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Rumo ao Terrestre! Habitar a Terra no novo regime climático

Resenha do livro Onde aterrar? — como se orientar politicamente no Antropoceno, de Bruno Latour. Bazar do Tempo: Rio de Janeiro, 2020.

Mariana Serri. da série Chão (Jardim e a sexta extinção), 2019.
Óleo e cera sobre tela. 140×210 cm.

Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno — publicado originalmente na França em outubro de 2017 e agora lançado no Brasil pela editora Bazar do Tempo na tradução de Marcela Vieira — é um livro extraordinário na prolífica obra do filósofo francês Bruno Latour. Sua peculiaridade advém curiosamente de seu caráter um pouco ordinário. Ao buscar, como tantas outras obras, oferecer um comentário sobre acontecimentos políticos extremamente recentes e adicionar sem rodeios ao discurso coletivo em torno deles em seu sentido mais tradicional — uma eleição e um referendo —, Onde aterrar? se destaca de obras anteriores do autor, sobretudo nesta década, em que ele publicou apenas outros dois livros, ambos longos e teoricamente densos, Uma investigação sobre os modos de existência1 e Diante de Gaia.2

A proposta que Latour avança no livro, no entanto, não tem nada de ordinária. Escrito na ocasião da vitória no referendo pela saída da Inglaterra da União Europeia, o chamado Brexit, e da eleição de Donald Trump nos EUA, Onde aterrar? sugere nada mais nada menos do que a total reorientação da política tal qual ela é praticada no Ocidente desde o início da modernidade. A importância desses dois acontecimentos do ano de 2016 (e também da crise de migração europeia que começou em 2015) para o filósofo é a de representar definitivamente o fim do ímpeto, ou melhor, da possibilidade, de globalização que marcara a segunda metade do século XX. Estados do Norte Global que no passado fizeram de tudo para forçar países do Norte e do Sul a abrirem suas fronteiras e seus mercados — seja diretamente, seja através de instituições como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional — agora buscam cerrar os portões, controlar minuciosamente o tráfego de pessoas e se isolar politicamente de orientações e decisões internacionais como aquelas que pautam os direitos humanos ou ações contra as mudanças climáticas (e, atualizando o diagnóstico, orientações internacionais para prevenção de pandemias).

Onde aterrar? é pensado, admitidamente, por um europeu e, sobretudo, como indica o último capítulo, para europeus. No entanto, por certo há muito que não europeus podem aprender sobre uma possível reorientação da política em direção ao Terrestre — que apresento brevemente a seguir —, desde que se parta de saída da necessidade de situar as críticas, insights e propostas de Latour. A América Latina, é evidente, viveu há muito tempo a “traição” das promessas da modernidade para se encaixar em uma narrativa em que “agora nos damos conta que” elas não vão se concretizar. Latour deseja, todavia, dar prosseguimento ao projeto pós-colonial de “provincializar a Europa”, pelo qual clamava Dipesh Chakrabarty, sem que isso tenha a forma dos localismos nostálgicos, e isso é algo que podemos apoiar.

O livro é composto de 20 breves capítulos em que se elaboram cumulativamente elementos da reposta à pergunta “onde aterrar?”. Esse questionamento busca articular um dilema que se impõe: o que se deve fazer agora que as mudanças climáticas deixaram claro (ainda que as ações das “elites obscurantistas”, como diz Latour, apontem para uma resposta contrária) que não há outra Terra para onde seria possível escapar rápido o suficiente para não sofrer os efeitos dessas transformações? Buscando elaborar uma resposta ampla e inclusiva, o filósofo escreveu um de seus livros mais acessíveis, evitando citações e referências no corpo do texto e mesmo certos conceitos que pudessem gerar mais hesitação do público não especializado, como o conceito de Gaia, que trabalhou em detalhes no seu livro anterior, e só aparece uma vez no corpo do texto, sendo substituído pelas noções de Terrestre e Zona Crítica. A intenção é de se alcançar o maior número de leitores possível e, supostamente, criar alianças inesperadas no rumo ao Terrestre. Abordo a seguir talvez não aquilo que melhor sumariza o livro, os principais conceitos que oferece e mobiliza, ao menos não em detalhe, mas aquilo que urge para mim, nossas condições e capacidades coletivas de habitar a Terra outramente.

A premissa da qual parte o livro é a de que as orientações estabelecidas da política no Ocidente — a saber, as oposições entre Local e Global, e entre Esquerda e Direita — não são capazes de dar conta das transformações em curso no contexto da transição ao Novo Regime Climático. A primeira oposição, entre Local e Global, é há décadas alvo de críticas por Latour, por várias razões, mas talvez em Onde aterrar? essa crítica ganhe sua forma mais direta, construindo em cima do desenvolvimento mais detalhado em Diante de Gaia. Para Latour, o Global foi produzido a partir do Globo metafísico da modernidade, que sustentou a ideia do que ele chama na obra de natureza-universal e, por conseguinte, das expressões modernas da filosofia, da religião, da política e da ciência. O Global permitiu cartografar a Terra e o cosmos, tornando-a um planeta entre outros; os desenvolvimentos tecnológicos possibilitados por essa invenção, nós conhecemos. No entanto, a perspectiva que o Global produziu é a de um observador extremamente distante, que acompanha de fora, desinteressado, o curso de acontecimentos que se encadeiam mecanicamente. São duas as principais consequências disso: (1) essa perspectiva se tornou o próprio molde do conhecimento, o que tornava quase impossível dar importância, prestar atenção, em acontecimentos que divergissem dele; (2) o Local se formou como resto e negativo do Global, isto é, algo próximo, interno, interessado, incapaz de observar os verdadeiros encadeamentos de causa e consequência. Essa natureza-universo, pondera Latour, poderia ter permanecido mais ou menos inofensiva se o vetor de modernização não tivesse capturado essa interessante invenção que foi o Globo como o local onde se concretizaria sua utopia prometida.

