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Neoliberalismo, financeirização e capitalismo contemporâneo

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Colunas, Tom Vieira

Pretendo refletir neste texto sobre a natureza do capitalismo contemporâneo. Antes de prosseguir, tenho duas observações preliminares que refletem as dificuldades que essa tarefa demanda. A primeira e mais importante é que o capitalismo contemporâneo é excessivamente complicado — não se apresenta como uma coisa só. Por outro lado, eu diria que o capitalismo sempre foi global e que, por ser assim, tornou-se cada vez mais global e mais evidentemente global — e isso se torna ainda mais óbvio quando estamos inevitavelmente confrontados com duas crises de tipos muito diferentes. Uma se manifesta nas crises ambientais, lentas mas contínuas, que se fazem sentir cronicamente em todo o mundo; e a outra é a pandemia da covid, ao mesmo tempo aguda e onipresente, tanto pela sua incidência quanto por seus vastos efeitos econômicos e sociais.

Assim, embora o capitalismo contemporâneo seja global, está longe de ser uniforme, igual em todos os lugares e momentos. Na verdade, é altamente diversificado, de tal modo que mesmo as tentativas de lhe impor alguma ordem estão mais ou menos fadadas ao fracasso. Pense nos Brics — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, um agrupamento de países profundamente diferentes uns dos outros. E essas diferenças incidem igualmente dentro de cada um dos países envolvidos. No entanto, estes países parecem compartilhar algumas coisas em comum, não tanto por seu padrão de crescimento, mas pelo grau de sua exposição a crises e, sobretudo, por seus acentuados e em geral crescentes níveis de desigualdade na riqueza, na renda e no acesso aos meios de promoção do bem-estar social e individual. Assim, qualquer discussão sobre o capitalismo contemporâneo e, de fato, também sobre o capitalismo no passado, precisa ser capaz de abordar a coexistência e a determinação mútua tanto das diversidades como das uniformidades.

A minha segunda dificuldade é muito diferente da primeira. Começo por observar, certo ou errado, progressiva ou reacionariamente, que os entendimentos clássicos acerca do capitalismo, especialmente no campo da economia política e até mesmo em se tratando dos limites estreitos do mainstream econômico, sempre envolveram muita abstração teórica, mesmo se fundamentada indutivamente em maior ou menor grau na observação empírica. Isto é verdade no caso de Adam Smith e a mão invisível; no caso da teoria do valor de David Ricardo; no caso da acumulação de capital com base num modo de produção assentado na exploração de classe como em Karl Marx; no caso da existência de uma interação harmoniosa entre oferta e procura para forjar o equilíbrio da economia neoclássica, com sua dependência do homo economicus; ou, finalmente, no caso da noção keynesiana de demanda agregada efetiva. Embora o monetarismo sob várias formas tenha dominado o mainstream econômico desde a década de 1970, não existe neste momento um consenso significativo entre ortodoxos acerca da sua grande teoria, especialmente algo que possa orientar a formulação de políticas como foi o caso da resposta keynesiana à Grande Depressão dos anos 1930. E isso acontece apesar das crises anteriormente mencionadas.

Mesmo assim, uma grande teoria é essencial para compreender a natureza do capitalismo contemporâneo. Mas este não é o lugar para empreender sua formulação. Em vez disso, quero apenas sugerir que a minha apresentação está profundamente informada teoricamente e implícita no que se segue, especialmente no que diz respeito à natureza do capitalismo em geral e por que ele é tal como é hoje. Em suma, a teoria é realmente importante e vale a pena recordar que Lenin tirou um tempo em 1916 para escrever a sua obra clássica, Imperialismo, estágio superior do capitalismo, caracterizando o capitalismo do seu próprio tempo como o palco do capitalismo monopolista, na tentativa de compreender por que o mundo estaria no meio da primeira guerra mundial e quais eram as perspectivas para a revolução!

Em vez da teoria, o meu ponto de entrada ao especificar a natureza do capitalismo contemporâneo será entendê-lo como neoliberalismo. O próprio neoliberalismo foi, no entanto, compreendido de várias formas. Primeiro, e de forma mais popular, tem sido provavelmente como uma ideologia, favorecendo o laissez-faire, favorecendo sempre que possível o mercado e minimizando o papel do Estado. Isto é complementado pela ideologia de que o neoliberalismo favorece a liberdade individual. Contudo, também sabemos que o neoliberalismo está associado aos regimes mais autoritários, e que, como um período do capitalismo, tal autoritarismo cresceu às custas de formas de governo democráticas e progressistas. Em resumo, a ideologia se mostra pobre ao caracterizar, e pior ainda ao explicar, o neoliberalismo. Desse modo, tanto suas próprias diversidades e como suas uniformidades são algo ainda a ser explicado.

