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Republicana levada ao cadafalso: os escritos políticos de Olympe de Gouges

Resenha do livro Avante, mulheres!

Lego minha alma às mulheres,
não as deixo um presente qualquer

— Olympe de Gouges

Marco Noregna

“A mulher tem o direito de subir no cadafalso; deve ter, igualmente, o de subir na tribuna […]” é sentença proferida no século XVIII. Dois séculos depois, é tirada do esquecimento pelos movimentos feministas e, convertida em slogan, a frase é riscada sobre muros e impressa em cartazes que acompanham manifestações, como reivindicação de direitos mais amplos às mulheres — ainda no século XXI. A sentença, na verdade, é um recorte do Artigo décimo da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã,1 a obra política mais conhecida entre os escritos de Olympe de Gouges (1748–1793). Com a publicação de Avante, Mulheres!, o público tem acesso não apenas à Declaração, publicada em 14 de setembro de 1791, mas a outros textos políticos menos conhecidos e ainda inéditos em português.

Editado pela Edipro, o conjunto de escritos políticos foi traduzido por Leandro Cardoso Marques da Silva, mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo, quem também assina uma nota preliminar sobre a tradução, e prefaciado por Gláucia Fraccaro, doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas. O trabalho é uma contribuição notável para as áreas de teoria política e história. A começar pelo fato de a carência de traduções dificultar o acesso a estes textos na graduação ou nas etapas de formação de pesquisadores. Notável também porque, ainda no que diz respeito à área acadêmica, são raros os cursos que tratam da Revolução Francesa incluindo em seus programas as brochuras e os textos que alimentaram os debates políticos na França setecentista, a despeito de a consulta às atas da Assembleia revelar que tais escritos estavam na ordem do dia. No mais das vezes, as questões acerca da autoridade política da segunda metade da década de 1780 em diante são apresentadas como um diálogo exclusivo entre os chamados “grandes filósofos e historiadores”. Um diálogo que se estabeleceria entre os dois lados do Canal da Mancha, envolvendo Burke, Paine, Price2 e, claro, os oradores na Assembleia, mas do qual as mulheres estariam ausentes. Esta ausência, como os estudos sobre o período com corte epistêmico centrado no gênero têm revelado, é inteiramente fabricada pelas narrativas históricas ortodoxas e a pergunta deveria ser: de quais espaços as mulheres estariam efetivamente ausentes? Fora dos espaços de poder normalmente concebidos ou presentes neles, mas sem a ocupação permanente do púlpito ou de lugares destacados, não haveria, então, ação política? Com efeito, o Avante, Mulheres! é trabalho notável, por ajudar a responder estas questões, por tornar conhecida a efetiva participação política das mulheres no período. Por fim, o livro é uma contribuição a uma tese não trivial na historiografia das Luzes, segundo a qual havia um intenso debate político — não restrito aos autores fixados em um cânone — antes de 1789 se converter, o ano mesmo, em evento que fez a Revolução. Disso, os escritos de Olympe (entre outras mulheres, como Mary Wollstonecraft, Théroigne de Méricourt, Madame Roland), agora acessíveis ao público em geral, fornecem provas em abundância.

Mesmo diante da interdição imposta a seu sexo, Olympe de Gouges elaborou a sua escrita na tensão entre os temas que supostamente pertenceriam somente ao domínio doméstico com as demandas por igualdade debatidas no espaço público, fornecendo uma linha divisória muito mais descontínua do que se concebe. Não se poderia falar em fim do Antigo Regime, em uma sociedade de igualdade, se os costumes não fossem outros e se os direitos não fossem estendidos aos mais pobres, aos negros e às mulheres. Exemplar de sua atuação é a defesa incansável dos direitos dos filhos fora de casamentos, considerados ilegítimos, bem como de um contrato que regesse o matrimônio e a criação de hospitais específicos para o acolhimento das mulheres que davam à luz (projetos traduzidos no livro).

Em muitos aspectos, a biografia ajuda a compreender os temas caros à autora. Nascida em 1748, Olympe (então batizada Marie Gouze) não foi reconhecida pelo pai biológico, o marquês de Pompignan, um nobre da região de Montauban, sul da França. Criada pelo marido de sua mãe, um modesto açougueiro, casou-se aos 16 anos e, com pouco mais de 20 anos, tornou-se viúva. Adotando o nome de sua mãe, Olympe, mudou-se para Paris com o filho, onde entregou-se à sua paixão, o teatro, passando a circular entre a sociedade artística e intelectual da Paris das Luzes, e viveu outros amores, recusando-se a um novo casamento, o que não se deu sem que lhe fossem rendidos certos atributos não incomuns, quando se trata da vida particular das mulheres: concubina, cortesã, obscena — “la mauvaise femme” (para lembrar o topos sexista da época).3 Viveu em Paris até sua condenação à guilhotina, em novembro de 1793.

