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Campos e espaços

Caetano Veloso e Augusto de Campos

Augusto de Campos faz 90 anos. Para mim, isso é motivo de intensa e profunda celebração. Já contei como sempre me pareceu intrigante que, dentre os luminosos componentes do grupo de poetas concretos de São Paulo, Augusto fosse aquele de quem mais me aproximei. Haroldo, com sua imaginação barroca, exibia exuberância e comunicabilidade, tanto na expressão poética quanto na procura crítica ou no modo pessoal. Décio Pignatari, que ensinou na ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial da Uerj), tinha seu nome citado em conversas que ouvi, tanto entre os componentes do grupo Teatro de Arena quanto em particular com meu amigo Rogério Duarte, baiano como eu e criador do inesquecível cartaz de Deus e o diabo na terra do sol. Os dois, Décio e Haroldo, figuras abertas e de brilho externo, do tipo que poderia prescindir de luz íntima. Na gíria, vinda da astrologia, que se instaurou na linguagem da minha geração quando nós chegávamos aos 20 (e eles já estavam nos 30), os dois eram “leoninos”. Bem, de fato eram ambos nascidos em datas que são tidas como postas sob o signo do Leão. O mesmo se dá comigo — e reconheço em mim algumas dessas características que listei para descrevê-los. Augusto é muito diferente de nós quanto a tudo isso. Confesso que nunca senti timidez na presença de Haroldo de Campos ou de Décio Pignatari, mas sinto-me tímido em algum nível quando estou com Augusto. É como se estivesse sempre em dívida com a atenção que ele porventura me dê. E foi ele quem mais atentou para mim e para meu trabalho, mal começamos o esboço do que veio a se chamar tropicalismo. Os dois leoninos apoiaram a valorização por Augusto daquilo que fazíamos. E chegaram perto para conversas e algum convívio. Augusto chegou mais perto, manteve-se mais longe — e foi sempre mais fundo.

Celebrar os 90 anos de Augusto não pode deixar de ser celebrar o contributo do grupo concretista como um todo para a vida mental brasileira. Augusto é o representante vivo dessa gigantesca experiência. Mas, a meu ver, ele a representou de modo mais concentrado nas fases avançadas do seu processo. Não digo isso sem estar consciente de que, tendo sido ele o que primeiro e mais diretamente falou sobre o meu trabalho, possa parecer privilegiá-lo por gratidão. Ou seja: que aqui fale mais Narciso do que Orfeu. Mas não é simples assim. Augusto é a manutenção radical da forma de apreciar o fato-poesia que nasceu no movimento concreto. Os ramos frondosos do exuberante Haroldo ou as inflorescências incomparáveis que Décio produziu podem às vezes afastar-se da raiz à qual Augusto mantém-se colado. Seria a acolhida dada ao fenômeno ocorrido na indústria cultural de que fiz parte seu maior e mais arriscado afastamento? Terá ele, com isso, ido mais longe da raiz do que seus pares doutorados na USP ou docentes da ESDI? Na verdade, os textos sobre Lupicínio Rodrigues e, mais tarde, sobre a Jovem Guarda, são já gestos nessa direção. Eu diria que com mais ênfase no aspecto de gosto e exigência formal no caso de Lupicínio, e, no caso de Roberto e Erasmo, mais estratégia de afirmação do que é defendido em Ezra, Arnaut, Dante ou e.e. via redimensionamento crítico das movimentações “middle-brow” na sociedade brasileira. O fato é que sua poesia e sua crítica seguem igualmente exigentes — talvez mais exigentes do que as de seus irmãos-companheiros — tendo incorporado essas escapadas.

Algo disso pode-se explicar pelo fato de Augusto, do trio, ser o caçula. É como se ele olhasse os outros dois — mormente Décio — como mestres imediatos. E terminasse por exigir-lhes, com o que faz, limpidez na coerência com as lições. Torna-se o guardião da mensagem — e a leva mais longe.

A ênfase que dou à militância de Augusto junto à canção popular não deve sugerir que os outros tivessem menos apreço por esta. A felicidade de Haroldo ao me ouvir contar que João Gilberto cantara (e me ensinara a cantar) o samba “Odete” — e que o fez (quase) gritar “Herivelto Martins!” — exibia a receptividade desses eruditos para com a música de rádio. A força quase polêmica com que Décio, no dia em que completava 80 anos, me repetiu, na Cidade do México, considerar Dorival Caymmi o maior compositor popular brasileiro é outro exemplo do foco na modinha que os três mantinham firme (e não só eles: no Rio, José Lino Grünewald, partícipe da empreitada concretista, derramava amor e conhecimento da canção brasileira dos anos 1920, 1930 e 1940).

