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fanon mbembe você eu

Documentação do processo de construção das ilustrações da série In The Moonlight Black Boys Look Blue, Rafael RG, 2021.

Mais do que obra acabada, Fanon nos deixou como legado uma teia que ele mesmo se esforçou por tecer durante uma existência breve, arriscada e, finalmente, inaudita. Sendo tela transbordante, o texto fanoniano apresentará à crítica uma série de dificuldades que seriam também uma oportunidade — a de o poder reescrever e reinterpretar incessantemente, sem jamais poder se apropriar dele em verdade e, menos ainda, esgotar.

(A universalidade de Frantz Fanon, A. Mbembe)

É quase impossível sair ileso de uma leitura de Frantz Fanon. É difícil ler sem ser interpelado pela sua voz, sua escrita, seu ritmo, sua língua, suas sonoridades e ressonâncias vocais, seus espasmos, suas contrações e, acima de tudo, sua respiração.

(Políticas da inimizade, A. Mbembe)

É tão só questão do que é iminente, em germe; do que começa, do que nasce, se abre, se cria, surge sob os nossos pés, neste aqui e agora, mesmo para além das esperanças humanas, na urgência, o todo da vida e a grande extensão do próprio mundo revelado como tal, carne aberta e prometida ao imprevisto do encontro.

(A universalidade de Frantz Fanon, A. Mbembe)

1.

Onde termina Fanon e começa Mbembe? Poderíamos fazer a engenharia reversa de uma teoria. Há como riscar linhas que mostrem duas teorias distintas e uma interseção nesse caso? Imaginar sempre uma teoria onde há filosofia é uma tentação. Poderíamos fazer a engenharia reversa de um desejo.

2.

Enquanto preparo uma conferência sobre raça como estrutura simultaneamente imaginária e real “na filosofia de Mbembe”, lembro que é preciso separar isso de Fanon. Estou ensinando isso e não aquilo. Quem me ouve deve assimilar esse conteúdo e dizer “eu aprendi o que Mbembe pensa”. Logo vem outra preocupação: como fazer que fique claro o que há de explicação, o que não é uma outra coisa, uma presença minha e que não sei definir como opera? Não gostaria que alguém dissesse que Mbembe acredita ou afirma uma coisa que definitivamente teve meu dedo impuro.

Não é questão de interpretação. Eu me preocupo e não me preocupo tanto assim com isso quando faço com outras pessoas — posso declarar minhas intenções e meu método, justificar filosoficamente o que estou fazendo e confiar na generosidade alheia. Mas, agora, tudo parece diferente, uma responsabilidade exerce um peso inédito. Para além do conceito de necropolítica, circula tão pouco sobre Mbembe, sobre o que poderíamos chamar de “filosofia de Mbembe”. Não é hora de fazer graça e me meter no meio. Então, é preciso separar três pessoas, três unidades autorais bem comportadas. Três negros bem comportados. A voz que me coloca tudo isso não percebe que é tarde demais. Ela esteve falando um tanto sozinha. O negro bem comportado é uma solidão terrível no meio da multidão, máscara branca rodeada de juízos facilmente excitáveis. Isso foi há meses.

Ainda assim: onde termina Fanon e começa Mbembe? Mas, também: onde termina Mbembe e eu começo? Onde eu termino e você começa? É certo que essas perguntas são induzidas pelos contrassensos de uma metafísica autoral, mas podemos encontrar outros caminhos.

Nota: Os números de página nas citações dos livros de Mbembe são das traduções para o português e para o inglês (no caso de On the Postcolony), ainda que as traduções apresentadas aqui venham das edições francesas desses livros. O único texto de Fanon citado aqui é Pele negra, máscaras brancas.

3.

“Sobre raça (ou racismo), nós podemos falar apenas em uma linguagem fatalmente imperfeita, cinzenta, diria até inadequada” (Crítica da razão negra, p. 27). Nós — figura que aparece talvez por um hábito de escrita. Mas há realmente um nós que permite verificar essa declaração, uma comunidade.

4.