O livro não obedece à cronologia da publicação dos panfletos, mas organiza os escritos por eixos temáticos, quais sejam, “Em favor das mulheres”, “Uma peça contra a escravidão”, “Com ódio dos jacobinos em defesa da pátria”, abarcando textos publicados entre 1788 e 1793. Não são tratados políticos, nos quais aos princípios expostos seguem-se as teses. São panfletos impressos, às custas da renda da autora, com propósitos de intervenção no debate político da época. Um alcance adicional e não pretendido do livro é corroborar teses recentes, como a de Olivier Blanc, biógrafo de Olympe de Gouges,4 nas quais se defende que a atuação das mulheres se deu muito antes da eclosão da Revolução, convencionalmente fixada em 1789, com a queda da Bastilha.

O primeiro conjunto, intitulado “Em favor das mulheres”, é aberto com o “Projeto útil e salutar” (publicado em abril de 1789). Neste texto, propõe-se a criação de um fundo nacional amparado em impostos como forma de dar condições de vida à parcela mais pobre da população — em continuidade, aliás, com projetos de criação de impostos já apresentados na Lettre au Peuple (1788), primeiro escrito da autora, ainda não traduzido. É indício da época no qual o texto foi escrito a ênfase em certa categoria a fim de despertar o dever de todos diante do povo abandonado à miséria: “patriota” — palavrinha gasta na política contemporânea, mas, na época, finalmente endossada pelos discursos do campo mais liberal, ou ainda, pelos mais ferrenhos opositores do Antigo Regime, depois de circular entre grupos políticos muito diversos. Não ocorrera ainda a inflexão determinante do vocábulo “cidadão” (e suas variantes), a tomar os discursos anti-monarquistas, os documentos oficiais, os jornais republicanos e as atas jacobinas, que sugerirá à autora a insistência, nos anos seguintes, no termo “cidadã”. Ainda assim, se a autora emprega o adjetivo “patriota” para sustentar a razoabilidade de seus projetos (a criação de um imposto patriótico, a fundação de um teatro patriótico), é no atrito com a consciência do lugar destinado às mulheres que escrevem no período: “Se nessas obras há alguns impostos que possam ser colocados em vigor, a nação não negligenciará sua execução, não importa qual seja o sexo de seu autor” (“Projeto útil e salutar”, pp. 22–3). É como se “patriótico” funcionasse, por vezes, como substantivo neutro até o ponto em que tal véu se rasga, no pronunciamento aberto de um “nós”, em favor de seu sexo:

Mas o que me interessa particularmente e que sensibiliza muito todo o meu sexo é uma casa particular, um estabelecimento para sempre memorável que falta na França. As mulheres, pobre delas! […] Condenadas desde o berço a uma ignorância insípida, o bocado de emulação que nos é dado desde nossa infância, os inúmeros males com os quais a natureza nos oprime nos tornam muito infelizes, desafortunadas, a ponto de que não esperássemos que um dia os homens viessem ao nosso socorro.

(“Projeto útil e salutar”, p. 25, grifos meus).

Convocando a memória dos homens, para as dores que as jovens sofrem antes de se tornarem mães, para a quantidade de mulheres mortas durante o parto, Olympe de Gouges apresenta seu projeto de casa de saúde particular às parturientes, aos moldes dos Inválidos (o hospital próprio aos homens combatentes de guerra),5 destinadas às esposas dos militares sem recursos, dos negociantes, dos artistas, enfim, dos desafortunados da nação. A retórica do patriotismo, tão enfatizada nas primeiras linhas do texto, se esmaece diante da imposição do que a autora compreende por natureza: os maridos, os filhos, os irmãos — eles mesmos, nascidos de mulheres sem nunca terem prestado atenção à situação delas —, devem isso às mulheres da nação.

Ainda no primeiro conjunto de textos, encontra-se o mais conhecido entre os escritos de Olympe de Gouges: “Os direitos da mulher” (publicado em setembro de 1789). Mediante um expediente paródico, no qual a autora repete o estilo, mas inverte o conteúdo da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, a construção dessa outra declaração, agora da Mulher e da Cidadã, permite questionar qual lugar caberia às mulheres no regime nascente, numa sociedade que rejeitava a estrutura antiga e proclamava direitos. A Declaração das mulheres e das cidadãs, aparentemente texto anódino, lança luz sobre a lógica de exceção e exclusão6 implícita no universalismo do direito à cidadania e fornece vocabulário para novas demandas: mulheres, negros, judeus reivindicam sua cidadania.7 Note-se bem: das mulheres e das cidadãs, pois não bastaria lançar mão de outro substantivo genérico e igualmente lacunar, a “humanidade”, para absorver o gênero feminino nesta universalidade dos direitos.

