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Revolução conservadora e neoliberalismo

parte 1

Nota editorial

Era conhecida a meticulosidade com que Ruy trabalhava seus textos. À exaustão, procurava aparar cada detalhe, de forma e conteúdo. Ainda que não estivesse pronto, o texto que ora apresentamos já estava em estágio muito avançado e havia sido planejado pelo próprio Ruy para publicação no 2ª ou 3ª número do primeiro volume da Rosa. Por conta disso, decidimos — com a autorização e concordância de sua família — editá-lo para publicação.

O texto começou a ser pensado em meados de 2019. Depois de uma longa pesquisa, Ruy redigiu a primeira versão em dezembro do ano passado (há uma indicação precisa a respeito do dia 22 de dezembro). No entanto, pelas notas ao final e por nossas conversas, sabemos que ele trabalhou nesse texto até o final de abril de 2020.

Partindo dessa última versão, revisamos o texto, checamos as referências, conferimos citações e explicitamos as fontes quando estavam esboçadas ou não tinham sido apontadas. Também verificamos as traduções, fazendo as que se encontravam apenas indicadas. É importante frisar: o texto encontra-se quase idêntico ao que encontramos. Não há, com nossa edição, nenhum tipo de mudança substancial, que altere suas teses, seu formato ou mesmo seu estilo.


Isabella C. Reiche.

A emergência ou florescimento, no plano mundial, de governos e movimentos de extrema-direita modificou radicalmente a situação política, e ao mesmo tempo, no registro mais teórico, deu origem a uma ampla discussão sobre o caráter desses movimentos, suas perspectivas, e a atitude que se impõe à esquerda e aos democratas em geral com vistas à derrota deles ou pelo menos à sua neutralização. Se as raízes desses movimentos, em mais de um domínio, não são propriamente novas, o seu progresso fulgurante nos últimos anos representou, senão um raio em céu azul, pelo menos um raio num céu um pouco nublado, mas sem anunciar tempestades. Hoje estamos em pleno ciclone. O ritual de enumerar as figuras que dominam esse novo quadro se impõe cada vez. E nunca estamos certos de ter fornecido a lista completa, porque ela vai se alongando a cada dia. A enumeração parece sempre imperfeita, por causa das diferenças que existem entre os diferentes personagens. Contudo, eles estão ligados, pelo menos por algum traço, mesmo se este varia conforme a figura considerada. Desde já observemos a variedade desses representantes da atual extrema-direita: políticos profissionais, homens de negócio que se engajaram numa carreira política, militares, ex-policiais. Essas diferenças têm algum peso nas características da política posta em prática por cada um deles, mas a relação é complexa.

Sem dúvida, fazem parte do nosso objeto os governos de Trump, Duterte, Bolsonaro, Orbán, Kaczynsky, Erdogan e Modi, além de movimentos e partidos como os de Salvini, na Itália, e de Le Pen, na França. Mas a lista não está completa. Há boas razões para incluir Putin no grupo. E teríamos que acrescentar a figura insólita do ideólogo norte-americano Steve Bannon, que aparece como uma espécie de líder internacional da nova extrema-direita.

Como escreveu uma cientista política, em livro recente, o nosso primeiro (ou último?) problema é saber como nomear a tendência política que esses movimentos e governos encarnam. “Temos dificuldade até mesmo com a denominação — trata-se de autoritarismo, de fascismo, de populismo, de democracia iliberal, de liberalismo não-democrático, de plutocracia de direita? Ou de outra coisa?”1 Há outras dificuldades. É difícil acompanhar o processo político desses diferentes países. Os acontecimentos se sucedem muito rapidamente, e sem o conhecimento da língua do país (o que acontece necessariamente para todos os analistas, já que o leque linguístico é variado demais) corremos sempre o risco de fazer considerações mais ou menos apriorísticas. Cada um de nós pode conhecer bem a situação do seu país, e razoavelmente as dos países de língua “acessível”. Quanto aos demais, temos de confiar em fontes indiretas. De qualquer modo, a literatura sobre o problema vai se avolumando, com livros e artigos de natureza mais propriamente teórica ou mais empírica. Deve-se dizer que ela é, em geral, de boa qualidade. É impossível discutir hoje o problema sem o conhecimento, pelo menos parcial, dessa bibliografia. A acrescentar o estudo de algumas grandes obras sobre os autoritarismos dos anos 1930–40 do século XX, mais alguns clássicos das ciências sociais, em sentido geral.

Uma coisa fica evidente: com a discussão sobre a ofensiva atual de certa extrema-direita, abre-se uma ampla teorização em torno do sentido do conjunto da história contemporânea (senão moderna), do papel das políticas da direita e do destino da esquerda. Nesse sentido, essa ofensiva é um objeto “bom de se pensar”, como disse um clássico, a outro propósito. Só que, evidentemente, ela não é boa para se viver… Pois, bem entendido, se a análise do curso atual da política mundial abre um campo teórico de discussão, ela também, e por isso mesmo, lança um desafio prático às esquerdas, e aos democratas em geral. Apesar de tudo, e para além do sentido que lhe deram aqueles (dois russos) que utilizaram esse mote como título para as suas obras (e não obstante as reservas de Adorno), a pergunta “que fazer?” — claro, se respondida sem imediatismo, nem demagogia — está longe de ser uma questão abstrata.

