Terceiro milênio: o recado amazônico de Jorge Bodanzky1
Imagens de tratores derrubando grandes árvores aparecem na tela. Com uma trilha sonora heroica ao fundo e uma narração em tom épico, a voz em off declara: “a revolução chega à selva”. A filmagem colorida é de um cinejornal de 1971 sobre a construção da Rodovia Transamazônica. O narrador celebra a inauguração de uma “nova história” para a Amazônia que apagaria os saci-pererês, iaras e cobras-grandes, figuras-chave de mitologias indígenas, sem mencionar uma única vez os povos indígenas cujas terras o governo pretendia colonizar. O narrador continua observando que este “pensamento mágico” seria substituído pela “magia do desenvolvimento”.
Os cinejornais eram produzidos pela Agência Nacional, fundada em 1945 para fornecer e distribuir notícias oficiais, programas de rádio e filmes abordando assuntos considerados de interesse nacional. Durante a ditadura militar (1964–85), vários cinejornais apresentaram os planos do governo para desenvolver a Amazônia e “integrar a região à nação”, com edições especiais dedicadas à Transamazônica, o plano mais ambicioso do regime. Os cinejornais eram exibidos em cinemas de todo o país. Quando comecei a pesquisar a produção cultural brasileira sobre a Amazônia entre os anos 1950 e o início dos anos 1980, fiquei intrigada com o que me pareceu ser um descompasso entre a importância da região para o desenvolvimentismo desde o pós-guerra e sua aparente ausência dos meios artístico e literário. O que mais me impressionou foi a falta de longas-metragens sobre a Amazônia durante boa parte da ditadura militar.
A maioria dos filmes brasileiros realizados entre os anos 1950 e 1980 abordavam a vida rural no nordeste ou o ambiente urbano do sudeste, incluindo os filmes comerciais produzidos pela Vera Cruz em sua breve duração, os filmes patrocinados pela Embrafilme e a produção de vanguarda do Cinema Novo e do Cinema Marginal. As preocupações com a formação e a identidade nacional, o desenvolvimento e o subdesenvolvimento foram centrais para o pensamento social e a cultura brasileira da época, como apontou o estudioso e crítico de cinema Ismail Xavier. A produção cinematográfica mais inovadora do período abordou essas mesmas questões.2 Surpreendentemente, a Amazônia, que foi central para o projeto nacional-desenvolvimentista, está praticamente ausente desses filmes. Isso é ainda mais intrigante dado o investimento do governo na produção de materiais audiovisuais sobre a região.
Nas últimas décadas, uma série de filmes sobre a Amazônia, feitos cada vez mais em colaboração ou inteiramente por amazônidas, incluindo indígenas, mudaram a cara do cinema brasileiro. No entanto, quando o cineasta brasileiro Jorge Bodanzky fez Iracema, uma transa amazônica, em 1974, foi um divisor de águas. O “docu-ficção”, ou seja, um filme híbrido que combina estratégias ficcionais e documentais, tornou-se um emblema do cinema experimental brasileiro. A maioria dos críticos o viu como um retrato mordaz da nação brasileira sob a ditadura, que retoma e transforma o imaginário Romântico forjado no romance Iracema: lenda do Ceará, de José de Alencar, publicado em 1865. O filme mostra ainda as consequências das políticas desenvolvimentistas na Amazônia, questionando as premissas modernizadoras do Brasil, e pode ser considerado um documento do surgimento da ecologia.
O agora clássico Iracema foi o primeiro longa-metragem de Bodanzky, codirigido com Orlando Senna. Desde então, Bodanzky dedicou a maior parte de sua carreira a filmar na Amazônia. No entanto, nenhum desses filmes atingiu um público amplo. Um deles é Terceiro milênio (1980), codirigido com o colaborador alemão de Bodanzky, Wolf Gauer. O filme documenta tanto a complexa situação da Amazônia no início dos anos 1980 quanto formas imaginativas e alternativas de pensar sobre a sociobiodiversidade da região, assim como seu papel na criação de um futuro para o planeta. Se é verdade que a falta de distribuição comercial impediu o filme de ter mais impacto, seu lugar marginal na história do cinema brasileiro também reflete a falta de apelo que tinha a Amazônia mesmo para o cinema político do período. A região tem sido exaustivamente pintada desde os tempos coloniais e, com a invenção da fotografia e do cinema, o apelo visual da Amazônia ficou claro. Houve muitos filmes sobre a Amazônia na primeira metade do século XX, porém não no período em que foi objeto de um projeto desenvolvimentista megalomaníaco e, coincidentemente (ou não), quando grandes áreas da floresta estavam sendo destruídas e povos indígenas deslocados ou mortos.
