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Excepcionalidade brasileira: o Estado patrocina o fura-fila

A guerra das vacinas já começou. Resta saber quem as protagoniza e com que finalidade.

No princípio era a ameba, Tom Vieira

Quando a União Europeia decide instituir regras que autorizam cada país membro a controlar e a proibir a exportação de vacinas para fora do bloco, claro está que a disputa por imunizantes em falta nas economias avançadas vai postergar — e por muito tempo — o direito de outros bilhões de cidadãos do mundo à proteção contra um vírus mortal. A ONU já assumiu que um apartheid global está em curso, com nove em cada dez pessoas vivendo nos países pobres excluídas da vacinação. Essa realidade coloca em xeque a própria eficácia do processo por ora caótico de imunização: se a vacina não se tornar um bem público global, a pandemia não será controlada. Como diz a máxima, ninguém está a salvo até que todos estejam a salvo.

Mas a União Europeia não deixou barato a ameaça que sofreu de um ex-membro, após um divórcio litigioso e longo. Informada pelo grupo farmacêutico britânico-sueco AstraZeneca de que haveria um corte de 60% na entrega das doses já contratadas da vacina contra a covid-19 no primeiro trimestre de 2021 por problemas na produção, a Comissão Europeia não hesitou em afirmar que, se preciso fosse, para resguardar seus direitos contratuais e o bem-estar de sua população, apreenderia a produção destinada à Inglaterra, a partir da fábrica da Pfizer/BiNTech situada em solo europeu, na Bélgica. A Inglaterra teria, assim, bloqueada a entrega de 40 milhões de doses da vacina. Esta seria uma maneira de socializar os chamados problemas de produção que penalizariam a Europa preservando, porém, as cotas dos ingleses. O atraso na vacinação nos países membros da UE, provocado pelo novo protecionismo inglês, retardaria em vários meses a conclusão da campanha de vacinação, estendendo sine die todas as medidas de lockdown que inibem a recuperação econômica.

A UE investiu 336 milhões de euros na AstraZeneca para financiar pesquisa, desenvolvimento e infraestrutura em troca da obtenção de 400 milhões de doses da vacina. Não foi a única a alocar vultosos fundos públicos para a obtenção de imunizantes. Essa foi a regra geral.

Fica claro que, de um lado, foi o poder de fogo do dinheiro que permitiu aos ingleses se anteciparem a muitos países na corrida pela vacina, encomendando a vários fabricantes, ao mesmo tempo, milhões de doses e pagando à vista na assinatura do contrato. De outro, esse contrato de risco começou em casa, com os cientistas da Universidade de Oxford definindo uma estratégia que foi integralmente apoiada pelo governo britânico. Essa estratégia consistiu em estabelecer de imediato uma parceria com um fabricante enquanto os cientistas avançavam na pesquisa. Com medo do “nacionalismo pela vacina”, resolveram que era preciso produzir parte dos imunizantes em território nacional — daí o contrato já em abril com a AstraZeneca, pela produção de 100 milhões de doses. Com os recursos antecipados e um acordo de que as vacinas seriam vendidas pelo preço de custo global (cada dose variando entre US$ 2–5), a farmacêutica desenvolveu a infraestrutura de processamento e produção. Em paralelo, o governo britânico seguiu negociando com outras farmacêuticas novos contratos de compra antecipada e à margem dos acordos gestados pela União Europeia, por causa do Brexit.

Se o “nacionalismo da vacina” se configura numa ameaça à diplomacia internacional e ao controle exitoso da pandemia, é fácil imaginar os abusos que endinheirados ou detentores de algum poder executivo praticam, quase sempre na moita, apostando na impunidade.

Ilustra o primeiro caso um casal de bilionários canadenses, ele executivo de uma mega rede de cassinos, que alugou um voo charter que os levasse a um território indígena remoto, onde a população originária, considerada prioritária no programa de imunizações, começaria a receber a vacina da Moderna. Fizeram-se passar por funcionários do motel local, receberam a vacina, mas foram descobertos ao chegar ao aeroporto e interceptados, tendo de pagar uma multa de US$ 1.800 por infringir as regras da saúde pública em proveito próprio e contra o bem comum. Pena leve para quem realizou um lucro de US$ 36 milhões em ações no mercado de capitais nos treze meses que antecederam o golpe contra o interesse coletivo. O escândalo e a indignação no país levaram Rodney Baker a renunciar ao seu cargo à frente da Grande Corporação Canadense de Jogos, cuja venda prevista para este ano ainda vai lhe proporcionar meros US$ 16,4 milhões. Rico, foi vilipendiado e precisou se esconder. Mas a opinião pública exige penalidades mais severas.