Caetano Veloso, Tom Zé e Augusto de Campos

Entendo que o passageiro ativismo crítico de Augusto nesse campo tenha se dado porque ele vivencia a eleição da linguagem como força do dito, cantado ou escrito de modo intransigente. Vive-a como um movimento da alma, uma clareza do espírito — e uma responsabilidade para com a história. VIVA VAIA, flor céu boca pele, não, ão, pós-soneto, lula livre, paraulas, fora bolsonaro.1 Augusto salvou a internet antes de ela ser inventada. Hoje ele louva a capacidade de essa ferramenta disponibilizar joias culturais “para quem sabe procurar”. Mas ele já sonhava com o laptop quando compunha seu Poetamenos.2 Agora, como que ecoando o entusiasmo com que o prestigioso (e polêmico) poeta conceitual americano Kenneth Goldsmith me falou, em Nova York, da antevisão da internet por Augusto, este produz um poema gritantemente visual, um poema-cartaz, com apenas e exatamente as palavras do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal.3 Fica cada vez mais claro que a aproximação com os cancionistas foi parte do aprofundamento da radicalização.

A revista O Cruzeiro, nos anos 1950, apelidou, num título de reportagem, a produção dos jovens concretistas de “o rock’n’roll da poesia”. Eles se pareciam mais com a arquitetura de Brasília e com a bossa nova, mas o rock tinha chegado antes e viria a confirmar, já na última parte dos anos 1960, algo da piada da manchete. Como os tropicalistas, Augusto, representando o grupo concreto, acompanhou o interesse pelo tema, da Jovem Guarda a Jimi Hendrix e Janis Joplin.

Me lembro do apartamento de Augusto, seus filhos ainda pré-adolescentes, uma reprodução da Grande Jatte de Seurat na parede em frente ao sofá onde sentávamo-nos, aquela pintura inaugurando permanentemente a cientificidade na arte (o que, sem dúvida, ajudou a fazer os filhos virem a ser, um, artista-cientista, e, o outro, cientista-artista), as conversas estimulantes e cuidadosamente sugestivas com que Augusto encorajava o que havia de interessante em nós, sem jamais soar pedante, mas nunca retraindo um milímetro sequer o alcance de sua visada crítica. Lygia, a mulher da sua vida, que se achegou a ele via poesia (teria de ser assim), com sua presença doce e firme, mantinha luz serena na sala e nas falas. Os primeiros livros de Oswald de Andrade da minha vida. O lance de dados. O cummings de que eu ouvira falar no Diário de Notícias de Salvador, e de quem Glauber tinha publicado um poema em que a disposição gráfica das letras entrava como determinante da composição. O Joyce de Ulisses e, principalmente, o de Finnegans Wake, para além de Um retrato do artista quando jovem, que eu já tinha lido (com o “perto do coração selvagem da vida” que já havia, como frase solta, inspirado o título do romance de estreia de Clarice). O texto que continha a “geleia geral” de Décio, mal-entendida por quem a ouviu via tropicalismo. Essas coisas são parte da espinha dorsal de minha formação técnica e emocional.

Como os movimentos vanguardistas do começo do século XX, o concretismo apresentava obras e propunha uma perspectiva crítica. Poemas e manifestos eram publicados em páginas culturais de grandes jornais e, depois, em revistas organizadas pelos próprios poetas. Isso trouxe problemas para a vida de quem quis escrever poesia depois deles. A decretação da “morte do verso”, a valorização da forma, a dispensa até mesmo das palavras, tudo apresentado em “plano piloto”, pode levar quem queira ser poeta à conclusão de que um grupo de autores construiu uma muralha crítica em defesa do que fazem e em desqualificação do que quer que outros tentem fazer. Mas ninguém melhor do que Augusto expôs quão mais complexa do que isto é a questão que com eles surgiu. Num artigo para a Folha de São Paulo, ele cita um texto da crítica americana Marjorie Perloff em que se pergunta se se deve falar de uma “era Pound” ou de uma “era Stevens”. Pound era o poeta da colagem e da precisão das escolhas vocabulares, pondo o coloquialismo e o eruditismo sob exigência composicional nítida. Wallace Stevens, um poeta transromântico em cujos poemas um mistério subjetivo encanta, fascina e faz pensar, sem quebrar-se em citações em chinês ou em gíria americana. Leio mal poesia em inglês. Embora os chamados barrocos, mormente John Donne, me entrem em silêncio pelos ouvidos de forma tão perfeitamente irresistível e próxima quanto as traduções que dele fez Augusto. Por coisas assim é que sou capaz de entender o que Augusto diz sobre Pound e Stevens — e de sentir-me imediatamente perto dele e distanciado de Harold Bloom. Achei perda de tempo a leitura de A angústia da influência e, embora ler Gênio tenha sido interessante para mim, não tanto pelo detalhamento do seu “cânone ocidental”, mas pela demonstração de gosto pela literatura e alguma curiosidade comovente sobre certos autores, meu temperamento me afasta do acadêmico americano e me aproxima dos concretos. Augusto resume a complexidade da questão ao considerar que uma coisa é opor o colagista Pound ao subjetivista Stevens, “outra coisa é considerar que nenhum objetivismo estético elimina a inquietação subjetiva do ser humano e que não se pode, a não ser para efeito de atuação estética episódica e pragmática, proscrever como coisa do passado o reservatório emocional e a atividade simbólica do ser humano”. Neste mesmo artigo Augusto frisa que devemos evitar igualar “a poesia do ‘eu’ subjetivo (intimista e confessional) com a da consciência subjetiva (impessoal e abstrata), por mais que se comuniquem esses universos interiores”.