Terceiro milênio acompanha o ex-senador do Amazonas Evandro Carreira (1927–2015) em um comício político ao longo do rio Solimões. Carreira e uma pequena equipe zarpam em um barco rio abaixo de Tabatinga — na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia — até a capital do estado, Manaus. No caminho, visitam os povos Maiuruna e Ticuna, conversam com um grupo de madeireiros, agentes da Funai (Fundação Nacional do Índio), caboclos, indigenistas, ativistas e assistentes sociais. Filmaram também uma comunidade religiosa ultraconservadora liderada pelo missionário José da Cruz (1913–1982), a Ordem Cruzada Católica, Apostólica e Evangélica, que reunia mais de 30.000 indígenas. Apesar da seriedade das questões em jogo, Terceiro milênio é um delirante “no-road movie” (filme sem estrada), percorrendo rios ao invés de estradas. A excentricidade afetada de Carreira dá tons ficcionais ao personagem, tanto que muitas pessoas que assistiram ao filme na época perguntavam se Carreira era, de fato, um ator contratado para o papel.
Bodanzky diz que deu este título ao filme por ter percebido que as ideias prescientes de Carreira sobre a Amazônia só seriam compreendidas no terceiro milênio. Partindo do campo da economia ecológica e dos escritos de intelectuais amazônicos, como Ramayana de Chevalier (1909–1972), Carreira destacou a centralidade da água no bioma e na cultura amazônicos. Mas, para além de seus discursos enaltecedores sobre a “hidroMedusa”, ele insistiu no papel da Amazônia, e particularmente do Amazonas, o maior estado do Brasil, no que chamou de “uma nova revolução copernicana”. Assim como Copérnico revelou que a Terra não era o centro do universo, Carreira insistiu para que os humanos entendessem seu verdadeiro lugar no planeta.3 Nisso, ele ressoa com a ética de manejo consciente do planeta defendida pelos ecologistas.
Carreira presidiu uma comissão parlamentar em 1979 para investigar a devastação da floresta amazônica e suas implicações ecológicas e sociais. Ele foi contra projetos para desenvolver a Amazônia centrados em grandes plantações de monocultura ou fazendas de gado, assim como a exploração predatória de recursos. Na década de 1970, economistas e administradores de todo o mundo estavam preocupados com o crescimento exponencial da população e com os meios para alimentá-la. Enquanto alguns viam nisso uma desculpa para um crescimento irrestrito, contando com a tecnologia para mitigar a degradação ambiental, o período também testemunhou uma mudança na visão humana da natureza. Ao longo da década de 1970, manifestações populares por reformas ambientais e a fundação dos primeiros partidos verdes, entre outras coisas, questionaram o consenso desenvolvimentista.
No Brasil, entretanto, os militares posicionaram a proteção ambiental como inimiga do progresso. Na primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, os delegados brasileiros se opuseram à regulamentação ambiental, argumentando que atrasaria a marcha dos países em desenvolvimento rumo à industrialização.4 Ao mesmo tempo, como demonstraram as cientistas políticas Kathryn Hochstetler e Margaret E. Keck, a esquerda era muito conservadora em termos de ideias ecológicas, mesmo quando a sociedade brasileira mostrava crescente interesse pelo tema e movimentos ambientais eram organizados na esteira dos movimentos sociais contra o regime autoritário.5 Carreira se destacou em sua crítica ao desenvolvimentismo, defendendo um desenvolvimento mais sustentável, que incluía atividades extrativistas menos prejudiciais à floresta.
Mas se a ecologia era um tanto contracultural na época, hoje é cada vez mais relevante para as ciências. A importância da Amazônia para o balanço de carbono da Terra não pode ser subestimada. Em 2019, cientistas da Universidade de Princeton modelaram os impactos climáticos da substituição da floresta amazônica por fazendas de gado. Os resultados são drásticos para o clima global. Além disso, o cientista brasileiro Antonio Nobre, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), vem enfatizando o impacto da região amazônica no ciclo de água global devido aos seus extraordinários rios voadores, cujas implicações para a chuva e a umidade se estendem a todo o mundo. Seu irmão, o cientista ambiental brasileiro Carlos Nobre, desenvolveu uma proposta para um novo modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia que se baseia na preservação da floresta e na valorização dos ativos da biodiversidade com o auxílio de tecnologia de ponta.6 Quando Carreira defendeu algo do tipo em Brasília, seus colegas no senado riram dele, fato capturado pela câmera de Bodanzky.