O velho argumento de novo exposto à crítica: privatizar em defesa do público

Já exemplos de prefeitos e outros cargos executivos afins, que resolveram iniciar a vacinação em suas cidades pelos parentes, amigos mais fiéis ou ainda como uma declaração à mulher amada, são numerosos. Entre nós, é claro. Até o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, tropeçou na leitura do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” — e encaminhou à Fiocruz um pedido especial de reserva de vacinas para imunizar 7 mil servidores. A justificativa alegava ser essa “uma forma de contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa história” (…) ajudando “a acelerar o processo de imunização” (Folha de S. Paulo, 29/12/2020). Tudo isso, antes mesmo que os lotes de vacinas estivessem sendo distribuídos em solo nacional e tivesse início a campanha.

Apesar de o STF ter recuado do intento, responsabilizando um funcionário individualmente pela gafe, avançam celeremente no Brasil múltiplas iniciativas de comercialização da vacina por particulares. Importadoras buscam antecipadamente clientes no mercado nacional com promessa de reserva de mercado, antes mesmo de aprovação e da precificação de novas vacinas (portanto, negociando imunizantes sem registro permanente). Se esse comportamento não é uniforme entre setores empresariais e corporações, a adesão às compras corporativas privadas seduz não apenas o setor da construção civil, como, novamente, segmentos corporativos do judiciário. Para a Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul, o uso de recursos próprios e não públicos legitima comprar vacinas não apenas para os juízes, mas também para seus familiares. O outro argumento, ainda mais frequente, não é só ter dinheiro para comprar vacinas, inclusive com ágio, mas sobretudo estar, assim, liberando a pressão sobre o sistema público de saúde. O SUS atenderia os que não têm a escolha que o dinheiro oferece, consolidando definitivamente um tournant que os diversos esquemas de intermediação assistencial privativa têm buscado estabelecer: saúde pública é para os pobres.

Como toda despesa em saúde, comprovada mediante recibo ou nota fiscal, pode ser deduzida integralmente de imposto de renda, o pagamento de serviços de imunização pelas classes dominantes e corporações empresariais, com ágio ou sem ágio, dará lugar a um crédito tributário. Perde, portanto, o erário público.

Pelas regras atuais da Anvisa, é proibido ao setor privado adquirir vacinas para uso emergencial. As chances de essa norma mudar repentinamente são grandes. Desde janeiro de 2021, clínicas privadas de vacinação se agitam para conseguir comprar 5 milhões de doses da vacina indiana Covaxin para abastecer o mercado nacional. Apesar da escassez da oferta e da guerra aberta, ressurge o velho argumento de que se trata de uma ação complementar ao SUS, com o objetivo de vacinar trabalhadores jovens, fora do grupo prioritário, e assim estimular a imunidade de rebanho. E isso, ao preço de pagar doses unitárias a quase US$ 24 (até cinco vezes mais que o preço de venda aos europeus), o que elevaria em muitas vezes o preço de venda ao consumidor final.

Porém, o que não se havia visto até agora fora um governo agindo abertamente contra o interesse coletivo, preterindo a nação na defesa de privilégios privados daqueles muito poucos que detêm a maior parcela do PIB nacional.

Após ter deliberadamente negado a crise sanitária desde o início, impedindo uma ação coordenada em escala nacional para seu enfrentamento de modo a salvar milhares de vidas e mitigar seu impacto, o presidente Bolsonaro liderou, na última semana de janeiro, a criação de um consórcio reunindo grandes corporações financeiras e empresarias nacionais, entre as quais foram citadas, Vale, Gerdau, JBS, Oi, Vivo, Ambev, Petrobrás, Santander, Itaú, Whirpool e ADN Liga (Folha de S.Paulo, 24/01/2021). Esse consórcio teria autorização do Ministério da Saúde para importar 33 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca, furando, inclusive, a fila de acordos internacionais firmados entre a farmacêutica e governos nacionais. E com prioridade, pois o presidente anunciou que a entrega já ocorreria em fevereiro de 2020, proveniente da Inglaterra (!), enquanto o que se vê é a suspensão ou atraso das campanhas de vacinação em toda a Europa por falta de estoques. A contrapartida ao apoio do governo consistiria na doação gratuita ao SUS, por parte das empresas, de metade do lote adquirido. No seu papel de ricos, mas generosos, a nata do empresariado nacional estaria se comprometendo com a tão propalada responsabilidade social, que é hoje critério de ranqueamento das boas práticas corporativas. Isso soma pontos nos balanços que contribuem para a valorização acionária de seu patrimônio no mercado de capitais. E gera dividendos para seus acionistas, livres de taxação.

