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Entre o pós-tudo e o porvir: aproximações entre Augusto de Campos, João Giberto e Caetano Veloso

Que, tanto fora quanto dentro do contexto brasileiro, a poesia de caráter experimental, marcada pelos sentidos da visualidade e da auralidade, seja comumente identificada pelo termo “poesia concreta” — percorrido mais de meio século das elaborações particulares do movimento propriamente dito e sua subsequente conclusão em meados dos anos de 1960 —, só comprova a força da ruptura epistêmica causada por seus proponentes no âmbito intelectual, artístico e literário, nacional e internacional. Contudo, se essa constrição terminológica específica, poesia concreta, terminou por fagocitar um sem-número de correntes experimentais promovidas nas mais diversas formas, plataformas, meios e materiais ao longo da segunda metade do século passado e do presente, ela também apontou e iluminou uma via de acesso para que leitores não especializados transitassem por um dos mais exigentes territórios da criação literária, aquele em que a poesia, para além da arte da palavra, atua sobretudo como experiência ampla nos domínios da linguagem.

Augusto de Campos, o mais concreto dos concretos, logrou a um só tempo representar o movimento de que fez parte como um dos idealizadores e ampliar o escopo de sua prática poética orientando-a pelo princípio da “invenção”, de maneira que o imperativo criativo superasse quaisquer simplificações redutoras. Lançando mão de categorias negativas — o não, o anti-, o des-, o menos —, Augusto urde sua obra sob uma visão filosófica marcadamente opositiva, porém calcada em um princípio ético que o posiciona sempre na defesa daqueles localizados à margem [tratarei disso mais adiante]. Na fase dita “heroica” da poesia concreta, enquanto movimento de neovanguarda surgido nos anos desenvolvimentistas do pós-guerra, o ímpeto combativo dos jovens intelectuais paulistas causou estremecimento, não somente pela audácia de dar por “encerrado o ciclo histórico do verso” em benefício de uma sintaxe espacializada no amplo do papel, mas sobretudo por instaurar níveis técnicos e teóricos então inéditos no debate sobre literatura no país. Mirando muito além das fronteiras da língua e dos suportes convencionais à literatura, Augusto e seus companheiros fizeram muito beletrista tardo-parnasiano suar a gola do gibão para compreender o que estava em jogo na dicção concreta.

Para além da provocação calculada aos tabus da poesia versificada, a poesia concreta convidava de fato à uma nova perspectiva, ampliando a experiência cognitiva em relação à poesia. Ao reconfigurar a mecânica da escrita, sempre tão linear na página impressa, a poesia concreta estabeleceu um parâmetro conceitual ainda mais rente aos deslimites da linguagem. A palavra lançada como protagonista surgiria ali como o mínimo denominador comum da poesia, extrapolando a primazia da sintaxe. Retome-se aqui a definição da poeta teuto-americana Rosmarie Waldrop, quando diz que a poesia concreta é “sobretudo uma revolta contra a transparência das palavras”.1 Materializando a palavra, ela investiga e redimensiona o seu papel no texto poético. Assim, nos poemas estritamente “concretos” de Augusto reunidos sob a designação “ovonovelo”, escritos entre 1954 e 1960, vê-se refletido o momento agudo de criação disruptiva em um país que deixava de ser majoritariamente rural e lançava seu olhar para o futuro de um presente ostensivamente urbano. Finda a experiência concreta em sua proposição mais radical, porém, Augusto avançou na direção da radicalidade das formas, indo mais fundo e ainda mais para dentro. Passando da palavra à sílaba, da sílaba à letra, e da letra mesma ao desenho de silhuetas (Profilogramas), Augusto manteve por princípio o comprometimento com a lógica da radicalidade, sintetizado posteriormente como emblema na formulação “poesia é risco”.

