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Como chegamos até aqui,
como podemos (talvez) sair daqui1

Destruir as instituições democráticas pela via eleitoral tornou-se possível no Brasil porque elas foram identificadas ao “sistema”. No “sistema” que vigorou de 1994 até pelo menos 2013, a maioria dos partidos formava uma massa relativamente indistinta de máquinas políticas que se encastelam no Estado para se reproduzir. Foi assim que o “sistema” passou a ser visto como inerentemente corrupto, como só beneficiando a si próprio, como causa do sofrimento da maioria da população. Com raras exceções, todos os partidos estavam sempre no governo, seja qual fosse o governo, seja qual fosse a candidatura que tivessem apoiado na eleição presidencial.

Com exceção do período inicial do governo Lula e durante o abreviado segundo mandato de Dilma Rousseff, o que se viu foi um modelo de gerenciamento político baseado na formação de megablocos de apoio ao governo e na limitação da oposição nominal a uma franja parlamentar. Para mencionar apenas uma das muitas consequências desse arranjo, situação e oposição tiveram os seus papéis inflado e encolhido, respectivamente. De um lado, é flagrante a desproporção entre a votação recebida pelas candidaturas presidenciais e o total das bancadas de situação e de oposição no Congresso. De outro, uma base de apoio do governo “inchada” estimulava dissensões e fraturas dentro do campo da situação. Um dos importantes papéis desempenhados por uma oposição relevante, que é o de produzir aglutinação e coesão à coalizão de governo, fica muito enfraquecido em um modelo em que a base no Congresso chega a porcentagens que superam os 75% de apoio. Foi essa cultura política que chamei de pemedebismo e que dominou de diferentes maneiras a redemocratização brasileira até 2013.3

A ruptura com essa lógica da governabilidade veio com as revoltas de Junho de 2013, que deram claros sinais de que esse modelo tão particular da política brasileira desde a redemocratização tinha se esgotado. O sistema político não entendeu ou não quis entender que a estabilização político-econômica inaugurada pelo Plano Real já não se sustentava e que um novo arranjo precisaria ser criado. Interpretou Junho na chave de uma onda de insatisfação que iria passar e se aferrou à pantomima usual de que estava “ouvindo as ruas”. E continuou com o mesmo jogo de sempre.

Dispersa e sem possível canalização institucional, a energia de Junho foi manipulada de maneira oportunista, por exemplo, pela Operação Lava-Jato, que se apresentou como representante da indignação popular dentro do sistema político. A decisão do sistema político de não se autorreformar permitiu que a Lava-Jato se apresentasse como aquela que iria realizar essa reforma. Uma promessa ilusória, já que o judiciário — e suas instâncias inferiores, em particular — não tem o poder de reformar o sistema político. Mas, vampirizando a energia de Junho, parte do judiciário conseguiu emparedar o sistema político. Este, por sua vez, aprofundou a tradicional utilização do aparelho de Estado para fins de autodefesa. O aprofundamento dessa característica do pemedebismo — que chegou a seu ápice e a sua crise mais aguda com o governo Temer — apenas aumentou o divórcio entre a sociedade e o sistema político. Conjugado à severa crise econômica iniciada no final de 2014, produziu o impasse duradouro que levou à eleição de Bolsonaro em 2018.

Apenas uma pequena parcela da direita e da esquerda democráticas que não tinha capacidade de alterar os rumos institucionais viu em Junho um potencial de transformação da democracia brasileira, viu naquela energia social dispersa a possibilidade de deixar o pemedebismo para trás. A maior parte do sistema político entendeu Junho apenas em termos de risco e de ameaça. A maior parte da direita e da esquerda democráticas se encastelou no sistema político, contando poder dirigir o processo de cima, mesmo que fosse ao custo de uma autofagia suicida. Ao se blindarem contra a energia das ruas reais e virtuais, essas forças simplesmente perderam o controle do processo. E jogaram fora uma chance inédita de reformar a democracia brasileira.4

Ao não se autorreformar, o sistema político tornou viável uma candidatura antissistema como a de Bolsonaro. Mas foi ainda bem mais grave do que isso. Mais do que um simples líder antissistema, Bolsonaro se considera o líder de uma revolta conservadora. Ele não busca a assimilação em nível institucional. Ele associa suas posições de extrema-direita à defesa de tudo o que é ético e decente e identifica o restante — todo o sistema político — com a “esquerda”, ou seja, com tudo o que é corrupto e corrompido da vida social em geral. Para Bolsonaro, todo mundo que aceitou as regras da Constituição de 1988 é “de esquerda”. A própria Constituição é “de esquerda”, faz parte da “falsa democracia”. Para Bolsonaro, a redemocratização é a responsável por todos os males do país. A “verdadeira democracia” é apenas aquela que existia durante a ditadura militar. Quem conseguir entender a expressão “a democracia da ditadura era a verdadeira democracia” conseguirá entender Bolsonaro.

Bolsonaro liderou uma revolta em que uma parcela significativa de alguns dos escalões sociais superiores — em termos de renda e de escolaridade — começou a desmantelar o sistema político desde baixo, desafiando os líderes próximos a eles. A revolta começou por estratos sociais que dispunham de recursos — relativamente à grande maioria da população —, mas que se consideravam excluídos, discriminados, ignorados por parte do sistema político.5 Foi um levante de membros de igrejas contra seus pastores, de militares de baixa patente contra a cúpula da hierarquia militar, do baixo clero contra o alto clero do Congresso, de pequenas e médias empresas e de produtores rurais e industriais contra suas entidades representativas e contra os chamados “campeões nacionais”, da base das polícias contra suas cúpulas, dos escalões mais baixos do mercado financeiro contra os porta-vozes dos bancões. E assim por diante.