O fenômeno atual do fortalecimento de certa extrema-direita aparece imediatamente sob a luz do que se denominou “neoliberalismo” (a terminologia vem, na origem, de um dos seus próprios cultores e remonta aos anos 1930). Trata-se de um modelo prático e teórico interior ao capitalismo, e que comporta bem mais do que uma política econômica, pelo menos em sentido estrito. O neoliberalismo é, por um lado, uma tendência econômica que, sem ser a rigor universalmente hegemônica, tem um peso considerável no capitalismo mundial, tal como ele se apresenta hoje.2 Mas ele conota ao mesmo tempo certa proposta política assumida por partidos, grupos, tendências ou personalidades. Nos dois casos, ele encarna certo tipo de racionalidade social: “(…) antes de ser uma ideologia ou uma política econômica [o neoliberalismo] é primeira e fundamentalmente uma racionalidade, e que, enquanto tal, tende a estruturar e organizar não só a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”3. Nessa racionalidade, o mercado não é visto a partir da troca, mas sim da concorrência, “definida (…) como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou ‘empresas’”.4 Além do papel hegemônico que assume o capital financeiro, no núcleo propriamente econômico do que chamamos de neoliberalismo estão as políticas bem conhecidas de privatização, de desmantelamento do Estado de Bem-Estar e da legislação social, de baixo nível de impostos (ou de taxação com pouca progressividade), de privilégio da luta contra a inflação e de liberação dos movimentos do capital: “O neoliberalismo é mais comumente associado a um feixe de políticas de privatização de bens e serviços públicos, reduzindo radicalmente o Estado social, contendo o movimento operário (labour), desregulando o capital, e produzindo e criando um clima de impostos-e-tarifas amistoso para os investidores diretos estrangeiros”.5 Por outro lado, pode-se dizer que há convergência entre diferentes autores em torno da ideia de que, longe de propor um Estado não intervencionista, o neoliberalismo antes concebe uma política de Estado, mas de intervenção estatal em favor do mercado.6 Nesse sentido, a ideia corrente de que ele encarna a filosofia do laissez-faire é ilusória. Pode-se dizer que ele gostaria de assumir essa política, pois o mercado mundial é o seu totem. Porém, a não intervenção, ou a não intervenção pura e simples, implicaria, para os neoliberais, em abandonar o mercado mundial à sua sorte. Para eles, à diferença do liberalismo clássico, só por meio de uma audaciosa política de Estado em favor do mercado, sem a qual este pode sucumbir às suas fragilidades, é que ele ganha as condições necessárias para o seu bom desenvolvimento.

O neoliberalismo tem uma longa história teórica e prática. Seus dois maiores clássicos são os austríacos Ludwig Von Mises (1881–1973) e seu discípulo, Friedrich Hayek (1899–1992).7 Se acompanharmos a narrativa crítica que propõe Quinn Slobodian, a história do neoliberalismo começa nos anos 1920, em Viena, com os seminários de Von Mises, que Hayek, entre outros, frequenta; seminários cujo quadro não é a universidade, mas uma câmara de comércio e indústria, de caráter semioficial. Pode-se dizer que a trajetória do neoliberalismo continua então em Genebra, para onde se transfere Von Mises, convidado, em 1934, a ensinar no Instituto Avançado de Estudos Internacionais. Por Genebra passarão várias figuras importantes do neoliberalismo, inclusive Hayek. E além de Von Mises, irá ensinar no Instituto, a partir de 1937, o economista alemão Wilhelm Röpke, outro grande nome da tendência, obrigado, com a ascensão de Hitler, a abandonar a Universidade alemã. Em 1938, muito impressionado pela leitura das provas de um livro, sous presse, do jornalista americano Walter Lippmann — provas que Hayek lhe havia transmitido — Röpke escreve a Lippmann observando a proximidade entre suas ideias, e afirmando a necessidade de um encontro de pessoas cujo pensamento era convergente, para discutir aquelas questões. Nasceu assim o projeto de uma reunião que ficou conhecida como o Colóquio Lippman, colóquio que se realizou em Paris, em agosto de 1938, e do qual participaram, além de Röpke, Lippmann e Hayek, Von Mises, o sociólogo alemão Alexander Rustow, próximo de Röpke, e outros mais. A reunião se dá no quadro do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, sendo o seu maître d’oeuvre um filósofo francês, adepto do positivismo lógico, chamado Louis Rougier. No final do evento, decidiu-se pela criação de um centro internacional de estudos para a renovação do liberalismo, mas a ideia só iria se concretizar após a guerra, iniciada um ano depois do colóquio. Em 1947 é fundada a Société du Mont Pélérin, nome tirado da localidade suíça em que se realizou o encontro internacional que lhe deu origem. Desta primeira reunião participam, entre outros, Hayek, Von Mises, Röpke, Lionel Robbins, Milton Friedmann. A sociedade promove reuniões regulares em diferentes cidades do mundo, primeiro anualmente, e depois a cada dois anos.

No interior do movimento neoliberal, costuma-se distinguir vários ramos ou “escolas”:

  1. o austríaco, representado por Von Mises e Hayek;
  2. o alemão, no interior da qual se distingue a escola de Freiburg, cujos grandes representantes são W. Eucken e F. Bohn, e figuras como V. Röpke, A. von Rustow e A. Müller-Armack, de Colônia. A designação “ordoliberalismo” denota o ramo alemão do neoliberalismo, particularmente, mas não só, a escola de Freiburg;
  3. o americano, um terceiro ramo encarnado pela escola de Chicago, cujo principal representante é Milton Friedmann.

Os neoliberais vivem certo tipo de marginalidade durante o período em que predominou a política keynesiana (em parte nos anos 1930, com Roosevelt, mas principalmente no pós-segunda guerra mundial). Mas essa marginalidade é relativa, porque desde o início eles estiveram ligados a grupos econômicos poderosos, a organizações internacionais financeiras, a universidades e institutos de nível universitário de grande peso. Porém, eles virão à tona, por assim dizer, com a crise do Estado de Bem-Estar, nos anos 1970.

O neoliberalismo tem uma aparição impressionante — porque inesperada e radical — com a vitória do golpe de Pinochet e o assassinato de Allende no Chile em 1973. Já conhecidos por esse nome nas universidades em que se haviam instalados, os “Chicago Boys” vão dirigir a política econômica do governo originado pelo golpe. Assim, o primeiro exemplo prático de uma doxa neoliberal mais ou menos “pura” é o de um governo que não é apenas neoliberal, mas também militar e ditatorial. Voltaremos aos problemas de interpretação que levanta uma conjunção dessa ordem.

No final da década e começo da seguinte, será o momento dos dois governos neoliberais “clássicos”, os de Margaret Thatcher, no Reino Unido, a partir de 1979, e o de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, a partir de 1981. Encontraremos aí realizada a panóplia econômica dos neoliberais, incluindo combates — vitoriosos — contra as organizações sindicais, sendo os episódios mais conhecidos o enfrentamento da greve dos mineiros, no Reino Unido, e a derrota da greve dos controladores de voo, nos Estados Unidos.