Impossível imaginar uma edição “obras completas”, em papel-bíblia e capa dura, contendo a obra polimorfa de Augusto de Campos. Os poemas impressos em livros como Viva Vaia (1979), Despoesia (1994), Não (2003) e Outro (2015) parecem constar nas páginas como imagens em álbuns de fotografias. São poemas que dão indícios de uma existência outra, situada em um espaço distinto que não propriamente o do livro que se folheie nas mãos. Sua extensão ideal encontra melhor cabimento em formulações espaciais abertas, tais como se encontram na Caixa Preta (1975) e nos Poemóbiles (1974), obras-primas de seu trabalho colaborativo com o artista plástico Julio Plaza (1937–2003). Mas também na deslumbrante ourivesaria serigráfica de Omar Guedes para as cartelas de Expoemas (1985). Ou ainda no espetáculo multimídia que Augusto mantém em parceria com o músico Cid Campos, seu filho, a partir do trabalho conjunto feito para o CD Poesia é risco (1994). No álbum, seus poemas flexionam do espaço para o tempo, dando a medida da expressividade sonora que a poesia visual enseja; quando apresentada no palco, sua obra toma suporte no corpo presente do poeta, feito intérprete especulativo de uma trama entre criador e criaturas. Mas, sobretudo, é possível também que o tratamento mais adequado às obras reunidas de Augusto tenha sido o dado na grande retrospectiva exibida pelo Sesc Pompeia em 2016. A exposição “REVƎЯ”, com curadoria de Daniel Rangel, transformou o espaço arquitetônico idealizado por Lina Bo Bardi (1914–1992) em um parque de diversões da linguagem. Nela, milhares de visitantes/leitores puderam circular e fruir na proximidade devida à poesia alotrópica do autor. Porque a obra de Augusto se realiza no espaço expositivo na mesma medida em que aspira ao tempo-espaço de um acontecimento cósmico. Sem demora, novas edições dessa obra deverão encontrar amparo propício nas experiências imersivas das novas interfaces tecnológicas VR, de realidade virtual; então, os volumes das formas tipográficas, as cores traduzidas em timbres, as dinâmicas luminosas e holográficas, movimento e som avivarão os poemas que, mesmo quando impressos nos primeiros cartazes da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta ocorrida em São Paulo em 1956, já se supunham destinados a um presente dinâmico e multissensorial como ao que temos acesso hoje.

Mas como colocar em perspectiva um artista cuja obra prima pelo inclassificável? Talvez a partir de uma aproximação. Uma marca determinante de Augusto de Campos é a condição de poeta-crítico, sobretudo acerca de si mesmo. Seus poemas, por mais compactos que se apresentem, sabem-se construídos após longos processos especulares e depurativos. Nesse sentido, Augusto se assemelha muito a João Gilberto (1931–2019). Como Augusto, João logrou atuar com aguda sensibilidade crítica na criação de formas e linguagens estéticas, promovendo a um só tempo a avaliação minuciosa e mesmo pedagógica de sua respectiva tradição. Tornaram-se assim, desde muito cedo, figuras incontornáveis no debate cultural, alterando a trajetória da produção musical e poética brasileiras. Nascidos no mesmo ano de 1931, ambos cumpriram trajetórias de formação profissional — guardadas as respectivas distâncias e diferenças — em curiosa sincronicidade. Tomados, um pela escrita, outro pelo canto, Augusto e João, respectivamente, ensaiaram seus primeiros passos artísticos ainda adolescentes no final dos anos 1940. Augusto publicando poemas avulsos em suplementos literários da cidade de São Paulo, João cantando como membro do cast da Rádio Sociedade da Bahia, em Salvador. Já no início da década seguinte, em 1951, Augusto publica seu primeiro livro de poemas, O rei menos o reino, ao passo que João lança suas primeiras gravações em discos de 78 rpm à frente do conjunto vocal Garotos da Lua. A essa altura, Augusto ainda escrevia em versos, João ainda impostava a voz de um crooner. No momento decisivo de seus processos de elaboração artística, os anos subsequentes trariam formuladas as suas contribuições criativas mais marcantes, vistas hoje à luz de seus longos e produtivos percursos criativos. Tanto a poesia concreta quanto a bossa nova foram dadas ao público mais ou menos ao mesmo tempo. Passado um ano da exposição de arte e poesia concreta, no ano de 1958 Augusto assina com o irmão Haroldo de Campos (1929–2003) e Décio Pignatari (1927–2012) o manifesto “plano-piloto para poesia concreta”; João, em parceria com Antônio Carlos Jobim (1927–1994) e Vinicius de Moraes (1913–1980), lança neste mesmo ano seu compacto, e quasi-manifesto, contendo “Chega de Saudade” e “Bim bom”. Em ambos os casos, da poesia concreta e da bossa nova, o impacto causado foi tamanho que marcaria para sempre com suas divisas a obra de seus proponentes. Esgotados os movimentos, ficariam os emblemas.