Sem negar a importância da divisão do eleitorado entre PT e anti-PT, que é certamente real, é preciso lembrar que a insistência na centralidade dessa divisão acaba ajudando a obscurecer o fato de que uma parcela considerável do eleitorado estava se sentindo existencialmente ameaçada porque considerava o próprio sistema político uma ameaça. Poucas pessoas pensavam que o sofrimento causado por uma crise tão prolongada estivesse chegando ao fim. É verdade que, para o eleitorado mais pobre, as eleições de 2018 representaram o medo de perder o pouco que tinha restado dos ganhos do período de 2004 a 2013, o que ajuda a explicar a opção majoritária desse extrato pela candidatura de Fernando Haddad.6 Ao mesmo tempo, ao limitar a campanha à promessa de uma volta ao passado, aos “velhos e bons tempos do lulismo”, a campanha petista só fez reforçar a posição de Bolsonaro ao facilitar a identificação de sua proposta como sendo o mesmo que uma manutenção do “sistema”.

Ignorado desde as revoltas de Junho de 2013 em seu clamor pela reforma do sistema político, ao eleitorado foi dado em 2018 uma alternativa sem saída positiva: manter o sistema político funcionando como funcionou desde 1994, ou espalhar, bagunçar e mesmo quebrar as peças do tabuleiro, destruindo os arranjos existentes. Foi esta última a opção do eleitorado ao eleger Bolsonaro. Confluíram para a candidatura de Jair Bolsonaro em 2018 grupos do eleitorado com motivações muito diferentes e não raro conflitantes. Apesar de muitas vezes terem intersecções (uma mesma pessoa pode pertencer a diferentes grupos), não formam um grupo homogêneo. E, sobretudo, nunca antes tinham confluído para uma única candidatura presidencial como confluíram para a candidatura do capitão reformado do Exército as figuras do lavajatismo, do antipetismo, do antissistema, do nulismo, do abstencionismo, do conservadorismo de costumes, da reivindicação absoluta de “lei & ordem”.

Até a crise pandêmica, Bolsonaro conseguiu manter parte significativa dessa base conquistada na eleição e permanentemente mobilizada por meio de uma série de plataformas e de redes sociais de grande alcance. Desde março de 2019, essa base de apoio tinha a dimensão aproximada de um terço do eleitorado.7 Essa base não se estruturou como movimento, da mesma maneira que Bolsonaro ainda não criou um partido para chamar de seu. Isso não impede que ele governe pelo Whatsapp. Como mostrou muito cedo a start-up Archimedes, que criou um índice para medir apoio ou rejeição nas redes sociais que pode ser usado para entender as decisões do governo Bolsonaro e seus recuos e avanços. Segundo Pedro Bruzzi, fundador da Arquimedes, existe um padrão claro: “Constatamos que, quando o nosso índice está abaixo de trinta em determinada polêmica, o governo pode rever sua posição. Acima de trinta, nada muda”.8

Do ponto de vista da base de apoio, essa maneira de operar via redes sociais cria a sensação de participar efetivamente da vida política, do governo. Estar em um grupo de Whatsapp e se juntar a milhares de outras pessoas para apoiar, esculachar ou exigir a cabeça de alguém produz o sentimento de participar diretamente da política. Para qualquer pessoa que tenha familiaridade com a política institucional, parece evidente que essa é uma participação ilusória, na medida em que apenas reforça a figura do chefe, sem democratizar de fato com as estruturas fundamentais da política.9 Mas para a base social bolsonarista, que considera nunca ter tido acesso aos ambientes de decisão política, em qualquer nível, isso provoca um êxtase participativo sem precedentes. E, mesmo que limitada, a capacidade desse tipo de atuação influenciar o rumo tomado por Bolsonaro não deve ser menosprezada.

Isso é de particular relevância porque a pandemia de covid-19 não pôs a nu apenas as engrenagens do protoautoritarismo brasileiro, mas dos populismos autoritários de maneira mais ampla. Bolsonaro está longe de estar sozinho em sua postura de parasita político. Seguiu nisso populistas autoritários mundo afora, que se estabeleceram primeiramente da mesma forma. Levam vantagem e popularidade no fato de o governo continuar funcionando, mesmo que de maneira muito pior do que no passado recente, ao mesmo tempo em que atacam permanentemente tudo o que funciona. O serviço público, o “sistema” garante que as políticas de Estado continuem a ser implementadas, que escolas e hospitais continuem abertos e em funcionamento, que benefícios e aposentadorias sejam pagos como sempre, que energia e água continuem sendo fornecidas regularmente, e assim por diante. Populismos autoritários atacam permanentemente o que continua a funcionar e se beneficiam de que as coisas continuem a funcionar apesar de seus ataques. São governos “antiestablishment”: mantêm os serviços públicos bem ou mal funcionando, ao mesmo tempo em que são “contra tudo isso que está aí”, contra toda e qualquer normalidade.