Para além desses exemplos, cite-se o peso do neoliberalismo na política econômica dos governos alemães do pós-guerra, e a influência dos neoliberais no processo de desenvolvimento da Unidade Europeia. Sobre o primeiro ponto, a figura política decisiva é Ludwig Erhard (ministro da economia de setembro de 1949 a dezembro de 1966, e chanceler — o equivalente a primeiro ministro — de outubro de 1963 a dezembro de 1966). As duas tendências do ordoliberalismo estão associadas à política de Erhard. A primeira, a da escola de Freiburg, põe em evidência a necessidade de uma constituição econômica em defesa das leis do “mercado mundial” (uma constituição que inclua dispositivos régios que garantam esse domínio8). O outro grupo, cujo representante politicamente mais ativo é A. Muller-Armac, vai arvorar a bandeira da “economia social de mercado”, uma variante da visão neoliberal em que se pretende satisfazer a certas exigências no plano da proteção ou da redistribuição (Hayek nunca engoliu esse “social”, mas se os alemães foram obrigados a fazer algumas concessões, eles não parecem, de forma alguma, ter traído a ortodoxia. Voltaremos a isso). Quanto à Europa, a atitude dos neoliberais foi complexa. Uma parte deles via com suspeita o lado intervencionista ou keynesiano do projeto europeu (por exemplo, os subsídios à agricultura). Mas outro setor começou a simpatizar com a iniciativa, principalmente pelo fato de que, com a unidade europeia, limitava-se a soberania das nações em proveito de um sistema legal que, em geral, era subserviente às exigências do mercado mundial. Na realidade, ficou claro que o projeto de uma Europa democrática, projeto pensável e realizável, não se fará sem uma luta aberta contra os neoliberais, que aparecem estruturalmente como inimigos desse ideal.9

Finalmente, há que se referir a certo modelo de política econômica que as organizações internacionais (o FMI, principalmente, mas também o Banco Mundial) impuseram às nações do então chamado terceiro mundo, a partir do final dos anos 1980. Esse receituário ficou conhecido com o nome de “consenso de Washington”, mesmo se o seu inventor visasse um objeto um pouco diferente daquele que se conheceu sob aquela denominação. As medidas impostas — mais do que propostas — aos governos do países “subdesenvolvidos” (ou “não desenvolvidos”, como escrevia uma das figuras da ortodoxia) eram, entre outras, a redução dos gastos públicos, a reforma tributária (contrarreforma, a rigor), a abertura cambial, a privatização das estatais, o afrouxamento da legislação trabalhista, a liberdade de movimento do capital.

Tem-se aí uma ideia do que foi (e é) o movimento neoliberal. Um poderoso movimento arregimentando economistas, filósofos, homens políticos, homens de negócios, cujo objetivo é relançar o liberalismo econômico (projeto e realidade), em oposição não apenas ao fascismo e ao comunismo (o que era patente na sua origem), mas também, e decisivamente, à democracia social (melhor do que “social-democracia”, denominação que seria no caso um pouco estreita). Trata-se de combater as doutrinas que fazem do pleno emprego um dos seus objetivos centrais, de uma bandeira de luta em favor do “livre” movimento do capital, desentravando-o dos obstáculos que representariam a intervenção do Estado e o movimento sindical. Se os neoliberais não são, pura e simplesmente, adversários da democracia, ela só lhes interessa, de certo modo, enquanto projeto mínimo, o de um tipo de governo que garante a “ordem”, no centro da qual está, sem dúvida, o mercado. Porém, a democracia aparece com frequência como um obstáculo: os mais pobres, ou os países mais pobres, no plano internacional são acusados de tentar impor uma assimetria nas relações, o que significa levantar exigências de redistribuição de riqueza, e de justiça social, que prejudicam o livre jogo dos preços e o movimento do capital. A “voz das massas” tem de ser neutralizada. Nesse sentido, o neoliberalismo se revela profundamente antidemocrático. Pode-se dizer em geral que o que lhe interessa é o mercado mundial, a liberdade de movimento desse mercado, o que não significa, como já vimos, recusa da intervenção do Estado, mas intervenção a serviço do mercado. Mas, quanto à forma política, eles são mais ou menos indiferentes, com a precisão de que se declaram inimigos de governos nazistas ou comunistas: tanto a democracia como certas formas autoritárias podem desempenhar bem o papel que eles destinam às instituições políticas. Há que ressaltar, em geral, o verdadeiro culto do mercado mundial que praticam os adeptos da escola: a “variável independente” é o mercado. Proteger esse totem é a finalidade do projeto. O resto são variáveis dependentes que devem ser manipuladas e articuladas da maneira mais favorável àquela finalidade “sublime” (essas observações poderiam ser um pouco atenuadas se considerarmos certas variantes, principalmente a alemã e especialmente as de verniz “social”; mas, no essencial, creio que se trata de uma caracterização rigorosa).

Vemos assim a complexidade do fenômeno, dada a natureza nada simplista da sua doutrina e a variedade das suas figurações. O neoliberalismo não é um economismo, pelo menos se entendermos o termo como visando uma doutrina que faz das relações econômicas o ponto central da abordagem teórica ou do projeto prático, de tal modo que esse elemento hegemônico como que absorve os outros aspectos. Bem entendido, a economia não é pouca coisa no projeto, mas este é em grande parte político, de certo modo, acima de tudo político, e também jurídico. Referindo-se em particular ao que ele chama de “escola de Genebra” (“entidade” que reúne o grupo numeroso e variado de neoliberais que de alguma forma atuaram nessa cidade)­ — mas a definição vale em grande medida para o neoliberalismo em geral —, Quinn Slobodian escreve na conclusão de seu livro: “A minha narrativa mostrou que o neoliberalismo da Escola de Genebra é menos uma teoria do mercado ou da economia, do que [uma teoria] da lei e do Estado”10. Coloca-se, então, o problema de saber se os movimentos, partidos e governos de extrema-direita que vão surgindo pelo mundo afora — por considerável que sejam a diversidade e a originalidade dos seus traços — se encaixam sem dificuldade teórica no modelo neoliberal. Para além da marca neoliberal inegável, as extremas-direitas atuais oferecem um leque de características (sem dúvida, raramente presentes na sua totalidade em qualquer uma das suas formas singulares) que parecem tornar problemático considerá-las como avatares, mesmo se mais ou menos “exóticos”, da onda neoliberal. Mas há quem defenda essa tese, e não sem brio. A questão é menos acadêmica do que se poderia pensar. Na realidade, como já indiquei, para além dos problemas que oferece a análise empírica, e também racional, do objeto, se investem nessa discussão maneiras diferentes de pensar a história contemporânea — no limite, de pensar a natureza do percurso histórico que vai da Revolução Francesa até o nosso século. E, claro, cada leitura possível tem implicações, implícitas, pelo menos, em termos de práticas políticas específicas. A maneira de entender o que são esses monstros que ocupam hoje o cenário político de uma série de países tende a privilegiar tal ou qual tipo de resistência ou, de forma mais geral, de política a ser posta em prática pela esquerda e pelas forças democráticas.