Não é segredo que, em sua grande maioria, os empreendimentos filosóficos são movidos por um desejo de segurança epistêmica. Os problemas emergem e é preciso remetê-los cuidadosamente a um campo discursivo onde possam encontrar a calmaria de uma manhã sem preocupações no início das férias. Wittgenstein dizia que os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias — quando ela volta, é a filosofia que se retira. “Linguagem”, nesse caso, significava a operação cotidiana da linguagem. No curso normal dos dias, algo deixa de correr como sempre e de exercer seu comando, uma relação de estranheza se forma, uma perturbação na superfície aparece e logo ganha o caráter de profundeza. Assim nascem os problemas filosóficos.

— Digam o que é a Justiça de uma vez por todas!

— Por favor, Sócrates, do que você está falando? Sabemos das coisas justas, elas estão todas aí, ao seu redor, pelo menos as que conhecemos. O que mais você pode querer falando em Justiça? Estava tudo certo, por que você está mexendo com isso?

Há várias formas de insatisfação com o que nos é dado, com o que herdamos. Quero saber o que é justiça porque fui injustiçado. Quero poder dizer que a palavra “racismo” foi definida de uma vez por todas, porque a expressão “violência racial” também foi, e isso significa que chegamos a um consenso sobre o que, no fim das contas, é o referente de “raça”. Com isso, posso assegurar a reparação, a redenção, o futuro. Mas preciso construir meu castelo de palavras em terreno seguro. Mexemos demais no que estava sustentando as coisas até então e precisamos reelaborar o lugar da estabilidade. Demos o nome “ontologia” a esse empreendimento.

Tudo certo. Mas olho para cima e encontro apenas silêncio. “Existe, na Weltanschauung de um povo colonizado, uma impureza, uma tara que impugna qualquer explicação ontológica […] A ontologia, quando se admite de uma vez por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o negro já não precisa ser negro, mas precisa sê-lo diante do branco. Alguns teimarão em nos lembrar de que a situação tem duplo sentido. Respondemos que isso é falso. O negro não tem resistência ontológica aos olhos do branco” (Pele negra, máscaras brancas, p. 125). É possível falar em uma “ontologia da raça”? Talvez seja preciso esquecer a redenção pelo saber e procurar outros fins, outros meios. Uma linguagem cinzenta, entre uma coisa e outra. Uma máscara feita de máscaras e peles. Mas, ainda assim, justiça.

5.

Estaria mentindo se dissesse que não há um filósofo em mim que olha certos textos e pensa haver neles um excesso de subjetividade que interdita qualquer segurança discursiva — como posso argumentar, convencer, transmitir, falar como se estivesse de posse de um saber se encontro em cada curva escrita uma elaboração não apenas terrivelmente pessoal, mas uma experimentação sem garantias de sucesso?

Como se verifica a falta de “resistência ontológica” ou o desaparecimento da humanidade do rosto negro, por exemplo? Podemos dizer que Fanon estava certo disso porque era assim que experimentava o mundo a partir da situação na qual fora lançado, experiência que correspondia aos discursos que encerravam o corpo colonizado em um aglomerado de representações. Eis aí uma forma estranha de adequatio entre o experimentado e o dito. Mas não é disso que se trata.

6.

“Muitos negros não se reconhecerão nas linhas que virão a seguir. Muitos brancos tampouco” (Pele negra, p. 26), diz Fanon. Por quê? Talvez isto explique da melhor forma: “Por mais que me exponha ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem” (Pele negra, p. 22). Podemos dizer que o reconhecimento vem de se saber — um saber terrível — como algo que está fora da humanidade. Como se sabe algo assim? Talvez não se saiba e o verbo correto seja outro. Podemos falar em uma “certeza”, uma que vive ressurgindo, que se transmite por uma longa rede. De todo modo, que linguagem bem assegurada nos permite falar do objeto dessa certeza?

Cria-se a raça para arrancar fora um pedaço da espécie humana e dizemos que não há nada de biologicamente sabido que permita isso. Podemos dizer que aqueles que sabiam não sabiam realmente pois violaram os limites da biologia, confundindo doxa e episteme. Isso significaria que nada foi realmente arrancado. Tudo não passou de um engano. Por que então desejar “ser um homem entre outros homens” (Pele negra, p. 128)?