Mas, na lógica dos populismos autoritários pelo mundo, tudo isso faz parte apenas do primeiro estágio de um projeto antidemocrático por via eleitoral. É apenas em um segundo momento — após uma reeleição, após mudanças constitucionais e institucionais radicais — que esses populismos autoritários se estabelecem definitivamente, suprimindo paulatinamente as instituições democráticas. Com instituições democráticas suprimidas ou mutiladas, o governo de plantão decreta que tudo passou a funcionar bem. Sem oposição, sem imprensa crítica, sem movimentos sociais, as mazelas são declaradas coisa do passado. O “sistema” é declarado derrotado e o novo governo autoritário se institui como “autêntica representação do verdadeiro povo”.

Diferentemente de populismos autoritários consolidados como a Hungria, a Polônia, a Turquia, ou as Filipinas, o populismo autoritário brasileiro ainda estava em seu estágio inicial, estava ainda buscando estabelecer suas bases, quando foi atingido pela crise pandêmica. Quando chegou a crise do vírus, o plano autoritário de Bolsonaro, mesmo que ainda muito vago, estava apenas em sua primeira fase, a fase do desmonte das instituições democráticas. Ele contava com a reeleição em 2022 para passar à fase seguinte, à construção do novo autoritarismo brasileiro, seja lá que cara viesse a ter. A crise do vírus colocou a nu esse momento destrutivo de sua intenção autoritária. Colocou a nu sua incapacidade de enfrentar uma verdadeira emergência: o parasitismo político que o caracteriza e que não permite governar no sentido habitual da expressão.


As revoltas conservadoras da última década mobilizaram déficits reais dos regimes democráticos para chegar ao poder de Estado. Partiram do pressuposto de que a democracia é necessariamente a submissão de quem não pertence à coalizão social e política vencedora de eleições. Quiseram dizer com isso que democracia é e sempre foi uma arma que uma aliança de estratos do eleitorado dirige contra o resto do eleitorado. Apenas resolveram que iriam, eles também, utilizar essa arma. Levantes conservadores não apontam para uma possível reconstrução de regras compartilhadas de justiça em conexão interna com formas democráticas institucionalizadas. Destacam a lacuna entre a “vontade popular” e os mecanismos estabelecidos de representação política,10 mas não acreditam possível, muito menos pretendem, superar essa lacuna.

Estamos já no ano XII da crise do regime de desigualdade neoliberal sem perspectiva de estabilização em novo patamar. O capitalismo ainda não encontrou saídas institucionais mais ou menos duráveis, ainda não encontrou novas configurações estáveis. E não há qualquer indício de modelo alternativo viável do lado anticapitalista. O que temos no momento é tão-só certa consciência da elite global de que não há mais como manter o capitalismo com os atuais níveis de desigualdades e sem encarar de frente a emergência ambiental. Foi nessa enorme rachadura histórica que se infiltraram os projetos autoritários.11

Ainda assim, tais revoltas conservadoras se apoiam em coalizões sociais de conveniência. Só conseguem vencer eleições e se manter mobilizadas tornando duradouro o colapso institucional que as reuniu. Valem-se da mesma natureza profunda das formas democráticas e de sua obsolescência para chegar ao poder, utilizando os mesmos mecanismos excludentes que denunciam para produzir novos modelos de exclusão.12 Não por acaso, a discussão recente sobre as crises da democracia está tomada por referências às regras informais e implícitas do funcionamento formal-institucional que foram simplesmente ignoradas em processos eleitorais recentes.13

Ainda assim, os resultados políticos regressivos dos últimos anos não indicam uma tendência irresistível da história: provêm, antes de tudo, de tentativas de manipular e de bloquear os potenciais democráticos que emergiram no período pós-crise econômica mundial, especialmente no ciclo de revoltas iniciado em 2011. Tampouco, do outro lado, há ainda algo como um modelo estabelecido de reconfiguração global que pretenda impor um novo modelo de compatibilização entre economia e política, entre um novo capitalismo e uma nova forma política — um novo modelo de sociedade, em suma. O que se tem é um ambiente de grande confusão, onde pipocam as mais diversas tentativas de produzir reconfigurações desse tipo. Deixar de ver a multiplicidade na confusão significa deixar de ver oportunidades de pensamento e de ação relevantes. Mesmo considerando que as revoltas conservadoras têm sido até agora muito mais eficazes em aproveitar essas oportunidades.

No esquema clássico da democracia de massas do pós-guerra, partidos deveriam representar braços da sociedade dentro do Estado. Com a transformação dos partidos em entidades paraestatais, em braços do Estado para controlar a sociedade, o divórcio entre mobilização e organização se estabeleceu progressivamente como uma nova característica duradoura dos sistemas políticos. Não é por acaso que tantas tentativas de reformular instituições políticas passem pela reconstrução de partidos como movimentos. E isso acontece de várias maneiras. Pode ser uma plataforma como o Podemos, na Espanha, ou o pré-fabricado En Marche de Emmanuel Macron, na França, ou mesmo o carismático Morena de AMLO, no México. Mesmo que tenham posteriormente sido derrotados em termos eleitorais, são sintomáticos e altamente significativos movimentos como os que operaram paralelamente a candidaturas como as de Jeremy Corbyn, Bernie Sanders ou Jean-Luc Mélenchon. Em perspectiva política radicalmente oposta, pode-se pensar também nesses termos quando se trata de Trump ou de Modi. No Brasil, isso ainda não aconteceu. Nem à direita nem à esquerda. Nem mesmo no caso de Bolsonaro. Mas, no Brasil, foi apenas a extrema direita bolsonarista que soube até agora se valer do novo estado de coisas para chegar ao poder.