Cidadania não se restringe à conquista de direitos políticos. No breve e contundente escrito, intitulado “O bom senso do francês” (publicado em fevereiro de 1792), o último panfleto do primeiro conjunto selecionado do Avante, Mulheres!, exige-se dos legisladores um decreto, uma lei que esclareça de vez que a igualdade entre esposos e esposas é da mesma ordem da igualdade entre indivíduos que preside outros contratos. A garantia da independência da mulher é condição fundamental, não se restringindo às liberdades no domínio político. Para a efetiva independência, sustenta a autora, um tribunal deveria existir, garantindo, após a separação dos cônjuges, a propriedade de cada um, a divisão correta da fortuna e os interesses das crianças.

O segundo conjunto de textos, constituído por “Sobre a espécie dos homens negros” e “Resposta ao colono americano”, revela, em pouco mais de dez páginas, a aguerrida abolicionista de Gouges. Aqui, o teatro se destaca como meio fundamental de intervenção no debate público, atividade para a qual vai se consagrar inteiramente numa época em que apenas perífrases eram aplicadas em referência às mulheres que pegavam em penas — “as escritoras engajadas”, como se dirá na França, no começo do século XIX. No “Sobre ‘a espécie dos homens negros’” (publicado em fevereiro de 1788) Olympe de Gouges apresenta um apelo à Comédie Française para colocar em cena sua peça Zamore et Mirza ou l’heureux naufrage, escrita cinco anos antes. Engana-se quem afirma que seu texto se presta somente a pedidos de adaptações necessárias na encenação e a marcações textuais. Por constituir uma denúncia da escravidão e porque exige que negros, não maquiados, sejam colocados em cena, a peça se converteu num texto abolicionista, sendo entregue aos integrantes do Club des Amis des Noirs, em 1792. É da igualdade efetiva que se trata, em cor e corpos específicos, não em uma generalidade esquiva, desde as primeiras linhas, conduzidas pela memória:

A espécie dos homens negros sempre chamou minha atenção por conta de sua deplorável sorte. Meus conhecimentos mal começavam a se desenvolver e foi em uma idade em que as crianças nem pensam que o aspecto de uma mulher negra — que eu vira pela primeira vez — me poria a refletir e a fazer questões sobre sua cor. Aqueles a quem interroguei na ocasião não puderam satisfazer minha curiosidade e meu pensamento. Consideravam essas pessoas como brutos, como seres amaldiçoados pelo Céu. Mas, conforme fui crescendo, percebi claramente que foram a força e o preconceito que conderam aquela gente à terrível escravidão. Escravidão sem paralelo na natureza e constituída inteiramente pelo injusto e poderoso interesse dos brancos.

(“Sobre ‘a espécie dos homens negros’”, p. 55).

Não tardou para que, por lobby dos colonos, especialmente os de São Domingos e da Guiana, os principais doadores da Comédie, a peça fosse mantida no repertório da casa, por anos, sem ser encenada. O texto, então, é uma intervenção política, não um acerto de contas estético. A abolição da escravidão naquele território, aliás, ocorrerá apenas em 1794, após a morte de Olympe.

Por fim, o terceiro conjunto de textos, intitulado “Com ódio dos jacobinos, em defesa da pátria”, reúne algumas das intervenções da autora no período mais violento da Revolução e provavelmente o mais dramático de sua vida. Ao lado dos girondinos mais moderados, em oposição à Montanha,8 a autora se posiciona publicamente contra os massacres e a pena de morte.

