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O novo, o normal e o novo normal

Desidéria paisaje, Tom Vieira.

Este ano ficará marcado, na história e na memória de quem o viveu, como um momento de suspensão da normalidade, qualquer que seja o significado que se confira à palavra e qualquer que seja o registro em que se busque analisar os fatos. Entre os objetos afetados por este hiato de anormalidade figura seguramente a razão, em posição de destaque, mesmo nos lugares em que seu colapso foi evitado e ao seu avesso não se ousou conceder o governo das decisões coletivas. Talvez fosse um exagero, ou um banal anacronismo — num momento em que seria prudente evitar ambos —, falar uma vez mais em “eclipse da razão”. Melhor seria buscar o equivalente metafórico da experiência disfórica que tivemos ao longo deste ano noutros fenômenos naturais.

Por aqui, ao menos, parecem ter secado os cérebros; a realidade se esfumaçou a ponto de não se deixar mais decifrar pela razão, tornando-se sensível apenas por suas formas hiperbólicas e seu conteúdo surrealista; as linhas de raciocínio, quando não foram meramente interrompidas, parecem ter se curvado e se emaranhado, como se o próprio espaço-tempo ao redor se deformasse, em virtude da presença massiva e invisível de algum buraco negro. Capturados por vórtices de paranoia ou de apatia, raciocínios que antes se fechavam com facilidade, na forma de discursos harmônicos e inteligíveis, passaram simplesmente a espiralar, em frêmitos.

Como capitais mundiais da pandemia (e do delírio coletivo), Brasil e Estados Unidos não fizeram sofrer apenas as (muitas) vítimas diretas e indiretas do vírus. Os desmandos de seus líderes eleitos, inacreditáveis e inacreditavelmente celebrados e endossados por seus seguidores, entorpeceram e acossaram todas aquelas que, independentemente das ideologias, ainda reconhecem a ciência moderna como marco para a elaboração de políticas públicas, sobretudo na área da saúde. A eficácia do distanciamento social foi sistematicamente posta em dúvida; a obrigatoriedade do uso de máscaras foi contestada em nome de uma tresloucada “liberdade individual”; defendeu-se um irrefletido isolamento vertical, sem que nenhuma evidência científica em seu favor fosse apresentada; a autoridade de pesquisadores, sanitaristas e da própria OMS (Organização Mundial da Saúde) foi desafiada por leigos e fanfarrões.

Se é verdade, por um lado, que o mundo “orientalizou-se” com o uso de máscaras (hábito consolidado em muitos países ditos “orientais”), por outro lado, a pandemia fez também recrudescer o racismo, na forma da sinofobia. O racismo esteve presente também no modo com que países europeus cogitaram, em dado momento, incluir o continente africano num plano global de enfrentamento ao vírus, como uma espécie de laboratório humano. Por aqui, a inépcia, o desprezo pela vida e a frieza, quase psicopata, do presidente Jair Bolsonaro e da cúpula militar de seu governo, somadas, é claro, ao nosso bom e velho racismo estrutural, fizeram com que o suplício da pandemia se abatesse de maneira desproporcional sobre as populações pretas e periféricas do país, historicamente vulneráveis e marginalizadas. É bastante significativo, e digno, portanto, de nota, o fato de uma das primeiras vítimas fatais do coronavírus no Brasil (a primeira do estado do Rio de Janeiro) ser uma mulher negra, empregada doméstica, que contraíra o vírus trabalhando na casa dos patrões recém-chegados de uma viagem à Itália, no bairro do Leblon, um dos metros quadrados mais caros do país.

Em eventos muito próximos no tempo, mas motivados por razões distintas, parcelas consideráveis da esquerda (ou do que se tem chamado de “campo progressista”) saíram às ruas no Brasil e nos Estados Unidos, não para atentar contra o regime da verdade factual, mas para, compromissados com ele, reinstituir o político e incluí-lo no rol das ditas “atividades essenciais”. Quando o ar faltou a George Floyd em Minneapolis, não por conta do vírus, mas por asfixia mecânica, causada pelo joelho de um policial branco, os Estados Unidos arderam em chamas, escancarando ao mundo os esqueletos no armário da principal e mais antiga “democracia” contemporânea. Irromperam protestos também por aqui, em menor escala, quando passamos a não mais suportar as agressões cotidianas a profissionais da saúde; as absurdas manifestações e carreatas em favor do vírus e da morte; as demissões de ministros da Saúde que simplesmente cumpriam as recomendações da OMS (ou, pelo menos, se negavam a contrariá-las abertamente); as ameaças, cada vez mais concretas, de golpe de Estado, puro e simples, acompanhadas de insubordinações e motins de forças policiais fiéis ao presidente, sinalizando que a formação de milícias político-ideológicas estava a um passo de se realizar.