Ao mesmo tempo, o futuro da democracia estará tanto mais em perigo quanto mais as forças democráticas insistam em manter posições defensivas, que aspiram a retornar a uma conjuntura política anterior, cujo apoio na realidade já foi perdido. Como bem diz David Runciman, a “democracia não está funcionando bem — se estivesse, não veríamos esse retrocesso populista. Mas as tentativas de fazê-la funcionar melhor se concentram no que julgamos ter perdido e não no que nunca chegamos a tentar. As discussões políticas giram em torno das ideias de recuperação e resgate — do Estado de Bem-Estar Social, da Constituição, da economia, da nossa segurança, da nossa liberdade. Cada lado aspira a recuperar algo que lhe foi tirado”.14 Isso faz com que olhemos para o lado errado. Toda a questão hoje deveria estar em torno do “que nunca chegamos a tentar” e não em torno de uma volta a modelos de democracia que perderam seu lastro social — seja lá como se entenda esse lastro.

Mas, mesmo com todas as heterodoxias de sua posição atual, talvez também Runciman esteja, de certa forma, olhando para o lado errado. Porque também o seu livro, no fundo, continua se sustentando em uma premissa ortodoxa, fundadora da ciência política do pós-guerra: a premissa de Schumpeter de que a democracia só pode ser entendida como um “método político”, como “certo tipo de arranjo institucional para se alcançarem decisões políticas”.15 É essa premissa não explicitada o que lhe permite sugerir, por exemplo, que a democracia talvez não esteja à altura do desafio da crise ambiental — e que talvez o modelo chinês leve vantagem sob esse aspecto. É o que lhe permite sugerir que o Estado democrático talvez não esteja à altura de competir com os novos Leviatãs digitais, como é o caso do Facebook — o que significa que talvez algoritmos possam responder melhor às demandas políticas do que as instituições democráticas existentes.16

Seja como for, em relação à sua suposição mais fundamental, o diagnóstico de Runciman parece correto em muitas frentes. Os sistemas partidários, hoje obsoletos, veem as novas formas de organização política como concorrentes a serem abatidos e não como sinais de uma necessária e inevitável reorganização. A tática de sobrevivência desses sistemas partidários obsoletos consiste em tentar reduzir o problema a uma escolha entre a sobrevivência do establishment ou a vida sob um regime autoritário. Em sua luta pela sobrevivência, os sistemas políticos construíram uma sólida estratégia de chantagem: fundiram-se com os Estados nacionais. Sua máxima diz que se os sistemas políticos existentes afundarem, os Estados nacionais afundam com eles. E os Estados nacionais são hoje, sob muitos aspectos, o último recurso que a maioria das pessoas tem para acessar serviços públicos e meios de sobrevivência.

Muito do que se viu no ciclo de revoltas iniciado em 2011 foi uma volta aos Estados nacionais em busca de soluções, aliás.17 Os sistemas políticos se valem desse retorno do Estado ao centro da arena para garantir que só eles podem fazer com que o próprio Estado continue a funcionar. E, no entanto, com a ampla rejeição dos sistemas políticos como costumavam funcionar e como ainda funcionam, essa simbiose perversa até agora resultou apenas na criação do combustível ideal para revoltas conservadoras. Se a crise da covid-19 vai acentuar ou não essa tendência, é difícil dizer. Mas a ideia de competição predatória entre Estados nacionais parece ter prevalecido no momento de emergência máxima, por sobre movimentos de solidariedade de alta importância e relevância que também surgiram.

Pedir mais e não menos Estado está em conflito com a perspectiva das lutas antiglobalização dos anos 1990 e início dos anos 2000, que buscavam soluções globais e não soluções nacionais. Esse conflito aparece também no fato de que, quando os Estados nacionais são pressionados a voltar ao papel que antes tinham, não conseguem responder à altura a essas demandas; pelo menos não nas atuais condições fiscais e tributárias. Além disso, a cláusula geracional do contrato democrático do pós-guerra não foi mantida, segundo a qual, pelo menos a longo prazo e excluindo períodos de guerra e profunda crise econômica, a geração seguinte viverá sempre melhor do que a atual. Não foi o que se viu na última década. Uma aguda crise mundial dos sistemas de seguridade social é apenas o aspecto mais visível dessa ruptura de solidariedade intergeracional, com manifestações eleitorais avassaladoras por todas as partes, inclusive. É possível mesmo que a crise pandêmica venha a acirrar essa tendência, em vista da altíssima prevalência de óbitos em pessoas acima de 60 anos em razão de contaminações pelo vírus.

Juntamente com a ausência de imagens positivas plausíveis do futuro, não surpreende, portanto, que a ausência de soluções para problemas básicos venha de par com discursos da “pós-democracia”, da “des-democratização” ou do “estado de exceção”. São sintomas claros de que a segunda cláusula do contrato democrático pós-1945 também não foi cumprida. Aquela que, pelo menos desde 1968, dizia que a democracia iria se democratizar. E bloquear o aprofundamento da democracia equivale a bloquear o único caminho que pode impedir a ascensão da extrema direita.

