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Uma resposta a Michael Walzer1

Desenho sobre manual de geografia econômica II, Helô Sanvoy.

Num artigo recente para a Dissent, o editor emérito Michael Walzer se pergunta em voz alta sobre o que significaria o termo “capitalismo racial”. O final do texto se abstém elegantemente de conclamar por um veto a essa expressão, mas se anima a sugerir que “o termo fosse sempre posta em questão pelos editores”, uma vez que ele não foi capaz de defini-lo satisfatoriamente.

Mas, antes de mais nada, por que Walzer estaria implicando sobre o que significa “capitalismo racial”? Ele bem que poderia ter-se feito essa pergunta.

A teoria do capitalismo racial envolve uma série de posicionamentos intelectuais a respeito de nossa estrutura social global, tal como se desenvolveu ao longo do século XX. No seu clássico Capitalismo e escravidão, de 1944, Eric Williams defendeu aquilo que os historiadores econômicos hoje conhecem como a “tese de Williams”: grosso modo, a ideia de que o tráfico transatlântico de escravos originou o desenvolvimento tanto do racismo global quanto do capitalismo. Nos anos 1950, seu colega de Trindade e Tobago, o sociólogo Oliver C. Cox, elaborou alguns dos principais elementos daquilo que se tornou a teoria do “capitalismo racial” nos livros Classe, casta e raça e Os fundamentos do capitalismo, nos quais ele notava as semelhanças e as diferenças entre as estruturas sociais do subcontinente indiano e as da Europa pré-capitalista. Entre suas várias conclusões, está a de que “o antagonismo racial… desenvolveu-se dentro do sistema capitalista, como um de seus traços fundamentais”.

O teórico político afro-americano Cedric Robinson seguiu esse caminho no seu trabalho Marxismo negro, um texto que criticava Marx e os marxistas de ponta a ponta, por marginalizar e dar pouca atenção aos povos não europeus. Identifica-se frequentemente o livro de Robinson como a origem do termo “capitalismo racial” por se referir ao modo de compreender a história geral do capitalismo global, tal como formulado por ele mesmo e aqueles pensadores. A geógrafa e abolicionista afro-americana Ruth Wilson Gimore, uma das principais teóricas do capitalismo racial, foi além, com sua famosa definição de racismo como “a produção e exploração, sancionada pelo Estado ou ilegalmente, da vulnerabilidade face a uma morte prematura com base na diferenciação de grupos”. Segundo a autora, o racismo, assim entendido, tem sido importante para os regimes que tentam sobreviver em meio a crises políticas e econômicas — o que desse modo confere ao racismo um papel funcional na produção e na reprodução do próprio capitalismo.

A ideia que unifica esses teóricos é a de que as conquistas coloniais europeias, iniciadas em 1492, disseminaram tanto os laços econômicos que se iriam constituir no capitalismo, quanto as formas de organização social que iriam resultar nas raças. Para Robinson, um motivo importante na interconexão desses dois fenômenos foi o de que a Europa, a região do mundo que produziu os impérios mundiais capazes de constituir-se em sistema, já estava racialmente organizada. Ele argumenta que as formas de conquista, espoliação e exploração do trabalho que chegariam aos nativos da América e aos africanos, assim como as ideologias que justificavam seu jugo, já tinham sido aplicadas em menor escala sobre os eslavos e os irlandeses. Não ocorreram, portanto, dois atos separados de criação, mas um único ato de disseminação das formas sociais europeias, que deixou como legado o capitalismo e o racismo.

Levando em conta este contexto, é fácil de ver porque a discussão de Walzer sobre o capitalismo racial não se coloca. Ele começa atribuindo um motivo para o próprio uso do termo, dizendo que “o capitalismo racial seria um tipo de capitalismo, havendo, portanto, outros tipos, que exigiriam outros adjetivos.”, e que “a função do adjetivo, assim, seria simplesmente chamar nossa atenção, com bons motivos, para os trabalhadores não brancos”. Walzer está equivocado nesses dois aspectos — se Cox, Robinson, William e Gilmore estão certos, o capitalismo racial é o único tipo de capitalismo que já tivemos. A função do objetivo é chamar nossa atenção para as formas mais amplas de organização social que constituem a vida social sob o capitalismo, para além do modo com que o capitalismo organiza o trabalho e a produção.

Walzer então indaga se os trabalhadores explorados na Manchester de 1844 participavam de um sistema (racialmente) capitalista, uma vez que eram brancos. Ele se aproxima do início de uma resposta correta — reconhecendo que o algodão processado nas fábricas era cultivado pelo trabalho escravo — mas insiste que “a questão fundamental é a exploração, não o racismo”. Afinal, diz Walzer, o capitalismo teria surgido do mesmo modo se os negros não tivessem sido atingidos pelo tráfico de escravos — teria simplesmente explorado, em vez deles, os trabalhadores irlandeses.

Registre-se, aliás, que isso está provavelmente errado: no total, estima-se que o comércio transatlântico de escravos traficou mais de 12 milhões de africanos ao longo dos séculos (para termos uma ideia da proporção, o total da população da Irlanda no século XVII era de menos de 2 milhões de habitantes).

Mas este ponto não altera a questão principal. O papel da inelutabilidade e dos contrafactuais no argumento de Walzer envolve uma confusão a respeito daquilo em que os teóricos do capitalismo racial estão engajados. Suponha-se que estamos tentando entender por que um edifício retém determinada quantidade de calor. Entre as coisas que gostaríamos de saber, está a de qual o material do edifício e de como estão organizados seus vários elementos. Não seria relevante saber se os arquitetos poderiam ter tomado decisões diferentes na disposição dos cômodos ou se diferentes materiais poderiam ter sido selecionados.

Exatamente da mesma maneira, os teóricos do capitalismo racial não estão interessados em saber quais as características que o capitalismo poderia ter tido em algum mundo hipotético. Descrevem-no com base nos traços que ele de fato tem — não sendo importante se esses traços foram contingentes, se baseados nas idiossincrasias das pessoas e dos processos que o produziram, ou se teriam se mantido no caso de alguma hipótese contrafactual ter prevalecido. Tal como foi formulado, o tipo de resposta tentado por Walzer levanta questões diferentes daquelas que os teóricos do capitalismo racial procuram responder.

Obviamente, toda essa teorização não se destina apenas a descrever o mundo, mas também a ajudar na sua transformação. E aqui seria possível pensar que os contrafactuais têm relevância: alguém poderia hipoteticamente construir um sistema de produção e de exploração do trabalho que não fosse organizado em torno do racismo, ou um sistema feudal em que todos os senhores fossem brancos e os servos, negros. Mas o foco da teorização sobre o capitalismo racial é sustentar que o sistema atual, contra o qual lutamos, não se assemelha a nenhuma dessas construções hipotéticas: é um sistema em que racismo e capitalismo sustentam-se mutuamente.