Uma posição extrema, ou pelo menos bem marcada e clara, nessa querela, é a de Christian Laval e Pierre Dardot, os autores da Nova Razão do Mundo. Insistindo no “caráter ao mesmo tempo plástico e plural do neoliberalismo”, ambos consideram o conjunto dos extremismos de direita recentes “uma forma política original”, mas no interior do neoliberalismo, forma que, para os dois autores, “combina autoritarismo antidemocrático, nacionalismo econômico e racionalidade capitalista ampliada”. É o que eles chamam de “novo neoliberalismo”11 a contrapor ao “neoliberalismo clássico” — “metamorfose” cristalizada numa formação que é “a continuação da antiga, para pior”, e que “se reforça pela própria hostilidade política que ela suscita”. Completa a argumentação a recusa do rótulo “fascista”, dado o fato de que não se tem nos novos extremismos nem

partido único, nem proibição de toda oposição e de toda dissidência, nem mobilização e arregimentação das massas em organizações hierárquicas obrigatórias, nem corporativismo profissional, nem liturgias de uma religião secular, nem o ideal do ‘cidadão soldado’, totalmente devotado ao Estado total etc.12

Encontra-se uma leitura que vai em sentido oposto à de Dardot e Laval no livro de Ugo Palheta La Possibilité du Fascisme, France, la trajectoire du desastre.13 É verdade que o autor se ocupa principalmente da França, dando destaque ao ex-FN e às forças que o circundam, embora afirme não fazer dele o núcleo (coeur) do seu ensaio. No entanto, ele observa que “a ameaça se exprime numa escala bem mais vasta e se afirma em numerosos países”.14 E acrescenta: “O acesso ao poder de Donald Trump nos Estados Unidos, da Liga na Itália ou de Narendra Modi na Índia, a política posta em prática por Victor Orbán na Hungria, a radicalização da direita israelense, a aceleração autoritária impulsionada por Recep Tayyip Erdogan na Turquia, ou ainda a ofensiva reacionária das direitas brasileira, argentina e venezuelana” mostram que “o desenvolvimento das forças neofascistas, ou de fascização das forças existentes, estão presentes em numerosas sociedades”,15 Palheta não confunde neoliberalismo com fascismo, nem fascismo com autoritarismo. Por outro lado, a “atualidade do fascismo” de que ele fala, é, se podemos dizer assim, a atualidade de uma possibilidade, porém de uma “possibilidade concreta”. Não é menos verdade que é a categoria do fascismo (ainda que possível), e não a do neoliberalismo, que ilumina a análise que ele faz da extrema-direita francesa, extensível, dentro de certos limites, à de outros países, como acabamos de ver. Mas como justificar o emprego desse conceito, que pode parecer anacrônico ou emanando de “preguiça” intelectual? Se, para Palheta, o fascismo poderia ser definido

como um movimento de massa que pretende trabalhar para uma ‘comunidade imaginária’ considerada como orgânica (nação, raça e/ou civilização) através da purificação etno-racial, da destruição de toda forma de conflito social e de toda contestação (política, sindical, religiosa, jornalística, artística)”, ele observa imediatamente que a comunidade mística não precisa ser “necessariamente racial, no sentido pseudobiológico (…) ela pode ser cultural.16

Por outro lado, a ausência de outras características, por exemplo, do espetáculo das “hordas de indivíduos desfilando de camisa marrom ou a passo de ganso”,17 de que são ciosas as “interpretações restritivas do fenômeno fascista”,18 não nos devem induzir ao erro. “O fenômeno fascista sempre foi proteiforme. Ele já se apresentava em formas variadas no período entreguerras e a sua ascensão seguiu trajetórias distintas.”19 Hoje estamos de novo diante de projetos de “regeneração nacional”, projetos que se ajustam às possibilidades presentes de ação política, mas que não escapam do modelo nos seus traços gerais e essenciais. “Há (…) qualquer coisa de irresponsável em se recusar a pôr em paralelo o fascismo clássico e a extrema direita contemporânea.”20 O paralelismo é “útil e produtivo”. Se recusar a pensá-lo seria supor “que essa extrema direita nada teria herdado do passado ou que as condições presentes seriam a tal ponto inéditas”21 que toda continuidade teria sido eliminada.

Os argumentos dos dois lados são respeitáveis. Digamos que o melhor, num caso, é mostrar que quase tudo que apareceu recentemente pode ser encontrado na história do neoliberalismo. O mais forte do outro campo é talvez o de mostrar a plasticidade do fascismo. Voltarei ao argumento, mas também aos argumentos que sustentam a tese oposta. Na realidade, ainda que já se tenha escrito bastante, e bem, a respeito do assunto — assimilar essa bibliografia é, aliás, o primeiro desafio para quem se dispuser a tratar do tema — parece-me que se pode e deve voltar a ele. Tentarei aqui seguir um caminho analítico que oferece seus riscos e dificuldades, mas que talvez funcione, e com alguma originalidade, caso seja possível recompor ao final os resultados obtidos pela análise.