Datiloscrito do manifesto Plano-piloto para poesia concreta (1958).

Em 1964, João encerra com Getz/Gilberto a fase vertiginosa de álbuns matriciais iniciada com Chega de saudade (1958). Completava-se ali o ciclo virtuoso da bossa nova. Mergulhando em uma espécie de autoexílio, João buscou com prudência e reserva escapar das demandas insidiosas do espetáculo, permitindo-se voos ainda mais rentes à criação musical qualitativa em detrimento de sua comodificação quantitativa.2 Dessa forma, João pôde ultrapassar a constrição do empacotamento comercial, mantendo-se no direcionamento de uma busca obstinada pela manifestação característica do belo.3 Augusto, por sua vez, termina 1964 apresentando seus Popcretos, expostos em diálogo com obras de Waldemar Cordeiro (1924–1973) em uma galeria de arte no centro de São Paulo. A série de poemas-colagem, tramada a partir de recortes de jornais e revistas e composta à luz da antropofagia oswaldiana, revela não somente o repúdio à ruína da democracia pelo ataque golpista da sociedade civil e os militares ocorrida em abril do mesmo ano, mas também marca um distanciamento quanto ao modelo estritamente construtivista do concretismo raiz. Misturando procedimentos de composição aleatória com sobras e detritos colhidos na algaravia do parque gráfico-industrial da metrópole, os Popcretos comporiam a última série apresentada por Augusto antes do fim do movimento acordado pelo grupo no quinto e último volume da revista Invenção, publicada em 1967.4

Mas não é somente nessa sincronicidade geracional que os paralelismos entre os dois artistas se mostram perceptíveis. Há em Augusto, como houve em João, um comprometimento rigoroso e inabalável para com a síntese e a redução. O autor de “Viva vaia”, assim como o autor de “Bim bom”, não buscou seus ganhos por volumetria. Com obras enxutas, privilegiaram a formulação exata na maximização do mínimo. Como base dos processos de criação joãogilbertiana, é possível identificar estruturas geométricas elaboradas sob uma lógica modular matemática aplicada tanto aos arranjos harmônicos quanto à organização celular das estrofes em loop. Um pensamento estrutural algo coerente com os procedimentos construtivistas do modelo concreto. Já no plano da pesquisa, Augusto fez da releitura e da revisão, da seleção e tradução-arte, questões medulares do seu expediente intelectual criativo. Com alentado e generoso trabalho, por assim dizer, pedagógico e formativo, Augusto recuperou e colocou em circulação um grande número de autores nacionais e internacionais de modo a ampliar o escopo do debate intelectual sobre poesia no país. Por sua vez, João também atuou, a seu modo peculiar, e ao arrepio da voragem dos tempos, como curador e promotor do admirável patrimônio cultural da música popular brasileira. Sua lógica seletiva e seu trabalho de revisão crítico-criativo na formulação de um repertório não primaram somente por recuperar e estabelecer um panteão redivivo de peças e autores relevantes do passado, mas também estabeleceram um caminho adiante, criando escola, onde novas gerações de compositores e intérpretes puderam urdir seus próprios projetos de estudo e escrutínio do cancioneiro tendo como base o raio modernizante inaugurado pelo intérprete de “Rosa morena”.