Ao mesmo tempo, o título ressoa com as próprias ideias messiânicas de Carreira e também sua retórica — em seu livro Recado amazônico (1975), ele postula seus projetos para a Amazônia como uma missão — ecoando a longa história do messianismo na Amazônia, da qual a comunidade missionária de Cruz é apenas um exemplo. O primeiro contato dos Ticuna com os jesuítas espanhóis data do século XVII, resultando no estabelecimento de várias missões na região do rio Solimões. Nesse mesmo século, o padre jesuíta português Antônio Vieira passou muitos anos no Brasil, coordenando missões religiosas nas províncias do Maranhão e Grão-Pará. Vieira escreveu seu primeiro tratado futurológico Esperanças de Portugal, V Império do Mundo em 1659, enquanto estava na Amazônia. Ele apresenta como papel de Portugal, mais do que qualquer outra nação, o de avançar no mundo não cristão e converter almas à igreja católica. O quinto e último império milenar levaria ao Juízo Final e ao fim da história.
O milenarismo tem uma história complexa. Vieira, por exemplo, era contra a escravidão dos povos indígenas, enquanto trabalhava arduamente para convertê-los ao catolicismo. Mas, antropólogos também mostraram como os povos indígenas sempre negociaram o encontro com missionários e indigenistas. A mitologia ticuna, por exemplo, estava repleta de ideias messiânicas e escatológicas.7
Ainda assim, a maioria das missões religiosas dependia da desindianização dos ameríndios, ou seja, impunham crenças e modos de vida exógenos que buscavam se livrar da diferença indígena. Por exemplo, o projeto de Vieira se apoiava na incorporação dos gentios ao corpo da igreja, o que pressupunha que eles superassem seu “estado de gentio” como condição para a salvação de suas almas.8 De forma análoga, as políticas indigenistas da época da ditadura buscavam integrar os povos indígenas “à comunidade nacional”, como postulava o Estatuto do Índio em 1973. A missão de Carreira trafegava na direção oposta. Para ele, foi precisamente a indianidade, ou seja, a relação não dicotômica dos indígenas com a natureza, que foi responsável pela preservação da biodiversidade amazônica durante séculos. Enquanto os líderes messiânicos ou os funcionários do Estado se apoiavam nas premissas da desindianização, Carreira, que se autoidentificava como caboclo, propôs tomar a Amazônia e os amazônidas como modelo para um novo mundo.
O filme, entretanto, está longe de aderir sem críticas ao messianismo de Carreira. Na sequência final, Carreira é filmado na floresta, quase em estado de transe. Ele sobe em um pequeno morro próximo a um lago cheio de vitórias-régias, usando uma sunga colorida e estampada, e começa a fazer um discurso como se estivesse pregando. Embora Carreira seja às vezes visionário, seu discurso não está isento de cair em clichês coloniais sobre a Amazônia, como quando compara a floresta a uma donzela. E então ele acrescenta grotescamente que ela não deveria ser estuprada, mas “deflorada com afeto”, o arcaísmo dos termos revelando a longa história de violência enraizada na história do colonialismo, das missões religiosas e do heteropatriarcalismo.
Trinta anos após filmar Terceiro milênio, Bodanzky voltou à região do alto Solimões para participar de uma oficina para discutir técnicas audiovisuais com o povo Ticuna. Em De volta ao terceiro milênio (2006), os Ticuna assistem ao filme de 1980, rindo de muitas das passagens, enquanto também faziam correções às histórias contadas no filme. Os Ticuna criticam a missão de José da Cruz, que quase exterminou sua língua e cultura. No entanto, parecem admirar Carreira, apesar de suas maneiras eventualmente paternalistas. Apenas o solilóquio final sobre “defloração” merece reparo. Uma mulher reage à sua linguagem, dizendo: “mas isso é estupro!”. À medida que mais indígenas juntam-se à conversa, eles apontam os limites tanto das missões religiosas quanto do desenvolvimentismo, e contribuem com formas alternativas de pensar o planeta e a própria possibilidade de um futuro para o ser humano nele. Um caso em questão é o livro do ativista e pensador indígena Ailton Krenak apresentando algumas ideias para adiar o fim do mundo.9
Na década de 1970, Carreira chamou a atenção de Bodanzky como sendo um visionário, uma vez que suas visões sobre a Amazônia eram diferentes das correntes dominantes e dos planos oficiais para a região. Não obstante, o filme permanece notavelmente urgente hoje. Desde a posse de Jair Bolsonaro em 2019, ele não apenas trouxe os militares de volta ao governo, mas também derrubou importantes conquistas democráticas, incluindo a demarcação de territórios indígenas e as regulamentações ambientais. Os projetos do atual governo para a Amazônia são estranhamente similares aos da ditadura, inclusive no uso da linguagem. Como resultado, o desmatamento, assim como a violência contra povos indígenas e ativistas de direitos humanos aumentaram em taxas alarmantes. Já passou da hora de começar a pensar no terceiro milênio.