Alternativamente, o neoliberalismo foi caracterizado como um ataque concertado aos salários e às condições de vida dos trabalhadores e das suas famílias, sobretudo como um meio para restaurar a rentabilidade após a crise estagflacionista dos anos 1970. Mas como temos alguns séculos de experiência de agressões aos trabalhadores, isto não pode ser distintivo do capitalismo contemporâneo na sua acepção neoliberal, por mais graves que sejam as violações presentes. Mais convincente pode ser a ideia do neoliberalismo como um conjunto distinto de medidas políticas associando privatização, comercialização, redistribuição e austeridade. Mas isto tem o inconveniente de sugerir que o neoliberalismo só terá permanência e enraizamento enquanto durarem essas políticas, que poderiam simplesmente ser alteradas com uma mudança de governo. Ocorre que, quando isso aconteceu — pelas boas intenções de governos progressistas eleitos com sucesso —, forças econômicas, políticas e ideológicas, sem dúvida globais, com raízes profundas, parecem ter desmentido essa tese: as políticas de enfrentamento e reversão do neoliberalismo foram limitadas e de curta duração.

Numa veia mais histórica, talvez com o intento de procurar, em termos políticos, um regresso a essa era de ouro, o neoliberalismo foi caracterizado em oposição ao período keynesiano que o precedeu. Isto deixa em aberto a questão de como definir esse período anterior. Inclino-me a minimizar o papel das políticas keynesianas enquanto tais, enfatizando, ao contrário, a internacionalização do capital em todas as suas formas — com o crescimento de corporações multinacionais cuja produção ultrapassa as fronteiras nacionais por meio de suas filiais (num processo em que surgem como commodities globais, cadeias globais de valor, ou redes de produção globais), e com uma correspondente expansão do comércio internacional e das finanças, bem como uma extensa intervenção estatal para promover tais internacionalizações, seja através de políticas industriais domésticas e políticas sociais, incluindo empresas estatais de grande porte para sustentar a provisão de uma força de trabalho saudável, educada e produtiva.

Mas há também problemas ao definir o neoliberalismo pela negativa, como um não keynesianismo; o mais gritante é o fato de o neoliberalismo estar agora na sua quinta década, atravessando, portanto, um período mais longo do que o período keynesiano. Assim, o neoliberalismo precisa ser definido nos seus próprios termos. Dessa maneira, lições podem ser extraídas do período keynesiano. Aqui pode-se recordar que, embora desigual, a economia se caracterizava pelo que se poderia designar como os cinco “altos”, que se apoiavam e se condicionavam mutuamente. São eles: alto investimento, alta produtividade, altos salários, emprego elevado e gasto social também elevado. E, como já mencionado, estes foram resultado de uma reorganização econômica, o que denomino reprodução econômica e/ou transformação, através das corporações multinacionais (MNC), da internacionalização e da intervenção estatal. São as diferenças no agenciamento dessa reestruturação econômica — à qual eu acrescentarei em breve a reestruturação social —, que definem um período, uma era, uma fase do capitalismo em oposição à outra, juntamente com a forma pela qual os lucros são gerados e apropriados pelos capitalistas.

Inicialmente, por exemplo, aquilo que se poderia chamar capitalismo concorrencial ocorria principalmente através da extensão do trabalho e da pressão com vistas à redução dos salários e das condições de vida. No capitalismo monopolista, a dinâmica se dava com base num sistema manufatureiro, capaz de promover aumento da produtividade e melhorias nos padrões de vida daqueles envolvidos. Mas quais são as principais ou, mais exatamente, as distintas formas de agenciamento de reprodução econômica e social que caracterizam o capitalismo contemporâneo e quem são seus principais beneficiários?

A resposta é relativamente simples, e entrou em pauta especialmente na sequência da Crise Financeira Global. Trata-se das finanças. Sem dúvida, mais do que qualquer outra coisa, o neoliberalismo tem sido caracterizado pelo poder insidioso, crescente e vertiginoso das finanças. Essa progressão tem sido bem captada no crescimento explosivo da noção de financeirização durante a última década, especialmente através da literatura acadêmica, que conceituou e mapeou empiricamente a crescente presença e influência das finanças em tantas dimensões das nossas vidas, desde os honorários médicos por ocasião de um nascimento, até às aposentadorias que perduram até a nossa morte; de fato, existe uma extraordinária literatura sobre aquilo que se convencionou chamar financeirização da vida cotidiana, sobretudo com os salários da classe trabalhadora e as contribuições à seguridade social sendo também incorporadas à financeirização através de hipotecas, cartões de crédito etc. Talvez o índice mais simples e mais importante de financeirização seja a expansão dos ativos financeiros nas últimas três décadas três vezes maior que a do PIB mundial, com a correspondente proliferação dos tipos e aplicações em ativos financeiros.

Se produzíssemos um carro, uma mesa ou mesmo um celular, empregando três vezes mais insumos que no passado, isto seria a evidência incontestável de que estaríamos andando tecnologicamente para trás. Entretanto, o fato de o peso da finança ser três vezes maior é motivo de celebração, especialmente por parte do 1% que constitui a nata dos seus beneficiários.

