bancos de dados, uma quantidade substancial de interpretação é aplicada na criação de objetos impressos em 3D. No caso desse exemplo, é mais do que justo falar de uma objetivação deliberada da informação (e não de uma objetificação ou renderização objetiva), uma vez que cerca da metade das superfícies são puramente estimativas, abstrações deliberadas, saltos de fé no vazio entre medições e interpretações estéticas dos dados. A quantidade de objetificação pode variar, mas a sintetização está presente mesmo nas réplicas e fac-símiles mais precisos. Enquanto a frente é baseada em medidas reais, a parte de trás é pura ficção. Ficção e indexicalidade se fundem nesses objetos e sua relação se torna visível. Se voltarmos ao espaço fracionário descrito por Jalal Toufic, essa porta dos fundos fictícia da imagem pode fornecer um escape da imagem, mas pode também abrir uma porta ao espaço dos desaparecidos.

Isso também tem consequências para a construção desse espaço. Não existe um fora de quadro, nem a exclusão aparente desse campo. A resolução gráfica diminuirá em relação a seu alcance. Portanto, nada é excluído do quadro, exceto o aparato, mas ainda assim existe uma hierarquia de extensão e de resolução envolvidas em jogo. Coisas e pessoas desaparecem gradualmente e a quantidade de ficção aumenta. Não existe uma oposição clara entre o fora e o dentro do quadro, exceto que, à distância, as coisas tornam-se mais ficcionais. Também não há diferença entre dia e noite, e as testemunhas se tornam objetos paradoxais, já que para serem digitalizadas precisam manter seus olhos fechados e assim não conseguem ver a ação. O único elemento documental é a ausência em si.

Então, efetivamente, as questões tradicionais do dilema documental (sua relação incerta com a realidade e as ansiedades em torno disso) ganham uma nova dimensão: uma incerteza que ressoa dentro de um corpo e de um volume.

Acesso não mediado

Para além do dilema tradicional do documentário, há uma maneira da incerteza do próprio documentário se manifestar de uma forma completamente diferente: como sua verdade. Estou usando essa palavra de modo completamente flagrante e inequívoco, e não há um pingo de incerteza em torno disso.

Essa verdade não vai acontecer quando os ossos dos desaparecidos forem encontrados, ou o homem preto identificado, ou a justiça for feita, ou n scanners dimensionais forem inventados para escanear as dimensões matemáticas do universo.

Você só terá uma impressão verdadeira daquele beijo quando ele vier te encontrar. Ele está por aí, viajando, replicando-se, dobrando-se e esculpindo superfícies com sua energia. Ele será bem diferente. Quiçá ele seja um sinal de amor, de violência ou apenas de indiferença. Mas será o beijo. E quem sabe ele venha direto no seu rosto.

Nesse momento você estará enredado na superfície criada por ele, numa malha que rodopia e ondula com as forças do afeto e da violência política. Você será dobrado em sua energia e fundido com todas as outras superfícies animadas e inanimadas do seu interior. Você participará de suas dinâmicas, que quem sabe podem te despedaçar, mas, de qualquer forma, dissolver qualquer pretensão de confrontá-lo como um sujeito que confrontaria um objeto externo. Essa superfície não é uma coisa do passado, mas do presente. Ela pode transformá-lo em pedra ou em flash de luz, ou em um grão de poeira esmigalhando-se de uma impressora 3D, ou apenas passar batida por você, deixando-o indiferente e não afetado.

Imagens como pedras

Vamos voltar à pergunta original de George Steiner sobre as palavras ou, por extensão, imagens que se transformam em pedras e se tornam objetos. Nesse ponto, vemos como imagens que se tornam objetos podem começar uma revolta. Há uma versão ligeiramente chata dessa rebelião, onde as réplicas 3D dos objetos começariam a reverter a relação entre original e cópia. Impressões em 3D de objetos poderiam deixar de ser semelhantes e semblantes para se tornarem antecipações improváveis e inadequadas, não dos objetos em si, mas de suas verdades.

Vamos então pensar em uma dimensão completamente diferente. A revolta das imagens não acontecerá quando tudo o que vemos, sabemos e precisamos puder ser digitalizado e impresso em 3D com direitos autorais liberados. Mais, imagine as próprias imagens de dentro das telas de repente se cristalizando. Nas telas de LCDNT6 (que ainda constituem a maioria dos monitores de computadores e televisores no ponto de desenvolvimento tecnológico em que estamos), os cristais líquidos são portadores da informação da imagem. Agora, imagine-os transformando-se em pedra em um instante. Imagine-os fossilizando-se, como num flash, arrebentando todas as telas de dentro para fora.

É nesse momento que o levante das imagens acontece. Todas as telas se transformam em objetos mortos, todos os simuladores de cockpitNT7 dos F-16s e dos helicópteros param de funcionar. As telas de vigilância aérea e as do mercado financeiro explodem conforme as imagens sacodem a servidão de significado, e os iPhones e os telescópios-alvo transformam-se em rochas mortas.

Neste momento, não são as imagens dos corpos que se transformam em pedra, resina ou plástico, mas é a imagem em si, a portadora, a ganhar um corpo, uma extensão e um volume. Não é o que ela mostra que se estende, mas a sua própria substância material. As imagens agora se recusam a mostrar qualquer coisa para além de si mesmas como matéria acrescentada de energia, como ondas e partículas, como superfícies dobradas em outras superfícies subitamente emergindo de dentro delas, assim como o crânio de Holbein rompendo o ilusionismo 2D da perspectiva linear. E isso é de fato um levante das imagens. Um levante contra uma arquitetura de representação que as subjuga e as mantém em regime de servidão. Contra isso, elas começam a desenvolver sua própria arquitetura, incontrolável e sem precedentes.