“Todas as pessoas negras são humanas” — temos aqui uma sentença confirmada empiricamente. Não por Fanon. Não por Mbembe. É por isso que devem colocar essa afirmação para fazer alguma outra coisa. Mais demanda e desespero que descrição. Entre Fanon e Mbembe, entre os dois e uma multidão incontável, algo se transmite como experiência. Algo aparece como objeto fora de mim, pertencente a outras pessoas. Uma linha divide quem está e o que não está de posse. Fanon estava certo disso e eu estou certo de que ele estava certo disso. Mbembe também. Você também.

7.

“Muitos negros não se reconhecerão nas linhas que virão a seguir.” Sabemos disso e pudemos confirmar muitas vezes. Podemos explicar esse não reconhecimento na segurança relativa do discurso psicanalítico ou mesmo recorrendo às ferramentas da crítica à ideologia. Sabemos que muitas pessoas não se identificam com certas imagens, não concordam com certos conteúdos representados, não tomam certos partidos. E podemos dizer que há uma dimensão corporal, sensível no texto de Fanon, que vem antes de tudo isso — precisamos de uma ideia daquilo que nos é comum, diz Mbembe, e é por isso que a leitura de Fanon produz certos efeitos: o que nos interpela, no texto, é “sua voz, sua escrita, seu ritmo, sua língua, suas sonoridades e ressonâncias vocais, seus espasmos, suas contrações e, acima de tudo, sua respiração” (Políticas da inimizade, p. 249).

Por outro lado, transmitir essa dimensão não significa transmitir conjunta e necessariamente todo o resto: a identificação, a concordância, a filiação política. O que tudo isso diz de uma possível verdade do texto? Uma angústia começa a devorar as entranhas da boa vontade.

Gostaria de poder encontrar a linguagem que me colocará além da dúvida. Mais que isso, gostaria de não precisar encontrá-la. Gostaria também de dizer “que se foda essa putaria racionalista sem sentido”, sem ser lançado de volta a um continente esvaziado de toda e qualquer razão. Gostaria que o branco — tão acostumado a expressar seus mais profundos delírios na forma da razão — nos desse um desconto, já que estamos tentando desfazer os estragos produzidos por esses mesmos delírios. O negro bem comportado é uma solidão terrível no meio da multidão, máscara branca rodeada de juízos facilmente excitáveis.

“Eis aqui os estilhaços recolhidos por um outro eu” (Pele negra, p. 126).

8.

“Todas as pessoas negras são humanas.” Seria estranho que fizéssemos essa afirmação representar um fato biológico/científico — em que situação isso faria sentido nessa altura das coisas? O branco diz isso frequentemente para escapar de uma acusação de racismo. Trata-se de outro jogo de linguagem. Pessoas negras dizem para reivindicar o que foi negado — como em “vidas negras importam”. Ainda outro jogo. Deste, não participam as pessoas que não se reconhecem em certa negatividade. As que participam (Fanon, Mbembe, eu, você e tantas outras pessoas) se entendem e, em certo sentido, percebem sua linguagem como estando em perfeita ordem — mas há um olhar que não vê essa ordem e não deseja vê-la. Diria que é para ele e por causa dele que um discurso começa assim: “Para nós, só é possível falar da raça (ou do racismo) numa linguagem fatalmente…”.

Há um mundo em que esse alerta seria estranho, supérfluo, talvez desprovido de sentido.

9.

A linguagem da fenomenologia falha porque o esquema corporal desaba para dar lugar a um esquema epidérmico racial e porque o sentido do mundo nos é dado do outro lado de uma linha. A do existencialismo falha porque a racialização produz uma essência e um enclausuramento no ser que interdita a existência e a transcendência. A da psicanálise falha porque não tem muito a dizer sobre o drama racial e o peso da melanina na vida psíquica. A dialética do reconhecimento não restitui a humanidade. Todas essas linguagens falam de um mundo outro ao qual o pleno acesso é interditado. Todas essas linguagens falam do humano. É necessário prosseguir de outra forma quando se escreve a partir de um enclausuramento na própria pele.