Esse entusiasmo acontece apesar de a financeirização estar identificada com investimentos especulativos em ativos financeiros de curtíssimo prazo, em vez de investimentos de longo prazo, que aumentam a produtividade; com uma desigualdade crescente; com o peso de uma influência política comprometida com austeridade para preservar o valor dos ativos financeiros. Tudo isso termina conduzindo ao que denominei vulnerabilidades variadas, isto é, uma maior susceptibilidade a mudanças bruscas nas perspectivas econômicas e sociais. Isto se tornou mais evidente a partir da Crise Financeira Global, sem que surgisse nenhuma solução exceto as fúteis tentativas de salvar e apoiar bancos privados (literal e diretamente através de transferências e até nacionalizações temporárias, além de quantitative easing, disponibilizando aos bancos recursos ilimitados a taxas de juro ínfimas). Cabe questionar por que os bancos deveriam ser tão apoiados na esperança de estimular a economia, quando tais fundos poderiam ser utilizados para financiar diretamente o investimento e a provisão públicos, tal como aconteceu durante o boom do pós-guerra. Pode-se chamar isso de socialismo para os banqueiros e os seus grandes clientes, e de capitalismo para o resto de nós.

Uma vez definido em termos gerais o papel da financeirização dentro do capitalismo contemporâneo, é possível vinculá-lo ao papel de liderança que esta exerce na reprodução da economia, mais recentemente nas formas como as infraestruturas econômicas e sociais estão a ser financiadas e ofertadas, e na privatização dissimulada da provisão pública, nos lugares onde isto ainda não se deu diretamente via desnacionalizações. As contradições envolvidas nestes desenvolvimentos são espantosas, não apenas por estarem relacionadas às diversas vulnerabilidades antes mencionadas, em si mesmas um resultado de que as finanças têm todas as facas e todos os queijos na mão.

Pois, por um lado, dizem-nos que o mercado funciona bem (ainda que tenhamos a inevitável Crise Financeira Global como prova do contrário) e muito melhor do que o Estado. Contudo, também nos dizem que é preciso utilizar os recursos do Estado para financiar as finanças privadas, de modo a permitir o capital privado fornecer e gerir os nossos serviços públicos e todo o resto (os recursos do Estado são, assim, utilizados com o objetivo ideológico de nos convencer da superioridade do mercado!). Por outro lado, teoricamente o capitalismo nunca se deu tão bem em quase todos e em cada um dos aspectos que deveriam comprovar o seu sucesso. A Guerra Fria foi ganha, o neoliberalismo triunfou, o equilíbrio da luta de classes mudou enormemente a seu favor com o declínio da força e da organização da classe trabalhadora (em sindicatos e outros). Sem falar no que veio depois: o enfraquecimento da luta anti-imperialista com o neocolonialismo; a disponibilidade sem precedentes de novas tecnologias; a moderação nos salários econômicos e sociais; a austeridade mais ou menos “on demand”, pronta para ser posta em prática sempre que necessário; e os aumentos expressivos da força de trabalho global, sobretudo através do direcionamento irrefutável da China no rumo do desenvolvimento capitalista.

De fato, o capitalismo fez tudo à sua maneira — o que não o impediu de vivenciar a maior e mais insolúvel crise de que se tenha memória. E isso se deu precisamente por causa da financeirização. No Reino Unido, por exemplo, o investimento em água, sob o que é agora principalmente uma privatização financeirizada, significa que à medida que a água flui no sentido das nossas torneiras, cerca de 30% das receitas oriundas do pagamento desse serviço fluem no sentido oposto, para holdings organizadas em escala global e registradas nas Ilhas Cayman ou similares. Enquanto isso, suas ações são agora negociadas com base no direito mítico de não vir a poluir no futuro, uma vez que se abre um mercado para a especulação com créditos de carbono.

Este domínio das finanças na economia é ainda mais evidente nos desdobramentos relacionados ao controle das corporações. Tem sido demonstrado que apenas algumas centenas de empresas multinacionais, através da sua própria posse de ativos e do controle de redes interligadas entre si, gerem a economia mundial. Destas, dois terços são empresas financeiras. No mais das vezes estão também amplamente envolvidas com o Estado, sendo a China destaque nesse aspecto, ainda que o Estado chinês continue a deter um controle considerável sobre a utilização das finanças (direcionando-as para o investimento e não para a especulação). Aquilo que vemos atualmente, de forma desigual e instável, mas numa escala crescente, são tentativas de expansão coordenada através da troika do capital produtivo, do capital financeiro e do Estado, muitas vezes com o setor de infraestrutura no primeiro plano do processo.

Como já apontado, nas últimas duas décadas desenvolveu-se uma literatura vasta sobre o tema da financeirização, geralmente por iniciativa de estudiosos progressistas. O seu principal objetivo é argumentar que a financeirização depende da obtenção do máximo de lucros o mais rapidamente possível, sem levar em conta considerações mais amplas e de longo prazo. Investimentos financeiros especulativos deslocam os investimentos de longo prazo na capacidade produtiva. Como resultado, existem legiões de estudos mostrando que mais finança significa um desempenho mais fraco em termos de investimento, produtividade, crescimento, luta contra a desigualdade, gastos sociais e assim por diante. Não admira, pois, que os cinco “altos” tenham dado predominantemente lugar aos cinco “baixos”.