João era leitor de Drummond, Augusto ouvinte de Caetano — epígono de João. Em um raro momento de cátedra, logo no início dos anos 1970, Augusto ministrou dois cursos nos Estados Unidos. No primeiro, que tratava do barroco brasileiro, Augusto usou como porta de entrada para o passado colonial a então recentíssima “Triste Bahia”, que Caetano Veloso compusera tendo por base o poema de Gregório de Matos (1636–1696). Trazida do exílio londrino, a canção seria apresentada em primeira mão durante os ensaios do mítico programa televisivo em que João Gilberto e Gal Costa receberam Caetano, marcando assim seu retorno ao Brasil. Presente nos bastidores do encontro, Augusto sairia dos estúdios da TV Tupi com uma fita gravada contendo a canção, um ano antes de lançada no álbum Transa (1972). Foi com esse registro que Augusto iniciou seu curso. Desde que tomara conhecimento do jovem músico baiano, e antes mesmo de formulado o tropicalismo, Augusto se antecipou em reconhecer na novidade representada por Caetano (e Gilberto Gil) o elemento comum à prática da poesia. No Balanço da bossa (1968), livro organizado no calor da hora por Augusto, reunindo textos seus e de outros, com os primeiros estudos sobre a bossa nova, assim como a avaliação e a defesa do tropicalismo, sustenta o poeta concreto que o tropicalismo seria “o fato novo mais importante da cultura brasileira” e que ele entendia Caetano como sendo “o maior poeta da geração jovem” ao fim dos anos de 1960.5

Augusto de Campos, João Gilberto e Gal Costa durante os ensaios do programa para a TV Tupi, 1971.

Tomadas as causas pelas quais o poeta concreto se viu instado a sair em defesa, constata-se uma constante: a luta em favor dos injustiçados e dos mal compreendidos. Quando tanto a esquerda quanto a direita viram nos tropicalistas um alvo aparentemente fácil, Augusto foi o primeiro a perfilar junto aos jovens baianos na defesa dos signos em mutação que eles versificavam em canto.6 Mas não somente. Augusto clamou por Lupicínio Rodrigues (1914–1974) quando deste já se iam esquecidas as poucas gravações de juventude, organizando sua discografia como ação propositiva de reavivamento do intérprete mais subestimado de seu tempo. Lupi voltou a gravar depois da retomada tropicalista. De Pagu — Patrícia Galvão (1910–1962), gigante radical do modernismo brasileiro eclipsada pela sombra das leituras misóginas dadas tradicionalmente à história literária, e cujo pseudônimo Solange Sohl serviu de inspiração aos poemas escritos na juventude pré-concreta de Augusto —, o poeta tomou para si a iniciativa da organização de uma “vida-obra”, trazendo-a de volta com a energia solar de atualíssima pertinência. Desde o “salto participativo”, ainda em tempos de poesia concreta, poemas como “Greve”, “Cubagramma”, “Plusvalia”, “Luxo”, “Olho por olho” e “Psiu!”, todos da primeira metade dos anos 1960, dão a medida do ímpeto combativo que orientou e orienta a bússola ética seguida por Augusto, sempre perfilado na defesa dos marginalizados.