Em todo o mundo, sempre que algo novo aparece, a novidade sempre pressupõe pelo menos algum acordo entre os partidos tradicionais e os novos movimentos. Na maioria dos casos, os partidos tradicionais querem engolir os novos movimentos e os movimentos querem dominar os partidos. Quando nada disso acontece, as mais variadas formas de convivência conflituosa se tornam possíveis. O arranjo mais comum envolve a competição entre os dois.

É o tipo de complexidade que exclui respostas simplistas como as que querem colocar de volta na garrafa o gênio da onda global de protestos que começou em 2011. Como exclui perspectivas simplificadoras que decretam a morte cerebral da democracia por toda parte. Mas não se trata apenas de simplificação. São posicionamentos teóricos e práticos que têm consequências de longo alcance. No fundo, desesperam que qualquer perspectiva generosa e aberta de transformação social. Porque, desde o ciclo de protestos centrado em 1968, reivindicações e projetos emancipatórios dependem da manutenção do regime democrático, mesmo que sejam democracias pouco democráticas. A democracia para a extrema direita é apenas um meio para atingir um fim — que não é democracia.

O retorno do Estado traz com ele a descrença em sua capacidade de responder às demandas da sociedade como um todo. Não apenas por causa das agudas crises econômica e política, mas também por uma outra razão: a democracia não se democratizou, mas durou o suficiente para trazer ao debate público divisões sociais anteriormente reprimidas ou invisíveis. O que a situação atual revela é uma desconfiança generalizada em relação à possibilidade de regras compartilhadas de justiça. Há uma ruptura fundamental, aparentemente irreconciliável, que leva diferentes estratos sociais e econômicos a um estado de guerra permanente. É claro que se trata de uma clivagem que tem a ver com as regras e padrões de redistribuição. Mas também não pode ser simplesmente reduzida à velha luta de classes.

Arlie Russell Hochschild18 mostrou como uma comunidade de extrema direita nos Estados Unidos sente que as regras da justiça social foram aplicadas seletivamente e sem transparência. Vem daí uma raiva adicional, provocada pelo estigma que afeta a comunidade, rotulada como “lixo branco” pela população educada e progressista. Se entendi bem o livro, a consequência normativa do estudo de Hochschild seria buscar se reconectar com esses grupos, restabelecer laços de empatia entre grupos que agora se tornaram inimigos, e não apenas adversários políticos. Ou seja, este seria um dos muitos passos necessários para construir um terreno comum para uma nova cultura política democrática capaz de resgatar a democracia, para construir um novo conjunto de regras de justiça compartilhadas. Talvez isso signifique pedir demais, talvez não seja realista perseguir esse objetivo. A questão é: que alternativa resta a quem se opõe às regressões conservadoras e autoritárias?

Esse ponto é tanto mais importante quando se compara o ciclo de revoltas iniciado em 2011 com aquele que se convencionou centrar no ano de 1968. As revoltas de mais de cinquenta anos atrás foram totalmente identificadas com a esquerda. No ciclo iniciado em 2011, direita e esquerda estavam juntas na mesma rua — e mesmo uma grande maioria de pessoas cuja última preocupação seria a de saber se são de esquerda ou de direita. Mas a rua não forneceu um terreno comum para estabelecer novas formas de convivência democrática.19 Mais que isso, grande parte da energia que foi vista nas ruas entre 2011 e 2013 não foi canalizada para a política institucional. Isso não ocorreu apenas porque importantes constelações autonomistas ressurgiram em novas bases, grupos que consideram não ter energia para desperdiçar com a política institucional. A ampla rejeição do sistema político e de seu funcionamento também teve um efeito dispersivo. Os canais de comunicação entre a sociedade e o sistema político estavam e estão entupidos e, como consequência, grande parte da energia na base da sociedade não é mais direcionada para a transformação institucional. E a parte que é direcionada a algum projeto de renovação institucional é fragmentada e dividida, de maneiras muitas vezes irreconciliáveis.

Quando as divisões na base da sociedade parecem insuperáveis, apelar para os traços autoritários não democráticos da vida serve à agenda dos sistemas políticos nacionais em sua tentativa de controlar o processo do alto. Como mostra a experiência histórica, o capitalismo pode existir muito bem sem democracia. A situação atual é devastadora, mas é preciso lembrar sempre que a democracia morre e renasce constantemente de várias maneiras. Esta afirmação não deve ser entendida como um desrespeito ao desânimo geral em relação à política institucional. Tal desânimo tem uma base sólida. Antes, é uma questão de chamar a atenção para a seguinte pergunta e insistir nela: o que está morrendo é uma das formas possíveis de democracia ou é a própria democracia? E uma resposta possível é que essa questão é, na verdade, o principal objeto das atuais disputas políticas e seu resultado ainda não foi decidido.


A maioria dos governantes mundo afora conseguiu bem ou mal melhorar suas taxas de aprovação no combate à pandemia, mesmo aqueles que primeiramente minimizaram a magnitude da ameaça. Bolsonaro foi daqueles que não conseguiram melhorar seus índices. Segundo as pesquisas disponíveis (agora todas realizadas remotamente) do início de abril, o atual presidente conseguiu manter o seu aproximado terço de apoio. E só.