O complô privatista, que contaria com a intermediação do maior fundo de asset management global, o BlackRock, além da multinacional estadunidense Dasa, detentora no país de vários laboratórios médicos e outros serviços assistenciais, e que foi celebrado pelo presidente numa reunião com a banca, ia bem, mas esqueceu de acertar com os russos. Notadamente com a própria AstraZeneca, que desmentiu de imediato integrar o convênio ou vir a disponibilizar vacinas para o setor privado. Reafirmou seu compromisso primordial com nações e com a Covax Facility (Acesso Global de Vacinas Covid-19, promovido pela OMS). E ratificou a entrega de 100 milhões de doses à Fiocruz. Ademais, o presidente-executivo da BlackRock no Brasil negou veementemente estar envolvido em operações dessa natureza e denunciou uma “fraude” (Folha de S. Paulo, 30/01/2021). Não tardou para que as empresas que pareciam ter aderido ao pool comunicassem não fazer parte do convênio, nem ter interesse nele. O que se sabe é que a iniciativa veio do governo Bolsonaro, com bolsonaristas contatando por telefone a fina flor do empresariado em busca de adesão. Mas o tiro saiu pela culatra.

Na mesma semana em que se descobre essa manobra ardilosa por parte do governo Bolsonaro, toma-se conhecimento do corte de 68,9% dos benefícios fiscais destinados à compra de equipamentos e insumos que viabilizam a pesquisa científica no país. Com isso, a cota de importação cai para US$ 93,29 milhões em 2021, contra US$ 300 milhões em 2020, comprometendo sobremaneira o trabalho de produção de vacinas das mais importantes instituições públicas envolvidas no combate à pandemia: a Fiocruz, o Butantã e as universidades federais.

Uma prática e valores que vêm de longe

A naturalização desse tipo de argumento funciona como um “excludente de ilicitude” para a prática de crimes contra a saúde pública. Prevalece o senso comum que justifica a revogação da lei em casos selecionados onde determinados grupos e indivíduos privilegiados se sentem ameaçados em suas prerrogativas tradicionais de acesso preferencial a bens e serviços de saúde. É o que acontece quando aquela pequena parcela da população que tem planos de saúde de uso privativo replica esse diferencial de atendimento para momentos críticos de crise sanitária, inviabilizando pensar no bem comum.

A crise que agora vivenciamos não é apenas fruto da pandemia viral, mas é uma crise estrutural. Ela revela sem dubiedades o ranço segregacionista que se faz presente em uma parcela expressiva da sociedade brasileira. Não se trata, obviamente, de uma novidade histórica, mas as condições do momento amplificam e conferem relevo a fenômenos que transcorrem silenciosamente, como se fossem parte da paisagem, sem que a dinâmica das forças políticas seja capaz de promover reviravoltas na direção de um ambiente social republicano.

As desigualdades no acesso a leitos de UTI, por exemplo, incidem historicamente, e de forma desfavorável, sobre maiorias de excluídos por questões de renda, etnia, gênero e local de domicílio entre outras razões não aceitáveis numa perspectiva ética ou sanitária. O súbito aumento na demanda por esse tipo de serviço provocado pela pandemia levou ao noticiário apenas a amplificação do fato de que alguns têm mais chance de morrer por falta de acesso oportuno do que outros, mas não alterou o quadro geral. A tragédia de Manaus tem explicações relacionadas com a dinâmica de disseminação da epidemia, mas é também uma expressão das enormes desigualdades regionais na oferta de serviços qualificados e dimensionados para as necessidades locais.

A existência de um esquema de intermediação assistencial privativa amplamente favorecido por renúncia fiscal e outros subsídios à demanda em detrimento dos interesses do conjunto da população é uma das marcas institucionais do segregacionismo histórico, mas não é um fenômeno da natureza como a chuva e o sol, o dia e a noite. É uma construção política passível de crítica e reformulação. A realidade empírica trágica que experimentamos atualmente poderia funcionar como elemento catalisador para a ação política transformadora e oportuna, porém não é isto o que estamos presenciando.