Mas quando, à altura de 1968, os jovens tropicalistas receberam a atenção dos poetas concretos, um fenômeno global de atração à arte da canção fomentada pelo crescimento do mercado fonográfico já avançara sobre as novas gerações tanto no Brasil quanto em outras partes — sejam os cantautores de língua espanhola, ou mesmo os chansonniers do francês, até os singer-songwriters de língua inglesa. Ciente do seu presente, Augusto foi investigar na poesia dos trovadores provençais da Renascença um aporte sincrônico à retomada da arte de combinar versos à melodia. O trabalho de equipe realizado junto do irmão Haroldo viria como resposta criativa imediata do campo erudito da poesia no livro Traduzir & Trovar, que surge no mesmo 1968 de Balanço da Bossa, reunindo as primeiras traduções criativas dos irmãos Campos para os textos da tradição trovadoresca. Nesse trabalho, o exercício de investigação sincrônica de poéticas da oralidade representado pelos grandes trovadores de Provença reflete de forma cruzada a produção de ponta da geração jovem dos tropicalistas brasileiros. E assim, no outro curso oferecido a estudantes norte-americanos no início dos 1970, Augusto trataria da poesia moderna brasileira traçando um percurso iniciado nos modernistas de 1922 até os dias de então. No curso, o poeta optaria por dobrar o arco do modernismo brasileiro de modo que a ponta de chegada tocasse ninguém menos que Caetano Veloso, entendido ali como poeta. Simplesmente.7

Ao sabor da terminologia da época, Augusto entendia que tanto João quanto Caetano representavam os momentos de “informatividade” na música popular brasileira. Neste sentido, ambos participariam da leitura que Augusto faz da modernidade brasileira seguindo o princípio do questionamento da linguagem. Assim, seguiriam na linha experimental “antropófago-construtivista” traçada desde Oswald de Andrade (1890–1954) até a Tropicália, passando por João Cabral de Melo Neto (1920–1999), João Gilberto e, por certo, a poesia concreta. De início, foi em virtude de um artigo escrito por Caetano acerca do panorama da música brasileira em 1965 que fez Augusto voltar sua atenção para o jovem compositor; lá, Caetano identificava a existência de uma “linha de evolução” já esticada pela inteligência criadora de João Gilberto, cujo legado centrava-se mais no seu “ensinamento” do que propriamente na questão do estilo.8 Para Augusto, João Gilberto representava um desafio às convenções da música popular brasileira, dada a sua “manifestação antropofágica, deglutidora e criadora da inteligência latino-americana”.9 Por extensão, Augusto reconhece no alvorecer do tropicalismo uma informação marcadamente original, com consciência crítica de seus processos e referenciais, e chegando mesmo a identificar a existência de uma organicidade entre o tropicalismo e a poesia concreta. Porém, enquanto a poesia concreta aspirava à comunicação de massa pelo emprego de técnicas visuais, da imprensa e da publicidade, o tropicalismo operaria diretamente no âmbito do consumo de massa, com métodos e estratégias distintas, interseccionalizadas entre diferentes linguagens com destaque para o suporte musical. Esta aproximação se daria primeiro no campo da sintaxe espacial não discursiva, observados os casos de composições como “Clara”, “Acrilírico” e “Batmacumba”, mas sobretudo através de uma triangulação com a antropofagia cultural de Oswald de Andrade. Em diálogo com Augusto, o compositor de “Alegria, Alegria” pontuaria esse entendimento definindo o tropicalismo como um “neo-antropofagismo”.10 De fato, as composições tropicalistas empregariam a metalinguagem, aliterações e paronomásias, de maneira similar aos “processos de montagem e justaposição direta e explosiva de sonoridades vocabulares” que Augusto havia buscado nos Popcretos.11 Impulso comum na direção da diretriz mais cara a Augusto, a de uma poesia de invenção.