Mas não é por acaso que Fanon escolhe as linguagens que vemos aparecer em Pele negra: todas elas parecem poder dizer o que precisamos, apontam para os lugares que parecem ser aos que queremos chegar, mas falta sempre algo — essas linguagens foram construídas para dar conta do mundo do e para o branco. Conhecemos esse mundo e sabemos, de uma forma ou outra, como essas linguagens podem ter sucesso em dar conta dele, em encontrar sua fertilidade e pertinência nele. Gostaríamos de usá-las para outros fins.

Fanon junta todos os fracassos e os costura com a própria carne. Isso é, antes de tudo, a “experiência vivida do negro” que se manifesta no capítulo assim nomeado, onde vemos o autor ser lançado sempre de volta ao mesmo lugar, não importam os recursos conceituais e poéticos empregados, não importa o que ele pense ou diga ser a própria Negritude. Ali, vemos “os esforços desesperados de um negro que se empenha em descobrir o sentido da identidade negra” (Pele negra, p. 27), um corpo se debatendo furiosamente para, no fim, chorar. “Eu me dediquei neste estudo a abordar a miséria do negro. Tátil e afetivamente. Não quis ser objetivo. Aliás, a verdade é: não me foi possível ser objetivo.” (Pele negra, p. 101)

Mbembe também não quer ser plenamente objetivo — ele já sabe que isso não é possível. Ele também já não se encontra lutando na mesma espiral de busca pelo sentido de sua identidade, na mesma dialética frustrada e frustrante do reconhecimento. Já sabemos o que Fanon conseguiu com isso. Ainda assim, podemos chamar “legado” um ou mais fracassos a serem ressignificados — não para produzir um sucesso medido pela mesma régua que definiu “fracasso”, mas para levar a um outro jogo.

10.

Há uma busca por dar uma forma a um poder com o qual o sujeito racializado se confronta na pós-colônia, “mas uma forma que se conecta à tatilidade, à imaginação e à sensação” (Conversation with Isabel Hofmeyr, p. 184). Podemos dizer que, em seu desespero, Fanon também deu uma forma assim ao poder colonial. A violência colonial, diz Mbembe sobre a obra de Fanon, era apresentada em três dimensões: como instauradora, como organizadora da experiência e como fenomênica. Neste último caso, “atingia também o corpo do colonizado, provocando contraturas, enrijecimentos e dores musculares. Sua psique não foi poupada, já que a violência visava nem mais e nem menos que sua descerebração. São essas feridas, lesões e cortes que estriam o corpo e a consciência do colonizado que Fanon, na prática, tentou pensar e tratar” — era uma violência “experimentada pelo colonizado no nível dos músculos e do sangue” (Crítica, pp. 285–6).

Assim como outros autores africanos, Fanon teria introduzido Mbembe a “um mundo em que o poder é fundamentalmente a relação entre matéria e forma, entre materiais e forças tornadas visíveis […] pelos seus efeitos na carne e nos nervos” (Conversation, p. 185). Mbembe quer transmitir algo diretamente “ao sistema nervoso do leitor” (Conversation, p. 184). Fanon e Mbembe querem que o texto tenha uma dimensão tátil. Um costurando um pouco além do outro, sem que o anterior desapareça ou mesmo se diferencie rigorosamente do posterior. Colônia e pós-colônia.

Que haja corpo — isso é fundamental para produzir certos encontros. É preciso tentar adequar meios e fins.

11.

Planejo um texto sobre o legado de Fanon em Mbembe e lembro que não gostaria que alguém dissesse que Mbembe acredita ou afirma uma coisa que definitivamente teve meu dedo impuro. Para além do conceito de necropolítica, circula tão pouco sobre o que poderíamos chamar de “filosofia de Mbembe”. Não é hora de fazer graça e me meter no meio. Então, é preciso separar três pessoas… Isso foi há semanas.