Nos anos 1970, quando a maioria das empresas médicas de intermediação assistencial privativa era não mais que uma aposta duvidosa, o lobby empresarial da época formulou o argumento falacioso de que seu esquema comercial poderia ter uma funcionalidade “supletiva” ao sistema público “aliviando” a demanda à medicina previdenciária de então. Em outras palavras, diziam que quanto mais pessoas tivessem planos de saúde, melhor seria para aqueles que não têm, porque sobrariam mais recursos, haveria menos filas e, principalmente, seria possível investir e administrar menos rubricas imobilizadas diretamente no sistema público.

Nada mais falso e disfuncional. A hipertrofia do esquema assistencial privativo, estimulada por decisões políticas, concentrou recursos, aumentou os custos gerais de transação do sistema devido à proliferação de intermediários desnecessários, contribuindo para provocar um aumento progressivo dos gastos totais em saúde como proporção do PIB sem garantia de acesso equitativo ou resultados sanitários satisfatórios para o conjunto dos brasileiros. A vitória política daqueles que promovem o segregacionismo sanitário tem também um componente ideológico que se espalha e reproduz os traços principais desta estrutura em todos os recessos do tecido social.

Quando a generosidade corporativa é o contraponto da austeridade fiscal

Nas discussões veiculadas pela imprensa sobre a compra de lotes de vacina por particulares é possível identificar entre os defensores de tais iniciativas a presença de sanitaristas, advogados, representantes de corporações de trabalhadores e políticos de variados segmentos do espectro político esgrimindo o tradicional argumento falacioso de que é bom para a esfera pública que eu e “os meus” resolvam o problema de forma voluntarista, discricionária e exclusiva, pois assim o sistema pode se dedicar a quem não dispõe de recursos próprios, nem de meios para fazer prevalecer seu ponto de vista.

É possível também observar que os fóruns de discussão têm assumido, em geral, um caráter opinativo onde quaisquer argumentos são aceitos em uma razão de equivalência. Não há argumentos com peso de evidência maior do que outros, não há argumentos falaciosos, não é necessário se qualificar para o debate, basta ter opinião e ser convincente. Como dizia Riobaldo, alter ego filosófico de Guimarães Rosa: “pão ou pães é questão de opiniães”.

É verdade que em uma situação dramática como a que estamos vivendo não se pode desprezar nenhum recurso a mais colocado sobre a mesa. Foi o que ponderou recentemente o Comitê de Bioética do Hospital Sírio Libanês ao reivindicar que as doações poderiam ser aceitas por razões práticas, desde que fossem integralmente alocadas no SUS. Vidas podem ser salvas e o tempo urge, mas, afinal, por que motivo um país de renda média, com ampla capacidade industrial como o Brasil, evoluiu para essa situação de fragilidade institucional e inversão de prerrogativas? Em que lugar se escondeu a iniciativa pública? Ou foi ela silenciada no lastro da implosão da esfera pública?

A aversão ao trato de questões estruturais e pendentes, que alimentam nossas desigualdades, é esperada daqueles que são favorecidos pelo status quo. Porém, as sociedades democráticas modernas desenvolveram mecanismos institucionais capazes de proporcionar consensos abrangentes ao menos em alguns aspectos relevantes e sabidamente equalizáveis pela lógica do interesse público. A saúde é um desses aspectos que, neste momento, evidencia empiricamente este pressuposto fundamental.

O caráter concentrador e excludente do modelo de crescimento econômico experimentado pelo Brasil nos anos de ditadura militar deixou resultados catastróficos para o sistema de saúde. As oportunidades abertas pela Constituição de 1988 viabilizaram a formulação de um projeto de reforma sanitária ajustado às características de um país continental de renda média, marcado pela incidência de alto nível de desigualdades como o Brasil. As forças políticas conservadoras, contudo, municiadas pela tradicional ideologia segregacionista, conseguiram fazer prevalecer sua visão e interditar a plena expressão do potencial transformador do SUS.

A estrutura daquele precário esquema de intermediação assistencial privativa dos anos 1970 tornou-se robusta e, a partir da primeira década do século XXI, progressivamente funcional ao regime de acumulação financeirizado em curso, de modo que hoje controla discricionariamente mais recursos por ano do que o montante empenhado pelo gestor federal do SUS no mesmo período.