Mas o alcance e o impacto da financeirização não se restringem exclusivamente ao setor privado. Tal como mencionado, a privatização das empresas estatais tem estado em primeiro plano, mas também o tem sido a financeirização mais geral da provisão estatal ou o que anteriormente designei em parte como reprodução social.

A questão da moradia no Reino Unido serve de ilustração. Sua oferta registrou um déficit crônico em razão da prioridade dada à propriedade — isso começou com a privatização de uma parcela considerável da moradia social (em nível local), que foi vendida aos seus inquilinos sob o governo da Sra. Thatcher, e continuou através da financeirização das hipotecas da maior parte das propriedades. As consequências da financeirização da moradia se tornaram evidentes nos Estados Unidos, com o desencadeamento da Crise Financeira Global através do colapso das hipotecas subprime. No Reino Unido, além disso, em lugar da provisão pública de moradia social de boa qualidade para aluguel, o que se viu, na crise, foi o auxílio emergencial aos bancos, autorizados a contrair empréstimos a taxas de juro ínfimas, sem que isto servisse para financiar a oferta de moradia. Por que utilizar recursos públicos para salvar a Northern Rock — no passado, uma Sociedade Hipotecária sem fins lucrativos — em vez de aplicá-los diretamente na construção de habitação social de boa qualidade? Na verdade, a moradia social foi reduzida, levando a uma expansão sem precedentes da oferta privada de aluguel, e contribuindo, assim, para que mais gente acabasse tendo de viver em moradias precárias. Com isso, o percentual de pessoas em situação de pobreza habitacional no Reino Unido aumentou de 7,3% em 2012 para 12,5% em 2015, alcançando um em cada oito habitantes, sendo que um em cada sete vive em áreas urbanas.

A consequência perversa dessa situação foi a explosão do auxílio moradia que ampliou, de imediato, os ganhos dos proprietários. Mirando ainda o caso do Reino Unido, em 2009, por exemplo, cerca de dois terços (64%) do gasto público em habitação tomaram a forma de subsídios à moradia (na forma de auxílio às famílias) e 36% destinaram-se à construção de novas habitações. Em 2015, o auxílio moradia teria participação ainda mais elevada. Naquele ano, 85% de todo o gasto público com habitação foram para o auxílio aluguel e somente 15% para a construção de novas moradias. Em outras palavras, a fim de apoiar o aluguel privado ou, mais precisamente, manter a renda de propriedade, o governo tem canalizado dinheiro para subsidiar rendas privadas, em vez de construir casas. Uma história semelhante teve lugar na maior parte da Europa, com a moradia social tendo sido prejudicada em favor do apoio à propriedade privada, que se mantém inacessível para muitos; o aluguel privado tornou-se a única opção ao alcance da maioria.

O leitor pode imaginar que haja restrições em matéria de planejamento, dificultando a construção de moradias, ao contrário do que se passa com a especulação em terrenos urbanos pelas construtoras e outras empresas, que lucram mais com o aumento do valor da propriedade do que propriamente fomentando sua construção — e isso apesar das denúncias de oferta insuficiente de terrenos para a construção de habitações. Saiba o leitor que metade das terras públicas do Reino Unido (o equivalente a 10% da totalidade do solo britânico), foi vendida a interesses privados! São terras que valem “algo em torno de 400 bilhões de libras a preços de hoje… Isso supera o valor de todas as privatizações britânicas mais conhecidas, e tantas vezes amargamente contestadas” — o que inclui, claro, todo o setor de energia, a maioria dos transportes, correio, telecomunicações etc. Sem contar que grande parte dos serviços de saúde, entre outros, também foi amplamente privatizada e mercantilizada.

Mas deixem-me abordar a questão da terra num contexto diferente, analisando a questão dos alimentos e da sua financeirização. Aqui pretendo enfatizar a economia política do excesso, que se assemelha à lógica da especulação financeira. Primeiro, saliente-se que a especulação financeira nem sempre depende de não se fazer nada; pode significar, pelo contrário, que se faz demasiado: é quando se financia excessivamente infraestrutura para atender aos interesses do setor financeiro ou, ainda, quando tem lugar a plena financeirização dos mercados de energia, o que leva à sua expansão e utilização excessivas. No caso dos alimentos, para além da especulação no mercado de futuros (que impacta distintos cultivos bem como outros mercados especulativos — como, ainda aqui, o da energia), também se obtêm ganhos especulativos em antecipação à expansão da produção tanto quanto possível. Tais ganhos são proporcionados tanto a partir do desflorestamento e da apropriação ilegal da terra, quanto até mesmo pelo crescente processamento de alimentos sem comprometimento com a qualidade — adicionam-se tanto quanto possível gordura, açúcar, sal, ar e água nos alimentos, paga-se o menor salário possível e se emprega o menor número possível de trabalhadores, a fim de, assim, aumentar os lucros a curto prazo, independentemente das consequências a longo prazo. Consequentemente, embora a compulsão pela expansão lucrativa da produção de alimentos não tenha origem no neoliberalismo, o processo de financeirização tem por efeito intensificar os níveis de produção de alimentos. E o que é produzido deve ser consumido.