Semanas, meses. Centenas de anos. A passagem linear do tempo pode ser irrelevante na Colônia. Mbembe chama de “pós-colônia” — é preciso separar algumas coisas ao menos. O tempo da pós-colônia, entrelaçamento e encavalamento de temporalidades, é o tempo de uma vulgaridade infernal.

O mau encontro colonial “colocou desejos em movimento que colonizador e colonizado tiveram de esconder de si ocasionalmente, e que, justamente por isso, foram reprimidos no inconsciente” — Mbembe diz que ignorar isso teria feito Fanon incapaz de “antecipar a pós-colônia” (De la scène coloniale, p. 54). Acusação certamente estranha contra o autor de Pele negra, máscaras brancas. Mas o que ele parece querer dizer é: a colonização opera por um enfeitiçamento que faz a pessoa colonizada desejar profundamente penetrar “em outro ser” e viver “seu trabalho, sua linguagem e sua vida” (De la scène, p. 54). Na cena colonial, o caráter estrangeiro dessa vida seria mais claro, assim como a dinâmica de alienação produzida pela relação entre colonizador e população nativa. Isso certamente permite visualizar melhor a guerra e a emancipação porvir. Daí viria a própria força do maniqueísmo fanoniano.

Mas a pós-colônia é o aprofundamento e a dispersão da própria colonização do e no inconsciente social: não se trata mais apenas do “conflito entre Pai e Filho — ou seja, da relação entre colonizador e colonizado”, mas também da “violência de ‘irmão’ contra ‘irmão’, e do estatuto da ‘irmã’ e da ‘mãe’ no meio do fratricídio” (Conversation, p. 181). Não se vive mais “no contexto de um chamado ao assassinato do colonizador, mas um tempo em que ‘irmão’ e ‘inimigo’ se tornaram um, uma época em que se exerce o direito soberano de matar contra o próprio povo em primeiro lugar” (Conversation, p. 181). É como se não pudéssemos mais, com alguma segurança, dizer que assimilamos desejos que não são nossos — nós somos aquilo que nasceu desses desejos e vive na fronteira nebulosa ou mesmo líquida entre paz e guerra. A metrópole se dissolveu no que era a colônia, o estrangeiro se tornou familiar. “Resumindo, a afirmação pública do sujeito não se encontra necessariamente em seus atos de oposição ou resistência ao mandamento ou à dominação. O que o define é a capacidade de se engajar em práticas barrocas, profundamente ambíguas, móveis e reversíveis por princípio, mesmo quando há regras escritas claras e precisas” (On the Postcolony, p. 129).

12.

É como se Mbembe, recorrentemente e em variados textos, dissesse a Fanon: “a colônia não acabou definitivamente, irmão — e agora as coisas ficaram mais confusas! Mas, ainda bem que você ainda está aqui”. Entrelaçamento e encavalamento.

Ainda assim, sabemos que algo acabou. O corpo também sente isso, assim como sente uma permanência. “A ideia é que fosse uma história do poder que fosse inseparável da história dos sentidos” (Conversation, p. 185).

13.

O que está em jogo não é o fato empírico de que, na pós-colônia, conquistamos parte do que nos era interditado. Que aquilo que conquistamos seja nosso “por direito” é apenas uma forma de intervir na contradição do próprio discurso jurídico, que convive bem com a universalidade abstrata simultânea à interdição ao seu acesso — uma estratégia para vencer explorando as brechas do jogo que não é nosso. Há também o fato de que tornamos nossa uma série de possibilidades: um ato mimético. Do lado de fora, nosso desejo era orientado pelo que estava dentro. Pode-se dizer que nos tiraram tudo e, por isso, devemos tomar o que é nosso por direito.

Mas, esse “nosso por direito” não tem qualquer vínculo com o que nos tiraram, a não ser pelo fato de que, diante do outro, de um outro que já não se distingue tão bem de nós, podemos reivindicar apenas aquilo que ele pode nos oferecer, e que já desejamos desde sempre: este mundo.