Quais são os elementos do momento recente que poderiam extravasar o quadro do neoliberalismo? Isto é, quais seriam as características encontráveis nos movimentos, partidos e governos das extremas direitas contemporâneas que poderiam resistir a toda tentativa de subsumi-los sob a rubrica “neoliberal”? Esse seria o ponto de partida que implica, evidentemente, um confronto entre a extrema-direita atual e o neoliberalismo na sua essência (se ele tem uma) e na sua história, mas que se abre também a outras explorações. Sem adotar por ora qualquer tese a esse respeito, me permito, entretanto, supor que é válido introduzir na discussão as experiências dos anos 1930/40 do século XX. Em outras palavras, cabe, penso eu, como exigência prévia pelo menos, um trabalho de confronto entre a nova extrema-direita e os fascismos do século passado. Finalmente, teríamos três referências: o fascismo, o neoliberalismo e a extrema-direita atual. Trata-se, para começar, de pôr os três “em movimento” para tentar dizer o que são e, na medida do possível, de que forma se relacionam.

A meu ver, os elementos que poderiam representar uma ruptura no quadro da história dos neoliberalismos podem ser organizados do seguinte modo. Por um lado, há o que se chama de populismo, mas eu preferiria dar destaque a dois elementos presentes no universo populista (embora não sejam exclusivos dele): o que se poderia denominar como “ruptura da liturgia”, em particular da “liturgia política”, e o que se poderia intitular “niilismo”. Outro traço é certamente o nacionalismo. Vem em seguida o conservadorismo moral-religioso. A acrescentar certas linhas no interior da política econômica (que frequentemente coexistem (?) com a política neoliberal), como o protecionismo e o “crony capitalism”, o capitalismo dos amigos, espécie de capitalismo oligárquico a serviço da “família”. Também o culto e/ou uso da violência. E para terminar, o autoritarismo. Tentemos analisar cada um deles. Por ora, tratar-se-á só de descrevê-los e confrontá-los com a tradição neoliberal. O confronto com os fascismos dos anos 1930/40 do século XX também se impõe, mas deixo isso para mais adiante.

Elementos do populismo

Parece não haver conceito mais problemático, e sobre cujo conteúdo se trave mais discussão, do que o conceito de “populismo”. Vários autores, entre os quais um a que me referi (Ugo Palheta), propõem simplesmente que se abandone o termo, que traria mais inconvenientes do que vantagens. Não é a minha opinião, embora com isso não negue as dificuldades que oferece o manejo do conceito (o fato de que se supõe, em geral, a existência de um populismo de direita e um de esquerda já mostra a sua complexidade). Há nos populismos (o plural é melhor) mais de um elemento, porém, em linhas gerais, eles se caracterizam pela recusa de mediações, por exemplo, as do legislativo, do judiciário, entre o poder (suposto “popular” — do partido, do líder) e o “povo”, definido de modo impreciso e idealizado. E pela exigência positiva, que vem desse diktat negativo, de um contato direto do poder popular com o povo. Porém, no quadro dessa análise, eu gostaria de me concentrar em dois aspectos, que coloco sob a rubrica do populismo. Há certa afinidade entre esses dois elementos, mas eles não se confundem. Um deles é, aliás, muito mais “profundo” do que o outro. Mas o outro, que parece se situar num plano mais superficial, é também essencial. Me refiro, por um lado, ao estilo de linguagem e de atitude que certo populismo inaugura: a do homem político de oposição e depois governante que emprega uma linguagem de uma extrema grosseria, a mesma coisa podendo ser dita das atitudes que toma antes e depois de se instalar no poder (pense-se principalmente no caso Trump, mas ele não está isolado nisso, e antes dele teve-se o exemplo pioneiro de Berlusconi). São os palavrões, as bravatas sexuais, a pornografia escrachada e outras coisas que tais. Elas instauram uma ruptura do que se chama às vezes de “liturgia”, para o caso do governante, de “liturgia do poder”. Há aí uma ruptura importante, que, diga-se desde logo, é estranha, completamente estranha até onde sei, à tradição do neoliberalismo.

O segundo aspecto, de ordem mais profunda, é a ruptura com certas exigências fundamentais do discurso — exigências que em princípio valem também para o discurso político — no que se refere à verdade. Esse traço, que coloco também sob a rubrica do populismo, é, na realidade, bastante geral nos extremismos de direita contemporâneos. Entenda-se: é claro que todos os políticos mentem, da direita como da esquerda (suponho que, em geral, a direita mente mais do que a esquerda, isso se pusermos entre parênteses as degenerescências totalitárias de uma e de outra). Porém, a mentira que aflora no discurso da extrema-direita contemporânea é de outra ordem. É a mentira hiperbólica. Não se trata de afirmações que, de algum modo, fazem violência à verdade. Trata-se da corrupção pura e simples da verdade. Esse elemento representa uma revolução, e voltarei a ele mais adiante. Pode-se encontrar uma teorização desse problema, principalmente, nos textos de Wendy Brown, quando ela se ocupa do niilismo.22

Como pensar o populismo, e aqueles dois traços, em particular, na história do neoliberalismo? Não vejo, salvo erro, nada dessa ordem, por exemplo, no pensamento de Hayek, mesmo que possamos desconstruir de maneira radical o discurso dele e dizer que o resultado tem algo de monstruoso. Mas isso não significa que ele ponha entre parênteses a diferença entre a verdade e a mentira. Na história prática do neoliberalismo, há certamente momentos que podem ser chamados populistas, a começar pelo estilo político de Reagan, “o grande comunicador”. Mas se Reagan era, de certo modo, populista, nem o lado debochado-pornográfico nem, aparentemente, o da mentira hiperbólica (pelo menos no nível que ela atingiu no período mais recente) podem ser encontradas, a meu ver, no registro de suas declarações e iniciativas. A ruptura radical com a verdade, a que assistimos nos nossos dias e que é um elemento-chave do novo universo político, não tem medida comum com a prática da direita normal (tem a ver, sim, com o universo do fascismo, mas isso discutiremos mais adiante). Entramos no mundo da “dupla verdade”, que tem só um vaga relação analógica com a dupla verdade de certos medievais; estes últimos queriam conciliar a razão com a fé, enquanto hoje se trata de liquidar a razão através da (má) fé.