Bolsonaro teve acesso a projeções tétricas do número de mortes em relatórios do Gabinete de Segurança Institucional quando foi a uma manifestação contra o Congresso e contra o STF no dia 15 de março e quando fez o pronunciamento em cadeia de rádio e TV do dia 24 de março em que classificou a contaminação pelo covid-19 como “gripezinha”. Quando o número oficial já tinha superado as mil mortes — sendo que os números oficiais são sabidamente muito subestimados —, Bolsonaro continuou a distribuir abraços em padarias e farmácias, continuou a produzir aglomerações em seus passeios por Brasília e Goiás.

Por que Bolsonaro agiu dessa forma? Importam pouco as motivações e as crenças do atual presidente. Chamá-lo de burro ou de louco não faz avançar em um único milímetro o entendimento da situação — só reforça a ideia de que a política virou um terreno de fanatismos em guerra, que é o terreno mais propício a projetos autoritários como o de Bolsonaro.

Em termos objetivos, o que Bolsonaro fez desde que ficou evidente que a pandemia iria atingi-lo em cheio foi apelar para o núcleo mais fiel de sua base de sustentação. Se sua base de apoio tenderá ou não a se reduzir de fato a esse núcleo duro somente as pesquisas dos próximos meses irão mostrar. Mas o fato é que Bolsonaro se encastelou nesse grupo. E essa é uma indicação muito clara do que o próprio Bolsonaro acha que vai acontecer: uma erosão de sua base de apoio anterior, de aproximadamente um terço do eleitorado, rumo a uma limitação a seu núcleo duro de entusiastas.

Bolsonaro fez esse movimento porque se sentiu ameaçado em nível máximo pela crise sanitária. Fez esse movimento tanto em sentido defensivo — como último recurso de defesa contra-ataques generalizados — como em sentido de preservação desse núcleo duro de apoio — porque perderia esse bastião se agisse como alguém que governa “para todo mundo”, se passasse a gerir o “sistema”. Fez esse movimento também porque esse núcleo duro é aquele mais propício a aceitar como explicações plausíveis teorias da conspiração. E apelar para teorias da conspiração, para “maldades do sistema” e para remédios milagrosos foi o que restou a Bolsonaro como resposta às crises sanitária e econômica que atingirão em cheio seu governo.

Levando o caos como método ao limite, Bolsonaro interpretou a pandemia atual como uma manobra política para tentar enquadrá-lo no “sistema”. Se coerência e racionalidade há, só podem estar aí. Não há como combater o vírus e enfrentar a crise econômica que acompanha a crise sanitária sem fazer uma gigantesca reorganização do “sistema”. Nem mesmo fazer funcionar o “sistema” é mais suficiente, o desafio é de outra ordem de grandeza, exige um esforço adequado a uma emergência nacional. A tática de Bolsonaro envolveu sempre uma recusa de governar. Não existe a possibilidade de que ele vá além do que já não fez, não existe a possibilidade de que vá fazer um esforço que exige ir ainda além de governar no sentido habitual do termo.

Ao mesmo tempo, uma situação de emergência não permite manter a tática de levar o bônus de não governar e de jogar o ônus no “sistema” que ainda funciona, mesmo que aos trancos e barrancos. Daí a adaptação que Bolsonaro fez de sua tática habitual. Passou a permitir em certa medida — uma medida manifestamente insuficiente, como se sabe — que o “sistema” se reorganize para enfrentar a pandemia, ao mesmo tempo em que continua a atacar esse mesmo “sistema” reorganizado como aquele que impõe sacrifícios desnecessários e insuportáveis às pessoas.

Segundo a melhor estimativa de que dispomos, o núcleo duro a que Bolsonaro deve se ver reduzido nos próximos meses tem a dimensão aproximada de 12% do eleitorado.20 Se esse encolhimento de fato acontecer, a questão seguinte será saber se esse apoio reduzido será suficiente para salvar seu mandato. E como. Mas, antes de chegar a isso, é preciso uma vez mais fazer o exercício profilático de afastar as miragens que sempre embaçam a visão do que realmente importa. São miragens produzidas pelo próprio estilo de governo estabelecido por Bolsonaro e que têm ainda força suficiente para atravancar a discussão do essencial.

Uma das fantasias mais persistentes em relação à presidência de Bolsonaro é a de que ele será domado, amansado, enjaulado por pessoas ou instituições. Candidatos a amansadores e domadores desfilaram numerosos ao longo dos últimos 18 meses. A fantasia interessada começou já durante a eleição, como estratégia de normalização de um candidato abertamente hostil à democracia e à diferença. Como todo outsider de sucesso, Bolsonaro sempre age como se estivesse permanentemente encurralado, embora seja o presidente. Avança e recua com a mesma desenvoltura, sempre em nome da suposta franqueza e humildade de um líder “autêntico”. Age como se fosse tolhido pelas forças do “sistema”, como se fosse a cada vez impedido de fazer o que “precisa ser feito”, aquilo que o “povo” espera do “mito” que elegeu.

A versão mais recente da fantasia diz que ele é uma “rainha da Inglaterra” de um governo de fato dirigido por militares, o ministro chefe da Casa Civil, general Braga Netto, sendo supostamente o presidente de fato. É a encenação da vez. Bolsonaro continua onde sempre esteve, e compará-lo a Elizabeth II é um elogio tão imerecido quanto compará-lo a Trump. Além dos suspeitos de sempre — Congresso, STF, a ciência, a “esquerda” — ele também elege ao mesmo tempo um adversário dentro de seu próprio governo. E duela com ele. Já fez isso com Paulo Guedes, com Sérgio Moro, duelou até a morte com Luiz Henrique Mandetta. Duela para perder, no mais das vezes. Porque perder significa nesse caso perder para o “sistema”. Perder significa nesse caso manter a base de apoio “antissistema” que construiu. A demissão de Mandetta pode parecer uma exceção, mas apenas confirma a regra: perder para o “sistema” é o padrão, mas o “sistema” não pode se autonomizar inteiramente em relação a Bolsonaro.