Herdamos “um mundo de sonhos que, muito rapidamente, pode se transformar em pesadelo” (De la scène, p. 53). Estamos procurando reparação no apocalipse solar do deserto que é este mundo. Por toda a extensão da grande noite, a raça faz desaparecer o potencial humano de produzir qualquer outro mundo — que não o herdado através do colonialismo — ao fazer desaparecer a humanidade em sua dimensão própria: “não pertencer propriamente a nenhum lugar” (Políticas, p. 248). Há uma questão fundamental de mobilidade aqui. Andamos em círculos na pós-colônia.

14.

Enquanto escrevo, toca: Repair is the dream of the broken thing…

O conserto é o sonho daquilo que está quebrado.

Há outro tipo de reparação, claro. Ele visa “restituir àqueles e àquelas que sofreram processos de abstração e coisificação na história a parte de humanidade que lhes foi roubada” (Crítica, pp. 313–4), essa potência existencial de indeterminação, fonte criativa imprevisível, vitalidade ingovernável, lugar de onde partimos sem saber aonde vamos chegar. Não se trata, portanto, de reparação no sentido de uma integração cada vez mais ajustada ao mundo herdado.

“[…] eu, homem de cor, na medida em que me seja possível existir plenamente, não tenho o direito de me confinar em um mundo de reparações retroativas” (Pele negra, p. 242). As últimas páginas de Pele negra revelam uma série de negações de direitos e deveres, com duas exceções: o direito de “exigir do outro um comportamento humano”, o dever de “nunca renunciar à liberdade” (p. 240). Fanon rejeita qualquer direito ou dever, qualquer missão ou obrigação “do negro” que se possa assumir de acordo com a medida deste mundo. É preciso lembrar do complemento do desejo de ser um homem dentre outros homens: “ter chegado lépido e jovial a um mundo que fosse nosso e que juntos construíssemos” (Pele negra, p. 128). É para isso que desejamos reparação, pois há “lesões e chagas que nos impedem de fazer comunidade” (Crítica, p. 314). Nada mais.

É preciso libertar o corpo para que ele se mova sem um destino previamente traçado e inculcado nele.

A raça é uma marca que faz sempre aparecer um destino.

15.

A raça não é apenas negação. “Em grande medida, a raça é uma moeda icônica. Ela aparece no desdobramento de um comércio — o de olhares. É uma moeda cuja função é converter o que se vê (ou aquilo que se decide não ver) em espécie ou símbolo, dentro de uma economia geral dos signos e das imagens a serem trocados, que circulam, que atribuímos ou não valor, e que autorizam uma série de juízos e atitudes práticas” (Crítica, p. 197). Essa dinâmica de conversão depende da percepção compartilhada de um vazio a ser livremente preenchido — o resultado dessa operação deve tornar a percepção do corpo racializado uma autorização transcendental, condição de possibilidade de uma nova realidade. Nesse comércio, percebe-se uma multidão de coisas, a imaginação é livre para se excitar sem inibições, o absurdo é recebido sem dúvidas ou questionamentos. É aí que surge o esquema racial em que Fanon se encontra aprisionado, um aglomerado de fabulações nas quais o corpo negro vive.

O vazio no corpo negro e o vazio no território africano são convites sombrios ao desejo — vazios conjurados por nomes que não podem dizer o real (“o negro” e “a África”), nomes que ganham força e autonomia por um exercício da fantasia. “Eu tento ler as brutalidades colonial e pós-colonial como um trabalho que requer virtuosidade, criatividade da imaginação, extravagância nos gastos, manufatura de maravilhas e superstições — resumindo, o que os gregos chamavam fantasia” (Conversation, p. 184). “[…] sempre que se tratou dos negros e da África, a razão, arruinada e esvaziada, nunca deixou de se voltar a si mesma, lançando-se, muitas vezes, num espaço aparentemente inacessível onde, fulminada a linguagem, as próprias palavras perderam a memória […] O mundo das palavras e dos signos autonomizou-se a tal ponto que não se tornou apenas uma tela para a apreensão do sujeito, de sua vida e das condições de sua produção, mas uma força em si, capaz de se libertar de qualquer ancoragem na realidade. Que isso seja assim se deve, em grande medida, à lei da raça” (Crítica, p. 32).