Na canção popular há verso e há romantismo requentado, mas tudo se dá em outro lugar da paisagem estética. Intuir o que um disco, um vídeo ou um stream pode fazer na geopolítica da indústria cultural (inclusive ou mesmo principalmente o que um desses gestos pode fazer de contracultura industrial), captar o que a história da alta criação pode adotar desses gestos (ou como algum deles pode arranhar, sacudir ou iluminar um recanto dessa área nobre) é tarefa crítica que não pode ser ignorada. A geringonça poética armada por Décio para publicidade de um vermífugo e exibida na revista Invenção é exemplo gritante. A despropaganda da Coca-Cola de um famoso poema, do mesmo Décio, outra (e em sentido oposto). Os Popcretos de Augusto, além. Ter construído junto a Gilberto Gil, Rogério Duprat, Julio Medaglia, Guilherme Araújo, Torquato Neto, José Carlos Capinam, Tom Zé, Gal Costa, Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias um espaço de instabilidade para o mainstream da música popular é ter entrado num território já tratado por eles.

O acompanhamento crítico de Augusto trouxe luz definida sobre o que podíamos fazer. Sua narração de visita feita a João Gilberto em Nova Jersey é uma obra-prima. E a capa da edição de Balanço da bossa que a contém (em que apareço sentado no chão e sendo olhado por João desde o alto, refletindo seu recado — “diga a Caetano que estou olhando pra ele”), montagem concebida por Augusto e Décio, é imagem que guardo na memória como um talismã e uma permanente exigência: não seguir a trilha radical esboçada por “Araçá Azul” é algo que vejo sempre um pouco como não ter atendido a essa exigência.

Caetano Veloso e Augusto de Campos. Foto: Marlene Bergamo

E, claro, Duprat, Medaglia & Cia. não estariam perto se não fosse o aviso dado por Augusto. Quando, nos anos 1970, Medaglia (o do maravilhoso arranjo de “Tropicália”, que deu cara ao movimento) lastimava nossa “queda” na produção de “boleros” e exaltava concertos de Rick Wakeman (um remanescente do rock progressivo cujas criações me pareciam vazias), eu quis comentar esse desequilíbrio com Augusto, que não aderiu a meu esboço de protesto. Entendi que ele não achava substrato para um julgamento nessa anedota. E me pus a pensar mais de duas vezes sobre o assunto. No entanto, depois que saiu Verdade tropical e eu lhe disse que, por reverência e carinho por Duprat, eu não tinha posto no livro que achava A banda tropicalista do Duprat um disco fraco, Augusto me disse: “Você devia ter posto.”

Em Verdade tropical, digo como discordo de Augusto quanto à maior importância de Mário Reis na formação do estilo de João Gilberto, em detrimento da influência de Orlando Silva e Caymmi sobre o pai da bossa nova. Anos depois das conversas sobre Medaglia e Duprat, Augusto escreveu um artigo em resposta muito completa à minha argumentação. O curioso é que, embora eu não tivesse mudado de opinião quanto ao caso, passei a considerar mais a irretocável prosódia de Lupicínio se comparada à de Caymmi — e a pensar em como era empobrecedor que eu tivesse apagado o lado “exterior”, do canto à pouca voz, em defesa de áreas “internas” (legati, como sempre em Orlando e nunca em Mário; canto-como-fala como no Caymmi dos sambas e não como na fala-como-canto de Mário etc.) da estética musical de João Gilberto. Caymmi e Orlando, claro, tinham muita ópera em seu canto. E eu vejo Augusto longe, mas mais perto, ensinando-me com paciência outras maneiras de ir fundo.

Visitante dos céus/Up From The Skies (Jimi Hendrix/tradução de Augusto de Campos).

No verão de 2019 para 2020, um jovem rapper entrou em minha casa de Salvador e quis me mostrar no seu smartphone o que ele mais gostava em música. Era um vídeo de Erikah Badu, gravado ao vivo, numa onda vocal/instrumental muito jazzística. Fiquei emocionado porque isso era como ter Augusto ali na sala da casa do Rio Vermelho. Eu nem tinha como dizer ao jovem. Mas disse. Significa muito para mim tudo o que Augusto ressalta. Adoro Erikah, mas a visão de Augusto a enaltece a meus ouvidos. Sempre fui louco por Lauryn Hill e uma das maiores alegrias que Augusto me deu mais recentemente (pouco antes das publicações da Galileu Edições) foi colocá-la, numa entrevista, ao lado da Badu. Ontem vi e ouvi, online, Augusto tocando blues numa mini-gaita, enquanto Cid tocava guitarra e cantava a versão feita por Augusto para “Up From The Skies” de Jimi Hendrix. Tenho muito orgulho de ter feito versões musicais para os poemas “Dias Dias Dias” e “O pulsar” — além de uma cinematográfica para “Flor da pele”. Mas o conjunto do trabalho verbivocovisuomusical feito por Cid, através de décadas, junto à poesia de seu pai, é a mais consistente comemoração para a completude dos seus 90 anos4.