Assim, até mesmo uma análise informal dos meios de comunicação social e de massas — sem falar nas pesquisas acadêmicas e nos alertas das principais organizações internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS) ou outras organizações e gestores nacionais — deixa poucas dúvidas de que enfrentamos uma epidemia de obesidade em escala global. Nas últimas três décadas, a obesidade duplicou, com o percentual daqueles nessa condição tendo alcançado dois dígitos e ameaçando ultrapassar o número dos que sofrem de subnutrição também em escala global. Nas Américas, onde se registram os percentuais mais elevados, essa condição supera um quarto da população (e um terço nos EUA, ponto ao qual voltarei mais à frente). Mais inquietante, porém, é a impressão de que o desenvolvimento econômico pode ter a obesidade como uma das suas primeiras e rápidas consequências, sendo a experiência da China particularmente reveladora nesse quesito: 10% da sua população sofrem agora de diabetes, percentual esse que é o dobro do observado no Reino Unido, ainda que o diabetes tipo 2 (consequência, principalmente, do excesso de peso, por força do consumo de açúcar) fosse desconhecido na China duas décadas atrás. A má alimentação é hoje a principal causa de mortalidade em escala mundial, causando 11 milhões de mortes ou 22% do total global em 2017 (GBD 2017 Diet Collaborators, 2019). Repetindo, no mundo de hoje a má nutrição se deve mais ao excesso do que à falta de alimentos. E, como é sabido, a própria obesidade, juntamente com as condições médicas que lhe são associadas, é especialmente prejudicial para aqueles afetados pela covid-19.

Partindo dessa ótica, gostaria de destacar um aspecto diferente do neoliberalismo, já mencionado anteriormente. Trata-se da extrema variação de seus efeitos conforme os diferentes setores e populações, expostos a volatilidades e vulnerabilidades. Não se pode afirmar que o neoliberalismo tenha causado a covid-19, mas ele é cúmplice desse acidente que já estava prestes a acontecer de um jeito ou de outro. Em primeiro lugar, considerando os cinco critérios ditos “baixos”, e as pressões competitivas decorrentes da industrialização da produção alimentar, há cada vez mais possibilidades de contaminação através de processos industriais e naturais que se julgavam supostamente separados. Em segundo lugar, as pessoas que foram deslocadas de empregos regulares ou adequadamente remunerados procuram cada vez mais explorar outras oportunidades para a sua subsistência. Um dos resultados são os mercados de produtos in natura e feiras livres (wet markets) em que a venda de animais selvagens para alimentação ilustra, paradoxalmente, o processo pelo qual a industrialização dos alimentos tem exposto cada vez mais o sistema alimentar a ameaças externas ao setor industrial. Isto se dá, de um lado, através das condutas de industrialização do que é selvagem, e, de outro, pela intensificação da comercialização do mundo animal selvagem fora da órbita imediatamente industrial.

Isto não é, no entanto, apenas a expressão de um descontrole das forças econômicas. Apesar da ideologia de não intervenção e da confiança no mercado e na liberdade individual, a intervenção estatal expandiu-se consideravelmente sob o neoliberalismo. O que mudou é a quem serve e como essa intervenção tem lugar. Um exemplo interessante é dado pelo serviço ferroviário britânico, onde a desnacionalização se destinava a eliminar a interferência e o subsídio do Estado. Em vez disso, com a privatização, o resultado foi tão desastroso em termos de confiabilidade e segurança que o Estado teve de renacionalizar as estradas de ferro, e, mesmo nos casos em que isso não aconteceu, viu-se obrigado a regular preços e serviços de forma muito mais intensa do que fazia sob a gestão nacionalizada. Tudo isso com o objetivo de garantir lucros às empresas internacionais de infraestrutura financeirizadas.

Mas, de um modo mais geral, o controle econômico e político exercido sob o neoliberalismo foi primeiramente marcado por uma fase não tanto de recuo do Estado, mas sim de recuo da participação popular na tomada de decisões políticas, especialmente no que diz respeito à presença dos sindicatos e outras organizações progressistas. Na sequência, teve lugar uma fase de expansão de novos mecanismos de controle, com predominância de interesses financeiros e de consultores, fase essa marcada por uma centralização extrema da tomada de decisão autoritária no seio do Estado, embora teoricamente se falasse o tempo todo em descentralização e delegação de responsabilidades. Na prática, os níveis subnacionais de governo detinham uma capacidade limitada, o que os impedia de cumprirem com suas responsabilidades, dadas as restrições impostas aos recursos disponíveis.