Mbembe insiste que a “experiência vivida do negro” não é orientada por uma aparência que oculta a realidade, ou por uma ficção útil a ser abandonada eventualmente. “A força da raça deriva precisamente do fato de que, na consciência racista, a aparência é a verdadeira realidade das coisas” (Crítica, p. 200). Não há o que se dizer a quem não vê o que não deseja ver e enxerga um mundo de coisas no lugar. Daí as afirmações e recusas de Fanon o levarem a um círculo infernal: a imitação, o enfrentamento, a teorização, a precisão cientifica, a autoafirmação poética, a reivindicação de uma ancestralidade gloriosa — nada disso rompe o fato de que, diante do olhar branco, o que ele pode e deve ser já foi positivamente determinado e faz parte da própria estrutura do mundo elaborado na colonização.

Vivemos realmente em um mundo de fantasia. O poder mais significativo da raça é “fazer da própria vida uma realidade espectral” (Crítica, p. 197). Qual a linguagem mais adequada aqui? “Escrever fantasia tem menos a ver com teoria e sistematicidade, e mais com pensamento crítico e — e isso é o mais importante — figuração” (Conversation, p. 184).

16.

“No princípio da colonização, encontramos um ato inaugural, que tem em si sua própria jurisdição: o da arbitrariedade. Ele não consiste apenas em um ordenar sem limites, mas também em uma liberdade dos limites da realidade. Esse esforço que consiste em se libertar de todas as determinações objetivas visa a aquisição de um tipo particular de poder: o de colocar o real seja como vazio, seja como irrealidade; e, por outro lado, o poder de colocar tudo que é representado e representável como possível, realizável” (Postcolony, p. 188).

Fanon via a colonização como uma aventura sexual antes de tudo, exercício de transcendência e criatividade em resposta a uma fobia igualmente sexual. Mbembe oferece uma proliferação vertiginosa de imagens que visa recontar a história dessa aventura de outra perspectiva corporal. Afinal, a colônia é a loucura encarnada: “Ela é o corpo que dá peso e carne à subjetividade, algo que não apenas lembramos, mas que continuamos a experimentar, visceralmente, muito depois de seu desaparecimento formal” (Crítica, p. 187). Em muitos momentos, sua escrita pode ser dita pertencer ao gênero do terror. Não poderia ser diferente. Mbembe experimenta com uma forma de ler e escrever o mundo que oferece um acesso diferente daquele que encontramos no testemunho de Fanon — a primeira pessoa se dissolve parcialmente para dar lugar a uma perspectiva estranha, mas que ainda é do corpo porque ainda se trata de falar de uma violência fenomênica. O horror se multiplica e o encontramos em toda parte. Um horror que vem de uma perturbação sexual sem precedentes.

Viver uma realidade espectral produzida pela raça é viver parcialmente no plano onírico tornado carne. Poder noturno, espírito de morte, demônios, sombras, fantasmas, transe, intoxicação, possessão, necromancia. Um mundo imaginal. Tudo isso alimentado por um desejo, não por ignorância ou desconhecimento.

17.

Terror. A linguagem mais segura para falar de raça. Mas dirão que não é suficiente, que isso não satisfaz. Poderíamos fazer a engenharia reversa de um desejo.

18.

“A conversão participa da constituição de mundos […] Mas participa também da destruição de mundos” (Postcolony, p. 228). Herdamos o mundo fabricado e também herdamos fragmentos da destruição dos mundos que existiam no lugar dele. Sabemos como extrair deles uma reserva de vida. Como animar corpos, até mesmo ressuscitá-los. Pequeno segredo do mundo dos fantasmas. Nosso.

“Para fazer o luto do que se perdeu de maneira a não habitar o trauma, para escapar a maldição da repetição, para reunir os destroços e fragmentos daquilo que foi quebrado e tentar dar a eles algum espaço de descanso, para retornar a vida para a colheita de ossos que foram submetidos as forças de dessecação, para tornar habitável o mundo para todas as pessoas, novamente. É para isso que escrevo da maneira que escrevo” (“The reason of unreason”).

