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A crítica hesitante de Milanović

Em seu livro mais recente, publicado em 2019, Branko Milanović mais uma vez utiliza os resultados de seus trabalhos acadêmicos sobre as desigualdades globais para examinar de forma abrangente o capitalismo contemporâneo e analisar suas tendências econômicas, políticas e sociais.1 Capitalism, alone pode ser lido, assim, como uma continuação de seu livro de 2016, Global inequality.2 As ambiguidades de ambos os livros saltam aos olhos. Recorrendo, simultaneamente, às teorias econômicas convencionais e à tradição herdeira de Marx, Milanović desagradará a muitos. O que não é, necessariamente, uma virtude, como notou outro crítico hesitante, Albert O. Hirschman: “seria, é claro, tolo (…) argumentar que qualquer doutrina ou política que é atacada simultaneamente pela esquerda e pela direita é, por essa razão, imbuída supremamente de verdade e sabedoria”.3

Dentre as muitas possibilidades contidas em suas referências ecléticas, Milanović tende para uma posição moderadamente otimista, confiante em mudanças de políticas que permitam levar a um mundo menos desigual. Em Global inequality, ele se propõe, por exemplo, a reabilitar Kuznets (que havia caído em desprestígio por conta da crítica dura de Thomas Piketty), com o intuito de sugerir que a trajetória atual de elevação das desigualdades de renda deverá ser revertida. Já em Capitalism, alone, ele vai ainda mais longe e discute uma série de políticas que poderiam ser adotadas para esse fim.

No entanto, nas entrelinhas de ambos os livros pode ser identificado um diagnóstico crítico mais sombrio que, se fosse levado às últimas consequências, conferiria um ar de ingenuidade a vários de seus prognósticos e de suas sugestões de política. Milanović hesita face a esse diagnóstico que a realidade parece lhe impor, mas, como observador atento, oferece muitas pistas para reflexões menos hesitantes. Tal diagnóstico sugere o fim da breve e limitada experiência do capitalismo democrático e a generalização de um capitalismo autoritário. Para o situar, é conveniente realizar uma curta recapitulação.

Um dos argumentos centrais em Le capital au XXIe siècle, de Piketty,4 é que a maior parte da elevação das desigualdades de renda, observadas nas últimas décadas, deve-se (especialmente nos casos dos Estados Unidos e do Reino Unido) à concentração de renda no topo, apropriada em parcelas crescentes pelo percentil de maior renda. Piketty defendeu, desse modo, que os papéis desempenhados pelos efeitos do progresso técnico e da globalização sobre as disparidades salariais eram menos relevantes e que a história principal envolveria apenas o 1% mais rico. O livro de 2016 de Milanović foi escrito, em certa medida, para sugerir a parcialidade desse argumento. Não se tratava de questionar a preponderância do percentil dos mais ricos para compreender a dinâmica das desigualdades nos dois lados do Atlântico Norte, mas de sugerir que as transformações na divisão internacional do trabalho também impactavam significativamente as distribuições de renda internas aos países e engendravam, consequentemente, processos políticos e sociais cruciais para o futuro do capitalismo.

Concretamente, Milanović indicou (com seu gráfico do elefante) que dois grupos apresentaram crescimento significativo de suas rendas entre 1988 e 2008 e ele os denominou de “classe média emergente global” e de “plutocratas globais”.5 O primeiro grupo, que representa cerca de um quinto da população mundial, abrange os trabalhadores urbanos das economias asiáticas, especialmente da China, e o segundo, o percentil de maior renda do mundo inteiro (incluindo os 12% mais ricos dos Estados Unidos, parcelas das sociedades europeia e japonesa e até o percentil de maior renda do Brasil). A história contada por Piketty foca-se quase que exclusivamente nessa plutocracia, mas relega a “classe média global” a um segundo plano. Sua relevância, segundo Milanović, está relacionada a um outro grupo, cerca de 10% da população mundial, que, embora receba uma renda maior do que a da “classe média emergente global”, não obteve praticamente nenhuma elevação desta nas duas décadas em questão. Milanović denomina esse último grupo de “classe média baixa do mundo rico” para indicar que se trata, em sua maior parte, de trabalhadores relativamente mais pobres dos Estados Unidos, da Europa Ocidental e do Japão.6

Esse contraste entre as duas “classes médias” resulta, em linhas gerais, do deslocamento da produção industrial para a Ásia, multiplicando o proletariado fabril asiático e os rustbelts nos países ricos. Tal processo explicita a origem comum da transformação acelerada da sociedade chinesa e da emergência do populismo nos países ricos. É uma história que envolve a distribuição de renda, mas que aparece muito pouco nos trabalhos de Piketty. Ele próprio, aliás, reconheceria a contribuição de Milanović, argumentando, em seu último livro, que “o gráfico do elefante é fundamental porque explica o motivo pelo qual a globalização é tão controversa politicamente”.7

Em Global Inequality, Milanović apresenta esses resultados, mas insiste em considerar que, tanto nos países ricos como na Ásia, ondas de Kuznets deveriam ser observadas e que elevações de desigualdade deveriam ser seguidas de reduções correspondentes. Essa aposta, contudo, ia de encontro ao papel das lutas políticas e da democracia que ele próprio considerava central para explicar as ondas de Kuznets. Se a transformação da divisão internacional do trabalho polarizou a estrutura de classes dos países ricos e esvaziou suas democracias (conforme ele mesmo argumenta), como seria possível apostar na vigência do processo sugerido por Kuznets?