Tão popular quanto a pantomima do presidente enjaulado é a pantomima da “articulação com o Congresso”. É uma pantomima que saiu um pouco de moda depois de Bolsonaro mostrar todo o seu potencial destrutivo na crise pandêmica. Mas veículos chapa-branca ainda tentam ressuscitar o vaudeville. Foi assim que, na semana da páscoa, lá veio de novo a “notícia” e a “análise” de que o Secretário de Governo, Luiz Eduardo Ramos, estaria levando líderes de diferentes partidos do centrão para conversar com Bolsonaro com vistas a construir uma “verdadeira base no Congresso”. A ênfase, claro, foi na ausência de conversas com Rodrigo Maia, cujo mandato como presidente da Câmara — assim como o de Davi Alcolumbre no Senado — vai se encerrar em fevereiro de 2021, momento em que, se passada a fase aguda das crises, Bolsonaro poderá já estar diante de um processo de impeachment.

É sempre bom lembrar que, em junho de 2019, Bolsonaro demitiu o general Santos Cruz porque estava tentando fazer exatamente isso, construir uma base sólida de sustentação do governo no Congresso. O substituto de Santos Cruz, o general (da ativa) Luiz Eduardo Ramos foi repreendido por Bolsonaro, em março de 2020, por ter feito algo semelhante, por ter negociado uma saída para o impasse em que se encontrava a lei orçamentária. Faz parte da pantomima do presidente enjaulado, nada de novo. Mas Bolsonaro estava também lembrando uma lei da política brasiliense desde há muito: quem faz articulação política costuma ter data de validade curta, é um fusível que costuma ser trocado com frequência ao longo de um governo. Nisso, Bolsonaro não é exceção.

Bolsonaro não pretende “administrar” um governo “normal”. Quem se põe no caminho dessa lógica de funcionamento é jogado debaixo do ônibus, mesmo que sejam generais. A demissão de Santos Cruz também foi um sinal claro de que Bolsonaro não se renderá à ala militar de seu governo. Nem a qualquer outro grupo. Quando dá a impressão de que se rendeu, Bolsonaro se desmente em seguida, mostrando que se trata apenas de um recuo tático. É o caos como método em sua versão mais evidente. A pantomima da “articulação com o Congresso” volta a cada um ou dois meses. E Bolsonaro sempre lhe dá corda. Até que puxa a corda e enforca quem a estava esticando. Talvez não esteja mais em condições de puxar corda alguma. Mas nem por isso vai se deixar ele mesmo enforcar por quem quer que seja, dentro ou fora de seu governo.

Pensar o momento pós-emergência, pensar que futuro pode ter o governo Bolsonaro exige primeiramente procurar evitar essas armadilhas próprias de seu estilo de governar. Pensar que o atual presidente pode mudar de rumo, que vai mudar seu projeto em função das novas circunstâncias é a miragem mais vistosa produzida por seu jeito de governar. Vai atrás dela quem quer. Bolsonaro não será domado por indivíduos ou instituições nem construirá uma base de apoio no Congresso. Não é possível que percamos tempo com isso pela enésima vez. Especialmente quando não temos mais tempo a perder.

Mais do que nunca, Bolsonaro continuará governando por Whatsapp. Mas, se estiver certa a suposição do encolhimento de seu apoio, a base a que ele se dirige (e que o dirige também, em alguma medida) deverá diminuir consideravelmente nos próximos meses. A tática de duelar contra o “sistema” e perder é a encenação cotidiana de governar por Whatsapp. Essa tática permanecerá — com cada vez mais força, aliás. Mas seu apelo deverá perder em alcance à medida que o “sistema” entrar em colapso, à medida que o atual presidente não conseguir escapar à responsabilização pelos efeitos deletérios das crises.

Colocar o impeachment de Bolsonaro como principal horizonte para a ação política significa buscar afastar definitivamente o risco autoritário que representa. Significa igualmente proteger o país do risco adicional de um presidente que não só é incapaz de liderar em um momento de emergência, mas que, segundo a própria lógica do apoio social que ainda tem, não pode fazê-lo. Mas, no momento em que escrevo, meados de abril de 2020, não há condições objetivas de levar adiante um processo de impeachment. É o momento que antecede o ponto mais agudo da crise sanitária. Mas nem por isso deve-se tirar do horizonte esse objetivo, muito pelo contrário. Importa, sobretudo, pensar as suas condições. A mais decisiva delas: o que realmente importa não será alcançado se o impeachment não envolver uma repactuação da democracia no país.

Se experiências anteriores podem servir de guia, o afastamento da presidência tem pelo menos dois requisitos básicos simultâneos: baixa aprovação e altíssimo apoio à remoção do presidente. Estando correta a estimativa da dimensão do núcleo duro de apoio a Bolsonaro, aqueles aproximados 12%, e a suposição de que o atual presidente terá seu apoio reduzido a esse grupo, uma das condições estará teoricamente dada. O que não significa de maneira nenhuma que essa base de apoio reduzida ao seu núcleo mais fiel deixará de brigar até a morte pela manutenção de Bolsonaro na presidência.