19.

Ética do transeunte ou do passante. É assim que Mbembe nomeia um dos legados de Fanon a serem assumidos. Um legado médico: “Atravessar o mundo, assumir a medida do acidente que representa nosso local de nascimento e seu peso de arbitrariedade e constrangimento, abraçar o fluxo irreversível que é o tempo da vida e da existência, aprender a aceitar o nosso estatuto de passantes, pois este talvez seja a condição última de nossa humanidade, fundamento a partir do qual criamos a cultura — em última instância, talvez essas sejam as questões inflexíveis de nossa época, aquelas que Fanon nos deixou como legado em sua farmácia, a farmácia do passante” (Políticas, p. 245).

É sempre uma questão de mobilidade. Afinal, tudo começou com uma objetificação, e objetos são aquilo que se faz mover, nunca se movem por conta própria. O mundo colonizado é espacialmente organizado de forma a restringir violentamente uma série de movimentos nos mais variados sentidos. “Não se deve tentar fixar o homem, pois seu destino é estar solto” (Pele negra, p. 241). Um destino que não é efetivamente um destino, mas sim um antidestino. Isso demanda um desprendimento radical, pois não se trata apenas de libertar o corpo negro de todas as formas de enclausuramento que herdamos contra nossa vontade. É preciso que nos soltemos também de nossos desejos em direção a “um mundo livre do fardo da raça” (Crítica, p. 315), especialmente de qualquer desejo de se assenhorar de algo, o que quer que seja e que não seja a liberdade.

É preciso construir uma medicina que solte os músculos do corpo racializado. Parte dessa medicina se elabora na linguagem — na costura de jogos de linguagem.

A cura também envolve desfazer a loucura de um mundo. É ele que nos produz uma série de sintomas. É ele que garante que o pesadelo pode sempre recomeçar. É nele que a raça permanece como autorização para incontáveis violências. Então é preciso reunir coisas úteis para uma guerra. “[…] precisaremos de uma linguagem que constantemente fure, perfure e cave como uma broca, que saiba se fazer projétil, espécie de plenitude absoluta, de vontade que atormenta o real sem cessar. Sua função não será apenas arrebentar fechaduras, mas também salvar a vida do desastre no horizonte” (Políticas, p. 250). Uma linguagem como a de Fanon é um bom começo.

20.

Textos são costurados para formar uma rede. Pode-se dizer que Fanon inaugurou uma rede a partir de seu desejo de ser ponto de partida, de fundar, de criar do zero, “estar na origem do mundo” (Pele negra, p. 125) — mas junto de outras pessoas como ele.

É frequente que Fanon seja indistinguível de Mbembe no texto. O discurso segue adiante, mas não como se partisse de onde o anterior terminou, como um acréscimo em uma sequência linear de textos. Pode-se dizer também que essa rede que Fanon inicia envolve múltiplas linguagens — insuficientes por si mesmas, desinteressantes por si mesmas — que, quando reunidas, também não constituem uma totalidade no interior da qual podemos separar rigorosamente departamentos em termos de suas contribuições.

“Esperava que, quando reunidos, esses dispositivos fragmentários acabassem descrevendo uma constelação. Esse livro é, portanto, um diálogo e uma negociação permanentes entre vários discursos e métodos. Fico bem feliz em dizer que esse diálogo e essa negociação não são sempre conclusivos” (Conversation, p. 183). Uma rede costurada por muitas mãos não é como um sistema, encerrado em si.

21.

Por fim, você. Gostaria de ter escrito um texto mais alegre e acolhedor. Talvez isso não seja possível nessa costura, nessa rede. Mas há uma incompletude deliberada. Reabrindo o texto de Fanon — reabertura retroativamente previsível, dado o fato de que a colônia não acabou senão formalmente e que a pós-colônia é experimentada como entrelaçamento de tempos distintos —, Mbembe e outras pessoas puderam fazer aparecer uma rede em que cabe sempre mais uma costura. Há muitas formas de escrita. Algumas delas são também um convite e um depósito de confiança.