Em “Prognóstico sobre Maximilien de Robespierre por um anfíbio” (publicado em 5 de novembro de 1792), a autora se apresenta como um anfíbio, nem além e nem aquém de um homem ou uma mulher, mas um animal sem paralelos que se dirige diretamente a Robespierre, que já gozava de confiança — era o “legislador incorruptível”, nos termos de Camille Desmoulins — e acumulava grande popularidade, a ponto de ser considerado quem mais bem encarnou os princípios da Revolução,9 bem como a intransigência da Montanha diante dos girondinos: “Escuta, Robespierre, é contigo que vou falar, ouve teu veredicto e sofre a verdade. Tu te autoproclamas o único autor da Revolução; não o foste; não o és, dela não serás mais do que o opróbrio e a execração, para sempre” (“Prognóstico sobre Maximilien de Robespierre por um anfíbio”, p. 71). Contra a tese bastante difundida, segundo a qual a linguagem da virtude, um dos fundamentos do republicanismo, se estabelece mediante subestimação das dificuldades reais da política e, portanto, recorrendo-se deliberadamente a meios extraordinários e à violência, o panfleto é demonstrativo de que atores políticos muito diferentes entre si podem lançar mão de uma mesma linguagem política da história: é contra Robespierre, que pesa a acusação de tirania, de usurpação da liberdade do povo. É assim que, a partir de um mesmo conjunto de referências, Olympe de Gouges disputará com Robespierre, em linguagem republicana, a defesa da pátria. É verdade que as palavras se prestam explicitamente à defesa de Luís Capeto (o rei Luís XVI, então preso), que já havia sido destronado, mas cujo processo estava em curso. A ofensiva de Robespierre consistia em apresentar Luís Capeto como traidor da pátria, merecedor de julgamento como um “inimigo estrangeiro” cuja punição era uma exigência para a liberdade do povo. Como outros argumentos que derrubaram a autoridade monárquica no período, de Gouges rejeitava a imputabilidade advinda da tese dos dois corpos do rei: haveria ali apenas um homem, digno de clemência, que também era um rei, responsável pelos seus atos, condenável, portanto. A saída da republicana era neutralizar Luís XVI, concedendo-lhe um julgamento comum, para contornar o sentimento monarquista enraizado no território. A perda do trono e, sobretudo, o banimento eram penas terríveis o bastante, sendo dispensável o extermínio da família real, como as alas radicais defendiam, pois isso poderia implicar num derramamento de sangue sem fim e na vitória premeditada do partido vencedor, aquele que precipitou a divisão. Com tal argumentação, a autora entabula de tal modo o debate que situa Robespierre, ele mesmo, no lugar dos tiranos — do “monstro”, nos termos da época:

Povo republicano, tu vais me conhecer melhor, condeno esses excessos de um patriotismo desorientado. Devemos todos velar pela segurança pública, mas nenhum de nós deve permitir-se chegar às vias de fato, o que tornaria o furor da vingança mais do que o amor pela pátria […] A própria Convenção Nacional deve abafar todo ressentimento e dar o exemplo de imparcialidade republicana. Quer dizer, punir todos aqueles que provocassem os assassinatos desses agitadores insensatos, os quais, para saciar sua vingança, talvez queiram apenas acender as tochas da guerra civil e fortalecer seu partido, espalhando contra os patriotas que são eles mesmos os assassinos.

(“Prognóstico sobre Maximilien de Robespierre por um anfíbio”, p. 75)

O clamor de novembro de 1792 foi em vão. O clima político se agrava, na primavera seguinte, e as estratégias da Montanha envolvem cartas de ameaças aos girondinos e suas famílias, além de intimidações a jornalistas e escritores do período. Em menos de um ano, Olympe de Gouges sai de Paris e retorna para os seus últimos atos. Desse período marcado pelo medo, temos a prova documental em diários e cartas, nos quais ela relata ser perseguida por homens armados. Admite que sua alma corajosa deve, por fim, se retirar. Instala-se em uma residência modesta em Saint-Etienne de Chimie (região de Tours) e ali se mantém até o momento em que as tentativas de eliminar os girondinos na Convenção levam a uma situação de tensão máxima. Não menos do que 29 deputados girondinos são presos. Os que escapam, assistem às prisões de suas esposas e familiares — entre elas, sua amiga Madame de Roland. Essa situação precipita a volta de Olympe a Paris, como ela declara em um panfleto endereçado à Convenção, intitulado “À maneira de testamento” (em 4 de junho de 1793): “Eu havia fugido da capital, intentava apenas viver anonimamente na província onde me fixei. Tomo conhecimento de que o céu me devolveu meu filho, que ele estava em Paris, e um destino, que eu tentara em vão impedir, me traz de volta aos muros da capital, onde certamente me espera um fim digno de minha perseverança e meus longos labores” (“À maneira de testamento”, p. 78). É de lucidez espantosa este panfleto. O fim digno de qual trata chegará em meses e, mesmo assim, a autora tenta alertar em vão sobre a radicalização de certas alas da Convenção Nacional e passa a apresentar, como testamento político, a coerência de suas ações:

os homens já não podem mais ouvir-me […] Meus olhos fatigados do doloroso espetáculo de tuas dissensões, de tuas tramas criminosas, não podem mais aguentar esse horror. Se devo perecer sob o ferro dos contrarrevolucionários de todos os partidos, inspira-me [ó divina providência] em meus últimos momentos, e dá-me coragem e força para confundir os malévolos e para servir ainda uma vez, caso o possa meu país, em minha hora derradeira! […] Contente de ter sido a primeira a servir a causa do povo, de ter sacrificado minha fortuna ao triunfo da liberdade, de ter finalmente dado na figura de meu filho um verdadeiro defensor de minha pátria.