Cruzando a década de 1970 até os anos 1980, outros compositores surgiram com trajetórias ainda mais próximas aos procedimentos experimentais de cunho inventivo-radical preferidos por Augusto de Campos. Tom Zé, Walter Franco (1945–2019), Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção (1949–2003) e Arnaldo Antunes lançaram-se por terrenos igualmente movediços da criatividade experimental e, consequentemente, pouco afeitos aos trâmites mercadológicos e comerciais da indústria cultural. A desafiadora sensibilidade vanguardista daquele Caetano que animara Augusto a voltar sua atenção para a cena da moderna música popular brasileira, em um período que Zuza Homem de Mello chamou de a “Era dos festivais”, agora se via vencedora, capilarizada em uma constelação de novas mentes brilhantes ocupadas em avançar os limites da linguagem poética-musical. Caetano Veloso, polimórfica estrela no firmamento espetacular brasileiro, seguiu caminho coerente à autoavaliação feita aos berros no famigerado episódio de “É proibido proibir”: seguiu transitando por “dentro e fora das estruturas”, navegando entre um Araçá azul (1972) e um “Sozinho” (1998) sem prejuízos ou deméritos ao seu veio inventivo. Augusto, por sua vez, mirou para outras frentes de batalha, militando pela escuta de uma música de concerto “inventiva” que, via de regra, segue calada à margem das salas de espetáculo brasileiras.

Em O anticrítico (1986), livro que reúne trabalhos de tradução-arte entrelaçados ao fazer crítico, Augusto define o escopo de seu interesse balizando algo como o arco próprio da modernidade: “a minha meta é a poesia, que — de Dante a Cage — é cor, é som, é fracasso de sucesso, e não passa de uma conferência sobre nada”.12 O poeta que Augusto percebera em Caetano encontraria eco em outro artista comumente identificado pela especificidade da música. Em 1974, Augusto apontaria para John Cage (1912–1992) como “o maior poeta vivo americano/ talvez o maior poeta vivo”. Dos muitos Cages, o Cage escritor de “Conferência sobre o nada” (1949), que dizia tudo quando, segundo Augusto, poetas “já não nos dizem nada”. Mas sobretudo o Cage dos diários, Como melhorar o mundo (você só tornará as coisas piores), iniciado pelo artista em 1965 e mantido até 1982. Ainda nas palavras de Augusto, o diário de Cage havia sido “o único poema longo consistente escrito depois dos Cantos de Ezra Pound que [ele] consegui[ra] ler e amar”. A obsessão do poeta inventor pela escrita que atua sobretudo sobre a própria condição de linguagem, encontrou nos escritos de Cage a marca de um achado que tem o silêncio e seus ruídos como tônica fundamental da música depois da música. De “Viva Vaia” (1971), inspirado em parte e dedicado a Caetano, ao poema “todos os sons” (1979), onde o poeta elenca sua tribo, com João Gilberto entre John Cage e Anton Webern (1883–1945), dando a ela os predicados do corpo e seu princípio vital, o sentido da escuta em Augusto de Campos também se faz pela visão.

Todos os sons (1979). Augusto de Campos

Assim, talvez o mundo literário que a poesia concreta buscou encerrar, o da poesia lírica que, sacada da oralidade trovadoresca, passara a ser gerada na lógica da página impressa pelas penas dos poetas renascentistas do dolce stil novo — como bem identificado pelo poeta e crítico Eduardo Sterzi em sua série de artigos que investigam o tema das transições de fase na lírica moderna, assim como seu traçado até as poéticas limiares à pós-modernidade, com ênfase na obra de Augusto —,13 uma vez problematizado ao seu limite na materialidade concreta, reencontraria sua razão alhures, ao livrar-se do livro no trino de um Caetano, no inclassificável de um John Cage.

Dos versos suicidas de seu primeiro poema, “Fuga” (1948), às plaquetas digitais de ímpeto participativo publicadas no Instagram pelo combativo poeta nonagenário — politicamente crítico e incansável na denúncia da desdita dos tempos sombrios em que entrou o país no pós-golpe de 2016 — o retrato de Augusto de Campos mantém-se multifacetado como um prisma. Do visual ao sonoro, de uma plataforma para outra, de um sentido para o outro, em defesa da criatividade e mesmo da democracia, Augusto está presente, está pós-tudo e está por vir.