Pelo contrário, esse núcleo duro bolsonarista já mostrou repetidamente sua capacidade de mobilização e de enfrentamento, sua disposição para praticar violências de todo tipo. Já deu repetidas mostras da firmeza de suas convicções autoritárias. Esse núcleo duro do bolsonarismo lutará contra o afastamento do atual presidente ao preço do caos social permanente, se necessário for. Não se trata de um apoio diminuto e desorganizado como o que tinha Fernando Collor em 1992, quando renunciou para escapar ao processo de impeachment. Também por isso, essa primeira condição só poderá ser efetiva se combinada a todas as demais.

A outra condição é que se forme uma maioria esmagadora, algo como dois terços ou mais do eleitorado, favorável ao afastamento. Essa segunda condição será alcançada ainda menos espontaneamente do que a primeira. Não virá como mero efeito colateral das crises. Não é porque Bolsonaro poderá ver seu apoio reduzido a algo como 12% do eleitorado que uma maioria esmagadora se formará automaticamente a favor de seu afastamento. Essa segunda condição depende da formação de uma ampla frente de rejeição. Algum entendimento mínimo entre diferentes posições políticas tem de se formar com base na concordância de que Bolsonaro representa um risco grande demais ao país e à democracia para continuar na presidência.

Formar uma frente dessa amplitude vai exigir, por exemplo, uma mudança na atitude de continuar a tentar colocar a culpa em alguém — no PT, no governo Dilma, no golpe de 2016, no governo Temer, nas elites, em grupos religiosos —, como se isso pudesse nos tirar do buraco em que nos metemos. Haverá disposição para isso? A formação dessa ampla frente de rejeição a Bolsonaro depende também de que o sistema político como um todo se entenda sobre os termos da deposição. E aqui é decisivo lembrar que esse tipo de entendimento tem dois modelos bastante diferentes na história recente do país.

O impeachment de Collor contou com o apoio praticamente unânime do sistema político. Houve um grande acordo para que Itamar Franco, o então vice-presidente, assumisse e completasse o mandato. E a celebração do acordo não incluiu necessariamente a participação no governo de Itamar Franco, do qual não participou, por exemplo, o PT, partido decisivo na luta pelo impeachment de Collor. O outro modelo de entendimento do sistema político para deposição por impeachment foi a parlamentada de 2016, que derrubou Dilma Rousseff. Diferentemente do amplo entendimento que prevaleceu no impeachment de Fernando Collor, a deposição de Dilma Rousseff representou uma profunda divisão na política oficial e na sociedade. Foi um movimento de autofagia, uma parte do sistema pretendendo entregar a outra aos leões do lavajatismo para tentar salvar sua própria pele.

O impeachment bem-sucedido de Bolsonaro exigirá um acordo de amplitude semelhante àquele que derrubou Collor. Somente assim será possível fazer com que o pior fique para trás. Derrubar Bolsonaro só será possível se esse grande acordo não tiver caráter diretamente eleitoral ou de negociação sobre a composição do futuro governo. Um afastamento virtuoso de Bolsonaro só será possível se for firmado um pacto para estabelecer as novas condições da convivência e da competição política, se significar o estabelecimento de bases comuns para um país sem Bolsonaro na presidência.

Não bastassem todos esses desafios, sempre pode haver ainda quem insista em se apegar interessadamente às miragens que Bolsonaro produz. Pode haver quem continue a achar, à direita, que é bom ter Bolsonaro fraco, pronto para ser usado na implementação da agenda do interessado. Apesar de todos os desmentidos cotidianos, sempre vai aparecer quem venha com a conversa fiada de que é capaz de colocar uma focinheira permanente no atual presidente.

Da mesma maneira, sempre pode haver quem, à esquerda, entenda que lutar pelo impeachment serve somente à tática eleitoral. Nessa lógica, o impeachment em si mesmo não é para valer, de modo que não é necessário buscar um amplo entendimento na sociedade, a direita democrática incluída. O resultado dessa atitude será fortalecer Bolsonaro para 2022, servirá como tática para tentar escolhê-lo como adversário em um segundo turno em que a esquerda espera alcançar a outra vaga.

Se forem esses os caminhos decididos pela sociedade e por forças políticas relevantes, se a direita e a esquerda democráticas não procurarem se entender, o resultado será a continuidade do colapso institucional que vivemos desde Junho de 2013. Será a continuidade do ambiente propício ao surgimento de Bolsonaros, como o que se elegeu em 2018 porque foi o candidato do colapso e que tenta se manter no poder mantendo as institucionais em estado de colapso permanente. Será a continuidade do risco para a sobrevivência da própria democracia.

Politicamente, o que mudou nessa crise foi que Bolsonaro perdeu a autoridade para continuar a ser presidente. É fato que são muitas as condições para que o seu impeachment seja um movimento de regeneração da democracia e não uma iniciativa que apenas agrave o colapso institucional que já vivemos — a condição mais fundamental de todas sendo a decisão política de buscar a convergência mais ampla possível. Mas só essa convergência dessa magnitude pode produzir as condições para que Bolsonaro seja devidamente responsabilizado e afastado e para que a democracia tenha novamente uma chance no país. E buscar essa convergência é movimento que pode e deve começar desde já.