(“À maneira de Testamento”, pp. 77–8)

Procura justificar, além de sua renda dispensada em nome da causa popular, da impressão de seus escritos, de oficinas públicas para os trabalhadores, de impostos voluntários, de todas as doações, a sua defesa de Luís — rei culpável, homem irreprovável — sem, entretanto, se converter numa monarquista. A defesa não se fazia em nome das vãs fantasias dos contrarrevolucionários, mas apenas da clemência pelo destronado, por coerência com a defesa do fim da pena de morte. Seria hora de parar o derramamento de sangue, frear os impulsos que levaram aos massacres de 1791, porque a ruína da pátria se aproximaria. A linguagem da coisa pública, o emprego dos exemplos de Roma, a invocação do nome de Catão, a alegoria da liberdade após os Tarquínios servem como metáforas, utilizadas em todo o panfleto, para lançar dúvidas ao comportamento dos supostos defensores da República, que poderiam dominar sob sangue e medo, na capital, mas não manteriam a glória de toda a França — é ela, afinal, quem está prestes a “morrer como verdadeira republicana!”. Este testamento, endereçado a Danton, foi enviado junto a outra carta — infelizmente ainda não traduzida para o português. Mantida por meses em prisão, reputada por ser uma das cadeias mais insalubres da região, cujos métodos de tortura envolviam o impedimento do sono, o barulho constante — a nos fiarmos no testemunho de madame Roland, também, ali, encarcerada. Com feridas abertas durante a prisão e sem tratamento, Gouges consegue ser transferida para a enfermaria de outra prisão. Fragilizada fisicamente e sem direito a advogado, é uma mulher altiva a que se apresenta diante do Tribunal. O documento que o atesta é o “Discurso endereçado ao Tribunal Revolucionário” (setembro de 1793), escolha acertada para concluir o conjunto de dez escritos apresentados ao público. O Tribunal faz tremer, ela anuncia, não por alguma culpa que guardaria, mas pelo excesso que ameaçaria as bases até mesmo de sua inocência. A estratégia foi apresentar a Montanha como criados da corte, como homens imbuídos de preconceitos do Antigo Regime, como “republicanos de quatro dias”, ataques com a mesma intensidade com a qual se apresentava com caráter e alma republicanas:

Jogando-me em vossas masmorras, pretendestes vos livrar de uma perigosa vigilante de vossos complôs. Tremei, tiranos modernos! Minha voz se fará ouvir do fundo do meu sepulcro. Minha audácia faz com que vos acovardeis. É com coragem e com as armas da retidão que vos peço conta da tirania que exerceis sobre os verdadeiros sustentáculos da República.

(“Discurso endereçado ao Tribunal Revolucionário”, p. 88)

Passados mais de dois séculos, pode parecer trivial que mulheres ocupem espaços ditos de poder, como tribunas, júris, exércitos, assembleias. Porém, a legitimidade da participação das mulheres nestes espaços, bem como sua prática, está sob constante ataque, físico e moral. O Avante, Mulheres! caminha na história política das mulheres, uma história ainda a se escrever. Seria anacrônico e simplificador aplicar a tarja “feminismo” — termo que surge apenas no século XIX — a este conjunto de escritos traduzidos, assim como seria um desfavor tratar tais fontes menos conhecidas como preâmbulo ou mera introdução às práticas e ao pensamento feminista, desenvolvidos nos séculos seguintes e responsáveis, aliás, por retirar de Gouges do esquecimento. O Avante, Mulheres! nos coloca diante de literatura escrita por mulher que escolheu seu próprio nome para combate no terreno das desigualdades, Olympe, e nos legou uma tarefa que ainda não cumprimos nas democracias contemporâneas, mas de cuja dificuldade ela era inteiramente consciente — a da igualdade: “Esta obra não é trabalho de um dia infelizmente para o novo regime. Esta revolução apenas se operará quando todas as mulheres forem conscientizadas sobre seu deplorável destino, e sobre os direitos que perderam na sociedade” (“Os direitos da mulher”, p. 33).