Desde então, vivemos uma corrida frenética, fugindo de tudo que pudesse cheirar ao Local: a tradição, o pertencimento, o mundano. O que Latour aponta, porém, é que a percepção das consequências futuras das mudanças climáticas, já na segunda metade do século XX, revelava que não há planeta o suficiente — apesar de o Globo parecer infinito — para abrigar a modernização. E isso foi algo que as elites rapidamente perceberam, embarcando, então, em sua missão obscurantista de negar, confundir, redirecionar, as evidências crescentes que objetivavam o aquecimento global e seus efeitos na Terra. Mas, para Latour, não foi até a eleição de Trump e sua declaração de que abandonaria os compromissos do Acordo de Paris que a guerra das elites contra o mundo foi deflagrada. A contradição entre modernização e os limites da Terra — e um possível vetor contrário, de ecologização — não havia sido reconhecida tão aberta até esse momento. E a escolha das elites foi de cerrar suas fronteiras, retornando a um Local perdido, livre de contradições, e, ao mesmo tempo, de seguir globalizando seus modos de vida, coletando e queimando petróleo (e carvão) como nunca antes, ocupando militarmente toda a atmosfera com suas emissões de dióxido de carbono. Guerra à Terra. Guerra aos pobres. Guerra ao futuro.

É diante deste espantoso e desanimador cenário que Latour busca descobrir onde aterrar. Que mapa é possível desenhar, a partir de que afetos e bases, para indicar o caminho onde poderíamos seguramente habitar a Terra? O deslocamento de perspectivas gerada pela declaração de guerra das elites, acredita o filósofo, indica claramente para onde devemos ir: em caminho inverso. Se as elites modernistas querem seguir sua marcha para mais além, plus ultra, em direção ao Fora-deste-Mundo — um polo anômalo que captura tanto o Local quanto o Global em seu negacionismo —, devemos ir na direção contrária, para o Terrestre, para dentro das dobras da Terra, plus intra. Mover-se em direção ao Terrestre não é fácil, pois os sujeitos modernos não possuem um mapa até lá, nem mesmo compartilham um chão comum com outros seres terrestres, tudo que diz respeito à Terra vive lá fora, longe, na Natureza, enquanto os Homens moram na Cultura. Os movimentos ambientalistas, afirma o autor, já ensaia(va)m um movimento ao Terrestre, no entanto, eles nunca poderão concretizar essa passagem se forem adestrados pela modernização (na forma, por exemplo, capitalismo verde, sustentabilidade), pois, no final das contas, são direções contrárias.

Para encontrar o Terrestre, onde afinal poderíamos aterrar, Latour sugere alguns passos. Primeiramente, a política exclusivamente humana, feita em e entre Sociedades, deve chegar ao fim: a afirmação de soberania dos Estados, a gestão das populações ou o bloqueio de fronteiras não podem mais se apresentar como a tarefa primeira da política. Isso deve nos levar, em segundo lugar, a transformar aquilo que se chamava Natureza — que, vista de infinitamente longe, só podia gerar afetos fracos quando falávamos em protegê-la ou preservá-la — em território. Não se trata do território como imaginado pelo Local, remanescente de um processo de Globalização que ainda está por acontecer, e nem o território mapeado pela Modernidade — a propriedade privada, o monopólio da terra, a exploração do solo —, mas sim um terreno de vida, aquilo de que um terrestre, humano ou não, depende para sobreviver. Essa nova forma, de que necessitamos urgentemente segundo Latour, é aquela talvez que as pessoas se sintam motivadas a proteger, um solo que cria, reproduz e amplia as condições de vida de um terrestre. Mas como identificar um terreno de vida? Como lutar por algo agora que as estratégias e direções comuns da modernidade perderam sua clareza?