Nessa lógica, e sob a influência de seu poder econômico e político, diversas ferramentas e espaços institucionais antes comprometidos com a ideia de saúde como um bem público foram deliberadamente esvaziados ou assumiram um outro significado. Já na gestão Temer a entidade federal responsável pela logística das campanhas de vacinação, a Cenadi (Central nacional de Armazenagem e Distribuição de Imunobiológicos) foi fechada e privatizada.

A antiga rede de hospitais universitários federais, por exemplo, que teria o potencial abrangente de servir como ponta de lança na incorporação de novas tecnologias e realização de pesquisas clínicas de escopo ampliado sobre a covid-19 em todo o território nacional mal conseguiu prestar serviços assistenciais básicos durante a pandemia. Seus orçamentos seguem sendo cortados no osso, condenando o desenvolvimento científico e as inovações de que somos a cada dia mais carentes.

Já iniciativas beneméritas de grandes empresas na formação de fundos bilionários como o Todos pela Saúde anunciado pelo Banco Itaú a partir de um depósito de R$ 1 bilhão voltado para o manejo da epidemia de covid-19 no Brasil e para a compra de insumos ou financiamento de serviços assistenciais ocuparam recentemente o espaço vazio deixado pela iniciativa pública do governo federal no enfrentamento da crise sanitária. Segundo o Monitor de Doações Covid-19 no início da pandemia, instituições privadas, notadamente financeiras, já haviam doado R$ 2,2 bilhões (Folha de S. Paulo 12/04/2020). Aqui, mais uma vez, um gesto político que em nada contribui para a extinção do segregacionismo surge transmutado como positivo aos olhos do senso comum. Gesto político, mas também gesto reconhecidamente “generoso”, pois mantido o teto do gasto, com a redução real de todas as despesas sociais, notadamente as de saúde, eleva a filantropia corporativa para a condição de “salvador da pátria”, figura retórica que circula na teledramaturgia nacional e cuja potência dá contorno a muitos de nossos consensos sociais. Sob o mantra da austeridade fiscal, a aura daqueles que pilotam a política de desmonte do Estado sai purificada. O sistema público de saúde que sairá ainda mais combalido dessa crise de gravíssimas proporções, após décadas de subfinanciamento, já teve seu orçamento de 2021 mantido em valores reais de 2019. Ou seja, em queda livre. A demanda do Conselho Nacional de Saúde por uma verba extra de R$ 45 bilhões não foi contemplada na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021.

Recursos facilmente contabilizados como investimento em marketing corporativo ou pessoal, uma vez depositados em fundos geridos por conselhos ad hoc tendem a ser objeto de decisões de investimento por dentro do universo de relações comerciais convenientes aos donos do dinheiro, reforçando o circuito endogâmico dos mesmos que controlam os meios e determinam a direção do processo de acumulação. Além disso, doações costumam ser dedutíveis de imposto de renda de pessoa jurídica, graças a um vasto instrumental legal que retira do Estado iniciativa e eficácia e debilita suas atribuições constitucionais.

As soluções estruturantes de destinação de parte do superávit de setores amplamente beneficiados pelo status quo de forma impessoal, progressiva e republicana para uma gestão política democrática em benefício do conjunto da sociedade simplesmente não entram na pauta de discussão. Os fundamentalistas do voluntarismo e da primazia do mercado perdem, mais uma vez, a oportunidade de ponderar que, em saúde pública, as melhores soluções são aquelas que podem ser compartilhadas e é bom para o indivíduo que todos tenham acesso livre às vacinas o mais rápido possível. Privilegiar grupos nas campanhas de imunização deve acompanhar critérios de saúde pública, cientificamente estabelecidos, cuja meta inegociável e moralmente justificável é o alcance e a promoção do bem-estar de todos.

… então disse o bispo verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa; e assim é, que estando as casas dos ricos / ainda que seja a custa alheia, pois muitos devem quanto têm / providas de todo o necessário, porque tem escravos, pescadores, caçadores, que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e de azeite, que compram por junto: nas vilas muitas vezes se não acha isto a venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque atendo-se uns aos outros nenhum as faz, ainda que bebam água suja, e se molhem ao passar dos rios, ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há cá de ficar, senão do que hão de levar para o reino.