Nacionalismo

Eis aí um dos dois traços mais salientes da nova ideologia. Ela é visível em Trump, em Orbán, certamente, também em Kackzynski, em Salvini, em Erdogan, e em quase todos senão todos os outros. Em geral, se enraíza numa tradição histórica conservadora, de que me ocuparei mais adiante. Em princípio, o nacionalismo vem em ruptura direta com a tradição neoliberal. O neoliberalismo nasce pregando a derrubada das muralhas entre os Estados, reivindicação libertária do ponto de vista do capital. E a liberdade de movimentos do capital, até em nome dos direitos humanos (!) continuou a ser uma das principais bandeiras do movimento.23 O corte é evidente. A descontinuidade, aliás, foi assumida por figuras importantes da galáxia extremista, a começar por Steve Bannon. Ele se assume pró-capitalismo, mas critica sua variante neoliberal.24 Marine Le Pen vai no mesmo sentido e, mais caracteristicamente, a sua dissidente de extrema extrema-direita, a sobrinha Marion Maréchal também. A crítica do capital internacional, como ave de rapina liberada pelos governos cosmopolistas, vai se tornando um leitmotiv desses ativistas. O antiglobalismo vai, de resto, junto com o populismo.25 Bem entendido, não se pode assumir sem mais o que eles pensam sobre eles mesmos, mas o outro extremo, a desconfiança absoluta de que eles acreditam naquilo que dizem acreditar também não ajuda.26 Pode-se falar de um neoliberalismo nacionalista? Observe-se que isto não é exatamente o mesmo que falar de “nacionalismo neoliberal”. O que é substantivo e o que é adjetivo importa.

Conservadorismo moral e religioso

Os clássicos do neoliberalismo têm em geral uma atitude de indiferença para com a religião. E Hayek termina um de seus livros, A constituição da liberdade, com um texto clássico, em que toma distância em relação aos conservadores.27 O motivo religioso está presente na pregação de Reagan, e vai reaparecer no Tea Party, mas não na de Thatcher (ou muito menos). O conservadorismo religioso é um componente ideológico extremamente importante da nova extrema-direita. Numa recente entrevista ao Figaro, Steve Bannon, de certo modo o guru do movimento, fez questão de marcar esse ponto, sobre o qual não havia sido perguntado.28 A religião é, em geral, o cristianismo — católico ou protestante. O papel do protestantismo evangélico é essencial, mas o fundamentalismo católico não está ausente. Netanyahu joga com o fundamentalismo judeu, mas esse fundamentalismo não tem um papel central na sua carreira. Contudo, o judaísmo é incorporado aos fundamentalismos cristãos: Bannon, e não só ele — Bolsonaro! —, falam em civilização judaico-cristã. Curiosa recuperação do judaísmo, que, há menos de um século, era o inimigo a destruir. No plano dos costumes, prega-se a proibição do aborto e do casamento de pessoas do mesmo sexo. Conforme o caso, como no Brasil, propõe-se a abstinência antes do casamento.

A esse respeito, vale retomar um texto de 2006 em que Wendy Brown analisa a relação complexa entre o neoliberalismo e conservadorismo. Na realidade, os termos da sua análise são o neoliberalismo e o neoconservadorismo americano, grupo heteróclito que não reunia apenas a extrema-direita religiosa, mas também outras tendências, formado principalmente por ex-esquerdistas que propugnavam uma política notoriamente expansionista-imperialista. Apesar disso, dado o peso que tinham os fundamentalistas nesse conglomerado — e a importância que a autora lhes dá — vale a pena se demorar na análise proposta. Ela se pergunta:

Como uma racionalidade expressamente amoral, tanto no nível dos fins como no dos meios (o neoliberalismo), intersecta com uma racionalidade formalmente moral e regulatória (o neoconservadorismo)? Como um projeto que esvazia o mundo de sentido, que desenraiza e diminui o valor da vida e que explora abertamente o desejo se cruza com um projeto cujo eixo é o restabelecimento e a imposição do sentido, a proteção de certos modos de vida, a repressão e a regulamentação do desejo?

E continua: “Como o apoio a uma governança fundada no modelo da empresa e um tecido socionormativo de interesses egoístas rejeita ou se casa com um tipo de governança construída sob o modelo da autoridade religiosa e um tecido socionormativo de autossacrifícios e de lealdade filial, o próprio tecido que é retalhado pelo capitalismo selvagem?”.29 A questão, formulada há uma década e meia nos EUA, é perfeitamente atual em 2020. A convergência é difícil, mas ela se estabelece. Wendy Brown observa que os dois movimentos convergem no esvaziamento “dos princípios e pressupostos há muito associados à democracia constitucional. A igualdade não é um valor que figure nem no universo neoliberal, nem no universo neoconservador; pelo contrário, o igualitarismo é concebido como um ‘apelo demagógico pérfido’” e, por caminhos distintos, ambos entendem “a redistribuição como uma injustiça em relação às classes médias”. Ainda segundo a autora,

além do igualitarismo, liberdades civis, eleições justas e o Estado de direito também perdem o seu valor no ponto de encontro entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, tornando-se instrumentos ou símbolos em vez de tesouros, tornando-se, na verdade, totalmente dessacralizados, mesmo quando eles são retoricamente empunhados como faróis da democracia. O neoliberalismo não os exige, e a prioridade neoconservadora dada aos valores morais e ao poder de estado os marginaliza.

A conclusão é a de que, apesar das divergências, a racionalidade neoliberal facilita em ampla medida a implantação do neoconservadorismo, mesmo se este “visa a limitar e complementar certos efeitos”30 daquele.

Em In the Ruins of Neoliberalism…, a autora radicaliza essa análise (e, nesse sentido, a modifica) e explora o lugar que estaria reservado à ética religiosa nos textos clássicos (ela assinala aí algumas referências à religião, mas em geral se trata de afirmar que os clássicos criam um vazio a ser preenchido pela ética conservadora e a religião). O argumento é sobretudo o de que a liquidação do papel protetor do Estado tem necessariamente como contrapartida o fortalecimento da família tradicional, e também da filantropia individual. Voltaremos a isso nas conclusões desse tópico.