O livro de 2019 serviria para investigar em mais detalhes essas questões, deixando as ondas de Kuznets de lado e examinando as “estruturas sociais e econômicas que os dois sistemas reproduzem, especialmente no que concerne aos temas da desigualdade de renda e da estrutura de classes”.8 Os dois sistemas, no caso, são o capitalismo liberal-meritocrático e o capitalismo político. A tarefa que ele se propôs foi investigar em detalhes dois países, os Estados Unidos e a China, que seriam tipos-ideais de cada um desses sistemas. Essa análise, por sua vez, seria o ponto de partida para avaliar as tendências futuras do capitalismo.

A parte sobre os Estados Unidos aprofunda o argumento de 2016 sobre a tendência desse país para a plutocracia. Em sua narrativa, vários fatores combinam-se para consolidar uma elite que combina poder econômico e político. A polarização social resultante da mencionada desindustrialização do emprego produz o que ele chama de “separatismo social”, pressionando o Estado de bem-estar social e reduzindo a possibilidade de mobilidade social. Com seu poder econômico consolidado, a elite passa a dominar a política, em parte pelo financiamento eleitoral. Milanović chega até a endossar o comentário de Marx e Engels, n’O manifesto comunista, segundo o qual o governo é um “comitê que administra os negócios comuns da burguesia”.9

Já a parte sobre a China é mais complexa de se avaliar. Ela combina uma discussão interessante, a partir de argumentos de Giovanni Arrighi, sobre o futuro da burguesia chinesa, com um exame minucioso dos dados sobre a trajetória das desigualdades no país. Ao mesmo tempo, há um argumento geral, cujo tom elogioso surpreende, sobre a capacidade chinesa de investir em infraestrutura pela ausência de controles democráticos. No espaço dessa nota, não cabe examinar esses pontos. O que interessa para o argumento aqui desenvolvido é que Milanović sugere, ainda que hesitantemente, que a tendência para a plutocracia apresentada pelos capitalismos ocidentais pode os aproximar do capitalismo político:

Quanto mais o poder econômico e político no capitalismo liberal unificam-se, mais ele torna-se plutocrático e passa a se assemelhar ao capitalismo político. Noúltimo, o controle político é a maneira de adquirir benefícios econômico. No capitalismo plutocrático (anteriormente liberal), poder econômico é usado para dominar a política. O ponto de chegada dos dois sistemas torna-se o mesmo: unificação e persistência das elites.10

Milanović não parece apostar suas fichas nesse prognóstico. Em sua visão, é mais provável a convivência dos dois tipos de capitalismo. Mas esse comentário nas páginas finais do seu livro recente é uma conclusão adequada para o diagnóstico crítico que ele vem sugerindo, e reprimindo, desde 2016. O aumento da desigualdade nos países ricos desemboca em uma crise da democracia e aponta na direção de um fechamento autoritário. Na China, as transformações econômicas que são a contrapartida da polarização social dos países ricos foram colocadas em marcha por uma combinação entre capitalismo e autoritarismo que pode oferecer para os países ricos um modelo (politicamente regressivo). Como vem argumentando Wolfgang Streeck, o capitalismo democrático terá se revelado uma experiência efêmera.11 Mas seu fim não representa o fim do modo de produção, apenas o início de mais uma etapa autoritária.

Não é difícil rejeitar o argumento de Milanović, apontando várias passagens questionáveis. Uma particularmente gritante é aquela em que ele contesta Nancy Fraser dizendo que a “commodification all the way down”, que ela identifica, não deve ser vista como um processo negativo, mas que é algo de que os indivíduos “participam livremente e, além do mais, é algo que eles frequentemente consideram libertador e significativo”.12 O leitor de Marx, Gramsci e Arrighi assume aqui o papel de apologista do capitalismo. No entanto, a reflexão crítica tem mais a ganhar se decidir se apropriar criticamente do diagnóstico crítico subjacente aos trabalhos recentes de Milanović. Sua articulação entre as transformações da divisão internacional do trabalho, as trajetórias das desigualdades e seus efeitos políticos regressivos são um ponto de partida útil para a compreensão do capitalismo contemporâneo.