Eu gostaria de abordar esta questão de um ângulo distinto, voltando uma vez mais à era de ouro do keynesianismo. Embora essa não fosse uma tendência mundial, naquela época, durante o boom do pós-guerra, quando o neoliberalismo não se tornara dominante, a escolha do caminho a seguir parecia contrapor reforma versus revolução. O desafio político estava ou na expansão e consolidação do Estado social e do intervencionismo, das indústrias nacionalizadas, da política industrial etc., representando um capitalismo sustentável, ou na formulação de estratégias e táticas em torno das concessões dentro do próprio regime capitalista, que visassem a construir um movimento socialista que o superasse. Não duvido que se subestimassem não apenas a natureza indigente dos socialismos realmente existentes, mas também o poder e alcance da hegemonia dos Estados Unidos (mesmo onde isso não se dava de forma manifesta e militarmente imperialista), e o alcance global do capitalismo. Tampouco se deve ignorar, por outro lado, que essas realidades eram ferozmente contestadas de tempos em tempos, já que lutas também existiam para enfrentar a extensão, direção e formas da intervenção estatal.

Essa situação é bem ilustrada pelo destino da África do Sul no pós-apartheid, em muitos aspectos a última grande luta entre a reforma e a revolução que resultou do boom do pós-guerra e do acerto de contas com o colonialismo. Tudo isto levanta uma série de questões, sobretudo à luz do que costumo designar como o último lance de dados revolucionários do século XX. A África do Sul parecia ser, na época, um bilhete premiado: luta de libertação colonial; solidariedade internacional; tríplice aliança entre sindicatos, um amplo partido democrático — a ANC — e o Partido Comunista; e um movimento democrático de massas interno. Que isto viria a dissolver-se na farsa Zuma, e de modo tão rápido, é algo que precisa ser explicado se quisermos tirar lições a partir disso.

Os últimos vinte anos, em particular, foram marcados por um processo de globalização e financeirização da economia sul-africana. Conglomerados domésticos extremamente poderosos — as chamadas casas de mineração —, foram desagregados e integrados em operações multinacionais organizadas em escala global, apesar de manterem a condição de monopólios em setores constitutivos da economia nacional. Do mesmo modo, a economia sul-africana foi financeirizada, sendo o seu setor financeiro o que registrou o crescimento mais rápido de todos, correspondendo agora a algo como 20% do PIB. O seu caráter parasitário é assinalado pelo fato de não ter gerado nada para além de aproximadamente metade dos níveis de investimento necessários para promover o desenvolvimento econômico e social. E, ainda pior, a fuga ilegal de capitais que caracterizou o período do apartheid atingiu magnitude ainda maior no período pós-apartheid. Deixada sem vigilância, asfixiou também a economia, privando-a dos recursos necessários para gerar crescimento e desenvolvimento. O montante dos fundos desviados da África do Sul, em grande parte ilegalmente, supera o gasto com financiamento ao investimento.

Embora não haja tempo para entrar em detalhe sobre o caso da África do Sul, o impressionante é a velocidade e a extensão com que o neoliberalismo passa a assumir o comando. E o faz centralizando o poder, fazendo recuar formas democráticas de controle e participação, criando portas giratórias entre o poder econômico e político e o pessoal, abrindo caminho à corrupção, e tornando a economia e a sociedade susceptíveis a viradas populistas à esquerda, e ainda mais frequentemente à direita, no caso em razão da força de quem controla os meios de comunicação e da ausência de formas estabelecidas de participação plena e democrática na tomada de decisões.

Eis que o mundo, em junho de 2020, se vê às voltas com a pandemia do coronavírus. O seu impacto, e as respostas que suscitou, não tiveram precedentes e foram diversos, entre os países e no interior de cada um deles. Tiveram seu contraponto na expansão do que se escreveu no mundo acadêmico e para o público em geral, no que se refere a causas e consequências, alternativas e lições. No campo dos comentários progressistas, surgiu uma oportunidade ideal para vastas doses de “eu bem que avisei”: quaisquer que tenham sido as interpretações anteriormente feitas a respeito de uma era de austeridade globalizada, neoliberal, financeirizada, anti-igualitária e multissetorializada, a pandemia pode ser vista como seu resultado inevitável, trazendo consigo ainda mais opressão, empobrecimento e exploração. Quaisquer que tenham sido as estruturas e processos responsáveis pelas disfunções do neoliberalismo, a pandemia os intensificou.

Consequentemente, é preciso, primeiro, enquadrar a pandemia no contexto que a precedeu — globalização, neoliberalismo etc. — e também enfatizar nas formas frequentemente imprevisíveis, e politicamente determinadas, com que os fenômenos presentes nesse contexto (relações, estruturas, protagonismos e processos) não só continuaram como também sofreram os mais variados tipos de interrupção.