O filósofo defende que, diante do rompimento do “pacto” moderno e da promessa de que o chamado progresso chegaria a todos, as categorias das lutas históricas foram abaladas. Ideias como libertação e emancipação, referências temporais e espaciais como passado e futuro, local e global, e, sobretudo, as orientações políticas entre Esquerda e Direita perderam sua referência. Para Latour, trata-se de atualizar os termos para as lutas contemporâneas em que Esquerda e Direita não são mais as posições determinantes da arena política, e sim Terrestre e Moderno. Ele acredita que apesar da continuidade da primazia e do poder da análise pelas classes sociais, nossa herança marxista, ela está defasada, pois diz respeito a um social que não mais existe e a classes que são compostas de outra maneira. Ao longo do século XX, lutas sociais e ambientais frequentemente foram postas em aparente contradição, pois o ambientalismo ameaçava desacelerar a modernização que prometia trazer justiça social. A nova arena política geossocial de Latour, em que o geo é um agente presente, pretenderia unir lutas sociais e ambientais –que, no final das contas, seriam a mesma luta — na medida em que ambas se encontrariam na necessidade de proteger seus terrenos de vida. Isto é, não se trata de modo algum de encontrar uma posição no “centro” entre Direita e Esquerda como polos, mas de ressituar essa distinção a partir da perspectiva do Terrestre, simultaneamente rejeitando ir para Fora-deste-Mundo e convencendo o Local e o Global a aterrar. Ejetadas da natureza-universal da Modernidade e aterradas na natureza-processo do Terrestre, as novas classes sociais encontram sua composição na combinação particular de terrestres — humanos, coisas, bichos, moinhos, bactérias, rios, fábricas, montanhas — que lhes possibilita a sobrevivência.

Operar esse deslocamento implica a repolitização do pertencimento a um solo tentando manter-se totalmente no oposto dos novos velhos movimentos supremacistas. Por isso que, para o filósofo, o século XXI é a época dos movimentos geosociais. É aqui que há mais claramente a possibilidade de uma abertura descolonizante, pois Latour sugere — ainda que pouco, ou menos do que em obras anteriores — que o aprendizado dessa politização, não apenas econômica e social, mas cósmica, do solo pode — eu diria deve — ocorrer junto aos povos que além de desenvolveram essas tecnologias ao longo de muito tempo, ainda resistiram às maneiras de habitar a Terra que a modernização tentou forçar sobre eles. Se há uma vanguarda dos movimentos geosociais terrestres entre os humanos (pois, como aponta Latour, estender a política aos não humanos sugere que há mais pontos de origem possíveis para os clamores por revolução), certamente ela se encontra entre os movimentos que se fizeram pela terra, por esses terrenos de vida. Lutas que bloquearam e bloqueiam a própria lógica da criação de territórios como meras propriedades privadas ou fontes de recursos para a produção.

É evidente, mas sempre cabe repetir, que não se trata de um clamor por qualquer “retorno” ou “regressão” que seja. O não-moderno, como lembra o próprio autor, é uma imagem de um futuro possível, desejável. Ao lado das múltiplas práticas não-modernas suprimidas e violentadas, devemos também fazer florescer as ciências, sobretudo aquelas que não são praticadas do distante ponto de vista da natureza-universo, mas da imbricada e complexa perspectiva da natureza-processo. A distinção, por certo, não é valorativa, apenas uma questão de pertinência. Uma galáxia como Andrômeda certamente só pode ser vista de longe — e, na maioria dos casos, não vai ter em jogo em sua constituição o destino de um terreno de vida —, mas um lençol freático, um cogumelo, uma certa espécie de sapo, um vírus, bom, aí já temos outras histórias para contar. As ciências que se ocupam desses objetos são as que tratam do que Latour chama de Zona(s) Crítica(s), essas finas películas em que a vida transformou radicalmente águas, terras e ares. Uma Zona Crítica, quando reduzida ao olhar distante da natureza-universo, perde sua complexidade e torna-se difícil ver as múltiplas dobras que a constituem e incluem um enorme número de terrestres e maneiras de conhecê-los.

O Holoceno acabou. Esse regime climático surpreendentemente estável que possibilitou uma multiplicação inédita de humanos dá agora lugar a um Novo Regime Climático, que Latour prefere, estrategicamente, chamar de Antropoceno. Certamente, esse não é o melhor nome. De todo modo, será uma época de mudanças súbitas, brutais e impiedosas que exigirá o melhor e mostrará o pior de que os humanos são capazes. Nenhum de nós passará impune, mas certamente as piores consequências imediatas se distribuirão de maneira desigual, como costuma acontecer. A indiferença não é uma opção, ela é um negacionismo do mundo, é habitar Fora-deste-Mundo. Ao invés de uma época de desespero esperançoso e projetos megalômanos de geoengenharia pensados do ponto de vista das estrelas, como se a Terra fosse um planeta qualquer, podemos mergulhar nas mil dobras da Terra e conhecê-la como nunca antes, a partir das ciências e inúmeras outras formas de saber. Não em busca de uma solução única e definitiva, mas de maneiras de habitar a Terra, produzir terrenos de vida, cultivar vínculos que possam florescer e persistir.

Bruno Latour, pelo que mostra seu último capítulo, parece encontrar alguma esperança no experimento da União Europeia. Que ela, diante de seu legado de horrores, possa se mostrar à altura dos tempos e protagonizar os deslocamentos necessários em direção ao Terrestre. Não apostemos nisso. Pelo contrário, coloca-se para nós a tarefa de pensar a partir de nossos terrenos de vida, daquilo que possibilita nossas existências coletivas e daquilo que as ameaça, como construiremos um futuro terrestre.