Economia

A política econômica da nova extrema-direita não é sempre muito simples de interpretar. Claro que o neoliberalismo está presente, ver por exemplo a orientação do ministro brasileiro da economia (um outro problema é saber se Bolsonaro está sempre contente com isso): privatizações, austeridade, desmonte da legislação social etc. Elementos neoliberais também podem ser encontrados na política dos governos da Europa Oriental e nas práticas de Trump. Porém, há certos elementos que destoam da vulgata neoliberal. Entre eles, creio que há dois mais evidentes: o protecionismo econômico (que vem ligado ao nacionalismo) e o fenômeno do capitalismo de compadres (ou crony capitalism), o da constituição de uma espécie de oligarquia capitalista estreitamente ligada ao poder. O protecionismo é assumido por Trump, Orbán e Modi. Le Pen também o defende. O fenômeno do crony capitalism é muito visível na Europa Oriental, como no caso exemplar da Hungria. Orban nacionaliza ou privatiza não conforme alguma filosofia mais alta, mas em função dos interesses da sua família, família biológica, primeiro, mas também família política. A tal ponto que na oposição húngara se construiu o conceito de Estado Mafioso (Mafia State) para dar conta do que lhes pareceu ser um tipo de Estado que não se encaixa em nenhum dos modelos da tradição31. O protecionismo econômico é estranho à tradição neoliberal, que esposa a tese contrária, a da liberdade de movimento do capital. O capitalismo de compadres, pode-se dizer, é um dos alvos importantes na crítica dos clássicos do neoliberalismo. Eles pretendem defender o mercado mundial, não o interesse deste ou daquele. E as vantagens que tais ou tais personagens podem obter pela proximidade em que se situam em relação ao poder é tudo aquilo que existe de mais condenável no interior da política e da ética neoliberal. Talvez se pudesse acrescentar ainda certo populismo de estilo social, como o que à sua maneira pratica Orban, ou o polonês Kaczynski. Como se sabe, os neoliberais (Hayek, pelo menos) não são inteiramente infensos nem a seguros de saúde, nem ao auxílio às populações mais desmunidas. Mas o estilo de “ajuda econômica” proposto por um Kaczynski parece mais próximo de um populismo social do que do auxílio admitido pelos ícones do neoliberalismo.

Violência

Há um outro aspecto a ser destacado. É a presença da violência (violência direta, morticínio…) como prática política de pelo menos um dos governos da atual constelação da extrema-direita. É o governo de Duterte, nas Filipinas. A informação a respeito não é extensa (pelo menos aquela de que disponho), mas se sabe que ele procede a matanças sistemáticas, em princípio contra os traficantes de drogas, o que por si só já é grave, e não sabemos se ele fica por aí. Outro caso é o de Bolsonaro. Ele tem uma relação muito particular com a violência. Observo que se trata de um militar. Salvo erro, o único militar do grupo. Para analisar a relação de Bolsonaro com a violência, é preciso ter em conta a situação do Brasil a propósito desse tipo de problema. País que está entre os recordistas mundiais no que se refere à taxa de homicídios. Bolsonaro se valeu desse tema na sua campanha, mas através de uma duplicação da violência. Ele pregou uma pretensa violência contra a violência, que não é muito diferente da violência. Em termos práticos, passa-se das organizações criminosas “tradicionais” às milícias, às quais Bolsonaro e sua família estão ligados. O uso da arma — a chamada “arminha” — foi o símbolo da sua campanha, no quadro da qual indicou expressamente a esquerda como o seu alvo, ou pelo menos um dos seus alvos. Uma vereadora e líder feminista de esquerda foi assassinada junto com o seu motorista, no Rio de Janeiro, por milicianos muito ligados ao poder. O governo Bolsonaro dá carta branca à violência contra os indígenas, que já existia sob os governos anteriores. E apoia mais ou menos explicitamente os motins organizados pelos policiais militares. O governo Erdogan é muito repressivo, mas aqui estou me concentrando mais no fenômeno de uma violência “ilegítima” de Estado, isto é, uma violência que se faz como que paralelamente ao poder de Estado, mais do que aquela que, justa ou injusta — no caso, injusta — se faz como emanação direta do Estado, e, em alguma medida, legitimado por ele.

Autoritarismo

Ao analisarmos a questão do autoritarismo, e da natureza do poder de Estado nas formas atuais dos governos extremistas de direita, encaramos a questão que é provavelmente a mais importante dessa sucessão de fenômenos. Deixo a discussão detalhada desse ponto para mais adiante. Dou aqui indicações que, até certo ponto são ainda relativamente gerais.