Em segundo lugar, essa interrupção variada é uma consequência de um traço persistente no Estado neoliberal contemporâneo: a saber, tanto um grau elevado de governança centralizada e intervencionista (que se exerce de modo desigual), quanto sua forte suscetibilidade, e mesmo sua dependência, face ao populismo político (e a maiores ou menores concessões a um revigoramento da ação estatal por intermédio da atribuição de competências administrativas aos níveis subnacionais). O lema do governo britânico foi o de que iria fazer tudo o que fosse necessário para vencer o vírus (mesmo com atrasos no lockdown, nos usos de equipamentos de proteção e nos testes), e, com efeito, as medidas tomadas foram extraordinárias, e muitas vezes recomendáveis, em termos de volume de gastos e de ajuda aos trabalhadores. De modo quase inevitável, os setores que mais sofreram com a falta de medidas durante a pandemia foram aqueles que não estavam realmente incluídos no horizonte de ação das instituições centralizadas de governança, que não chegam às camadas mais baixas da população. Destacam-se aí os que vivem (ou trabalham) nos asilos de idosos, que foram alvo de políticas de austeridade residual e terceirizada por muitos anos, bem longe dos trabalhadores da linha de frente dos serviços à população, que devem ter ficado surpresos ao contar com imediata simpatia e apoio do público (ainda que sem dispor de proteções adequadas).

Em terceiro lugar, como já mencionado, ainda que muito diversamente entre os países e dentro de cada um deles, a interrupção da “normalidade” em favor de todo tipo de medidas necessárias proporcionou lições salutares quanto ao grau de poder que o Estado continua a ter em mãos e à sua capacidade de usá-lo para objetivos específicos. Isto inclui o monitoramento e os testes para conter a disseminação do vírus, ao lado de medidas de distanciamento social, de expansão e diversificação maciça de recursos de saúde para tratar de pacientes graves, e de medidas econômicas e sociais em favor dos que foram privados de seus meios de existência, estivessem ou não contaminados pelo vírus. Tudo isso se impôs diante da interrupção mais importante de todas, a do discurso dos ideólogos neoliberais, de quem não se ouviu, pelo menos no começo, o menor murmúrio de protesto contra a ressurreição maciça do Estado intervencionista. Por certo, a tese segundo a qual o lockdown poderia causar mais mortes do que o vírus foi amplamente ventilada e ganhou ímpeto conforme a pandemia arrefecesse aqui e ali. Talvez o pior caso, superando o de Trump, que soltava disparates para esquecê-los em seguida, seja o do Brasil, que neste momento tem o raro privilégio de ter superado o Reino Unido na severidade da pandemia, por motivos que são e eram inteiramente visíveis com antecedência.

Em quarto lugar, esta é a segunda crise de grandes dimensões em pouco mais de uma década. Depois de não mais do que um sopro temporário de reaquecimento para manter a atividade econômica, a Crise Financeira Global deu lugar a um período persistente de austeridade no Reino Unido e em outros países, com uma correspondente limitação no progresso econômico e social; obedeceu-se ao imperativo de recuperar e promover o setor financeiro. A resposta à pandemia foi claramente diversa, mesmo se acompanhada de todos os clichês a respeito da necessidade de medidas de austeridade no futuro (alguém vai ter de pagar pelas crescentes dívidas do governo), e mesmo se as perspectivas para os países em desenvolvimento se mostrem especialmente sombrias. Desse ângulo, as lições da Crise Financeira Global podem não ter sido aprendidas, mas é possível esperar que as futuras lições da pandemia possam ser mais drásticas e generalizadas, especialmente se resultarem daquilo que se empreendeu durante a própria crise. Vale repetir, em especial, que o colapso causado pela pandemia levou a uma intervenção maciça no sentido de salvar vidas e gerir, ainda que com sucesso desigual, a reprodução social e econômica, por meio de intervenções detalhadas em cada um e mais ou menos em todos os setores. O contraste pode ser estabelecido não apenas com o que ocorreu na Crise Financeira Global mas também com as crises ambientais que (quase literalmente em fogo lento) são potencialmente uma ameaça ainda mais séria em termos de perdas de vidas e de bem-estar, e que crucialmente exigem ações de cunho progressista.

Políticas no futuro pós-pandemia, e movimentos políticos e similares para sustentá-las, necessitam incidir sobre alimentação, saúde, educação, moradia, transporte, vestimenta e muito mais. Em certo sentido, é nessa direção que a acima mencionada Conferência da Casa Branca Sobre Alimentos, Nutrição e Saúde (Mande et al, 2020) já está se mobilizando, embora a contragosto. Vale fazer uma citação mais extensa, para dar uma ideia das suas percepções e das respostas que suscitou, mesmo ao custo de reforçar alguns pontos já apresentados, e também para destacar que a situação em que se encontram os Estados Unidos será a do resto do mundo, a menos que se verifiquem mudanças fundamentais na economia global e na de cada país isoladamente.

A má qualidade da alimentação é a principal causa dos problemas de saúde nos EUA, sendo responsável por mais de meio milhão de mortes por ano. O predomínio da obesidade subiu rapidamente, de um patamar de 15% dos adultos e 5,5% das crianças em 1980, para 39,8% dos adultos e 18,5% das crianças em 2016. Aproximadamente três em cada quatro americanos (71,6%) estão acima do peso ou têm obesidade. Mais de 100 milhões de americanos — perto de metade de todos os adultos dos EUA — sofrem de diabetes ou pré-diabetes, enquanto se prevê que duas em cada três crianças nascidas depois de 2000 desenvolverão diabetes do tipo 2. Doenças cardiovasculares atingem 122 milhões de pessoas e causam cerca de 840 mil mortes por ano, ao passo que os índices de doença coronariana e de cânceres relacionados à obesidade crescem entre os adultos. E, pela primeira vez na história dos Estados Unidos, a expectativa de vida está em declínio, com quedas em três anos consecutivos, causadas em parte por aumentos significativos de mortes na meia-idade por doenças ligadas à alimentação.

Se estes são os efeitos, vejam-se agora seus custos econômicos.

Os custos econômicos dessa nova crise nacional na nutrição se mostram assustadores. O total dos gastos de saúde nos Estados Unidos saiu de 6,9% do PIB (GNP) em 1970 para 17,9% em 2017. Esses crescentes custos médicos, em que predominam os originados por condições crônicas ligadas à má nutrição, pressionam de forma esmagadora o orçamento público e o ritmo da atividade econômica privada. O total dos gastos diretos com saúde e dos custos econômicos indiretos das doenças cardiovasculares está estimado em US$ 316 bilhões anuais; os do diabetes, US$ 327 bilhões, e o de todas as doenças relacionadas à obesidade sobe a US$ 1,72 trilhões anuais. Essas quantias ultrapassam de longe os orçamentos anuais de muitos instâncias federais, incluindo os do Departamento da Agricultura (US$ 140 bilhões), Educação (US$ 72 bilhões), Segurança Nacional (US$ 52 bilhões), e Justiça (US$ 28 bilhões), assim como os orçamentos do Instituto Nacional de Saúde (US$ 39 bilhões), do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (US$ 11 bilhões), da Agência de Proteção ao Meio Ambiente (US$ 5,7 bilhões), e da Administração de Alimentos e Remédios (FDA, Food and Drug Administration), que é também de US$ 5,7 bilhões… Em suma, governos, empresas, agricultores e indivíduos carregam, todos, o fardo de nosso sistema alimentar — a um preço colossal. Globalmente, as externalidades de nosso sistema alimentar estão estimadas a um total de US$ 12 trilhões, quantia maior do que toda a renda do sistema de alimentação.

Resumindo, se o relatório feito cinquenta anos atrás, com suas 1.650 recomendações, foi capaz de transformar o problema da desnutrição num de superalimentação, precisamos de algo semelhante para cuidar dos problemas atuais.

O que o neoliberalismo financeirizado tem a oferecer? Uma reportagem nas páginas de negócios traz uma sugestão para investidores — a “luta global contra a obesidade” é saudada como um “campo para megainvestimentos”. Segundo o Bank of America, a consultora Merrill Lynch considera que a epidemia de obesidade vai “abrir oportunidades para quem vender remédios, programas de emagrecimento ou alimentos saudáveis para o governo”. Ou, como expresso na manchete, “Surfe na onda da obesidade e engorde sua carteira”. Em outras palavras, especule e lucre com alimentos e com as doenças que eles produzem.

Quais são as alternativas? Termino com minha citação favorita número 1, que não é de alguém que poderia ser desconsiderado como um esquerdista ou ambientalista maluco: Sir Josiah Stamp, que era a pessoa mais rica da Grã-Bretanha quando morreu num bombardeio em Londres durante a Segunda Guerra (num ato de desafio, ele se recusava a ficar em abrigos antiaéreos). Ele era comissário da defesa de Londres durante a Blitz, fundou a ICI, a maior empresa de produtos químicos do Reino Unido, fez parte do Conselho do Banco Central da Inglaterra (Bank of England, B of E) e presidiu o Inland Revenue, o órgão de arrecadação de impostos do Reino Unido. Seu filho mais velho foi vitimado pelo mesmo ataque a bomba, o que tornou impossível saber qual dos dois tinha morrido antes. Com isso, os familiares sobreviventes tiveram de pagar duas vezes o imposto sobre herança — a vida tem dessas ironias compensadoras. Mas aqui vai o que ele tinha a dizer:

O sistema bancário foi concebido na iniquidade e nasceu no pecado. Os banqueiros herdaram o mundo. Se tirarmos o mundo deles, mas lhes deixarmos o poder de criar dinheiro, num traço de caneta eles criarão depósitos suficientes para comprar o mundo novamente. Se, ao contrário, tirarmos deles esse poder, e se todas as grandes fortunas como a minha desaparecerem com eles, este seria um mundo melhor e mais feliz para se viver. Mas, se vocês quiserem continuar a ser escravos dos banqueiros e pagar pelos custos de sua própria escravidão, deixem que eles continuem a criar dinheiro.

Eu não poderia escolher palavras melhores, ainda que para sobrepujar o sistema financeiro, impondo-lhe as políticas e controles que realmente importam, seja apenas o primeiro passo para mudar o mundo, colocando a reprodução econômica e social sob controle popular, de modo a servir as pessoas, e não o lucro ou a especulação.