Todos os governos e movimentos que analisamos (Bolsonaro, Salvini, Le Pen, Orban, Duterte, Kaczynnski, Trump, Modi, Erdogan) têm uma clara inclinação antidemocrática, e pode-se dizer que, de forma direta ou indireta, trabalham em favor de uma forma autocrática de poder. Como essa característica situa as novas extremas-direitas em relação à tradição neoliberal (teórica — Von Mises, Hayek, Ordoliberalismo, etc. — e prática — poderes classicamente neoliberais: Reagan e Thatcher)? Diante das tendências autoritárias de governos cuja política econômica se supõe “neoliberal” (o que, de resto, como já vimos nem sempre é um fato), costuma-se evocar a atitude mais do que ambígua dos ícones do pensamento neoliberal sobre a democracia. Arrola-se principalmente as viagens de Hayek e de Friedmann ao Chile de Pinochet, e as declarações do primeiro de que prefere ditaduras liberais a democracia sem liberalismo.32 Mas, antes disso, é preciso assinalar o elogio de Mussolini por Von Mises em 1927.33 Porém, o caso extremo, bem menos conhecido (porque foi voluntariamente ocultado), embora se trate de uma tomada de posição que não foi aprovada por outras grandes figuras do movimento, incluindo Hayek e Mises, foi o apoio que o ordoliberal Wilhelm Röpke deu aos governos racistas da África do Sul e da Rodésia (posição que, por outro lado, marcava uma ruptura com as suas convicções anteriores).34 Aproximando-se então da extrema-direita americana, Röpke afirmou que os negros da África do Sul estavam “num estágio de desenvolvimento que exclui a verdadeira integração política e espiritual com os brancos altamente civilizados, e atualmente são em tal número que ameaçam se sobrepor aos últimos, que são, nesse momento, os defensores da ordem política, cultural e econômica”.35 É verdade que a posição de Röpke provocou uma ruptura no movimento (ela projetou, aliás, a fundação de uma associação paralela, alternativa à Societé du Mont Pélérin). Mas a aventura de Röpke nos interessa por duas razões. Por um lado, porque ela foi só o caso mais extremo de uma deriva não só radicalmente antidemocrática do neoliberalismo, mas também racialista. A posição dos neoliberais mais moderados, ortodoxos, digamos, não sendo racialista, foi, entretanto, até a condenação das sanções contra os Estados racistas (Friedman e Hayek), senão à condenação do sufrágio universal nesses países (Friedmann e outros)36. Assim, a história das relações entre os Estados racistas e o neoliberalismo não se esgota com o caso Röpke. Por outro lado, porque, mesmo que Röpke tenha sido um dissidente, cuja tomada de posição não foi aceita pelos demais,37 isso mostra, se se pode dizer assim, certas potencialidades teóricas e práticas do movimento neoliberal. Ou, se disserem que vou longe demais com o argumento: a aventura de Röpke tem interesse porque até certo ponto ela se antecipa ao que está acontecendo nos nossos dias. Ao tomar aquela posição, Röpke foi, em boa medida, um precursor dos iliberais dos nossos dias. Como diz Slobodian, ele propôs a reunião do projeto neoliberal com o conservadorismo tradicional,38 o que viria a se tornar um movimento efetivo no plano mundial meio século depois.

Para além do caso africano, a atitude dos neoliberais em relação à democracia foi sempre ambígua. Eles não se declaram antidemocratas.39 Entretanto, eles acrescentam tantos “ses” que fica evidente que os neoliberais têm sérias reticências em relação ao regime democrático. De uma forma mais geral, há o temor do governo “das massas” e também da luta de interesses40 (o que poderia parecer, à primeira vista, paradoxal). Existe finalmente a atração pelo “governo forte”41 capaz de conter a instabilidade gerada pela soberania popular (noção que eles taxam de “metafísica”42). Assim, se Hayek aprecia a democracia, porque ela permite transições de poder sem violência, ele teme o impacto do voto popular sobre as leis eternas do mercado mundial.43

Diante de um tal panorama, não foi difícil ler a trajetória dos atuais governos e movimentos iliberais como se ela representasse uma expressão bem típica da filosofia neoliberal. Quando se aponta o que há, digamos, de profundamente autoritário na política de um Bolsonaro ou de um Orban, para tentar contrapô-los a Hayek, Mises ou os ordoliberais, a resposta é sempre a de que esse modelo já se encontraria no cerne da mensagem neoliberal. E, no entanto, há aí, a meu ver, certo número de problemas, ou, preferindo, um problema. Se mais do que zestos de autoritaritarismo podem ser encontrados, como vimos, nos neoliberais, tanto nos pais fundadores, como nas gerações subsequentes, a atitude deles parece se diferenciar de maneira bem nítida da postura do extremismo direitista atual pelo fato de que, por mais que o neoliberalismo desconfie da democracia, ou mesmo proponha soluções autoritárias, pode-se dizer, entretanto, que o centro das suas preocupações não é a instauração de um governo desse tipo, mas a defesa do mercado mundial. Finalmente, a sua estrela polar é o mercado mundial, e não o governo autoritário. Bem entendido, isso não quer dizer, como já vimos, que eles sejam favoráveis ao laissez-faire (este não serve, porque, digamos, com as suas melhores intenções, acaba prejudicando o mercado mundial, que, no fundo, é frágil), nem inversamente que eles desprezem a política em proveito da economia (a política lhes é certamente essencial, e é verdade que, nas suas obras principais, Hayek fala muito mais de política e de direito do que de economia), mas significa que eles nunca abandonam o seu norte, que era originalmente, e continua a ser até hoje, as leis do mercado mundial. Ora, poderíamos dizer em sã consciência que essa é a filosofia de um Orban ou de um Bolsonaro, de um Erdogan, de um Salvini, de um Duterte, provavelmente também de um Trump, sem falar em Le Pen etc.? Não, de forma alguma, a meu ver. Todos esses personagens são cultores do governo forte e conservador, tendo em vista o próprio governo forte e conservador. Não são cultores do mercado mundial. A relação é inversa. Bem entendido, eles aderiram, mais ou menos, em muitos casos, ao modelo neoliberal (talvez seria melhor dizer, em parte, ou em alguns casos), mas o acento tônico não está aí, mas no projeto político e ideológico. Assim, cada vez que se aponta o que me parece representar o essencial do projeto de Orban, de Bolsonaro, de Erdogan, ou de Modi, a resposta chega rapidamente: “mas Hayek apoiou Pinochet, Friedmann também, Von Mises flertou com o fascismo” etc etc. Muito bem. Mas não estamos falando de Hayek, falamos dos iliberais dos nossos dias. Vamos estudar esses objetos tais como eles se apresentam. Se necessário, falaremos também de Hayek, mas não transformemos Hayek num biombo que nos impossibilita analisar com rigor o que o fenômeno iliberal representa. De certo modo, trata-se de percorrer não o caminho do neoliberalismo como política econômica à sua efetivação como projeto geral de governo, mas do contrário: trata-se de percorrer e entender o caminho que leva os autoritários iliberais de suas convicções políticas e ideológicas ao neoliberalismo (quando e até onde isso acontece). Assim, quando dizemos Orban ou Bolsonaro, examinemos Orban ou Bolsonaro, depois invocaremos Hayek e Mises, quando e se necessário. Deixo claro, de resto, que com isso não subestimo nem certo tipo de presença — veremos qual — nesses governos e movimentos, nem muito menos a própria realidade, “maciça”, do movimento neoliberal, cuja existência alguns pretendem negar (!).