Apesar da forte hesitação, em tudo compreensível e manifestada de forma fraterna e argumentada,1 saímos às ruas para tomá-las de volta; para devolver a ameaça àqueles que faziam pouco caso da pandemia e da democracia; para baixar a fervura e desmascarar o blefe, onde ele de fato existia; para recalibrar o raciocínio a partir do confronto das nossas neuroses com a realidade; e, talvez, para descobrir, num anticlímax, que os avatares do neofascismo que então nos amedrontavam não passavam, em sua maioria, de senhores e senhoras de meia-idade, habituados a selfies e mimos com policiais, e que meia dúzia de membros de torcidas organizadas, versados na gramática do confronto, seria o bastante para fazê-los recuar.

Em retrospectiva, noto agora que esses dois eventos de certa forma serviram para nos tirar do corner; para nos fazer respirar, no exato momento em que muitos de nós tinham a sensação de estar se afogando; serviram também para refazer e fortalecer nossos laços de solidariedade, quando a própria solidariedade consistia, paradoxalmente, apenas em nos distanciarmos uns dos outros. Mais do que meramente produzir em nós a sensação de alívio e recompor os brios, penso que esses eventos, atrelados a outros que o antecederam e o sucederam ao longo do ano, tenham sido importantes também para nos indicar um caminho; para criarmos coletivamente novos horizontes de possibilidade, radicalmente diferentes daqueles que o momento nos impunha, e, em parte, ainda impõe.

Algumas semanas antes do início, de fato, da quarentena em várias localidades do Brasil e dos Estados Unidos, havíamos experimentado uma genuína empolgação com a candidatura de Bernie Sanders nas primárias do partido Democrata. Sua vitória em Nevada, acompanhada pelo derretimento de seu principal adversário à época, o bilionário Michael Bloomberg, candidato orgânico da plutocracia americana (que despejara mais de meio bilhão de dólares em sua candidatura para a presidência dos Estados Unidos), fez crescer a expectativa da militância progressista e de analistas políticos em relação à possibilidade de Sanders vir a disputar as eleições presidenciais com Trump, em novembro. Apesar de sua derrota para Joe Biden, penso que a candidatura Sanders tenha deixado um legado, para além de simplesmente cativar setores da esquerda, uma vez que soube constituir em torno de si um legítimo movimento popular, galvanizando a militância e engajando efetivamente os jovens na política, num de seus momentos de maior descrédito na história recente.

Os efeitos desse movimento, catalisado pela candidatura de Bernie Sanders e também pelas manifestações recentes do Black Lives Matter, puderam ser sentidos já nas eleições de novembro. Apesar de a composição do Congresso não ser favorável ao democrata Joe Biden, pelo menos as candidaturas progressistas tiveram um bom desempenho: todas as integrantes do squad de Alexandria Ocasio-Cortez, por exemplo, (Ilhan Omar por Minnesota, Rashida Tlaib pelo Michigan, Ayanna Pressley por Massachusetts e a própria AOC por Nova Iorque), foram reconduzidas a seus respectivos assentos, e passarão a ter a companhia, a partir do ano que vem, de recém-chegados, como Jamaal Bowman, Marie Newman e Cori Bush, todas eleitas com plataformas progressistas (Medicare for All, Green New Deal, salário mínimo de US$15/hora, reforma das polícias, controle de armas, direitos reprodutivos das mulheres etc.). Além disso, há a possibilidade (cada vez mais remota, é verdade) de que nomes mais à esquerda do partido Democrata conquistem postos importantes no governo Biden, como o próprio Bernie Sanders, cotado para assumir a Secretaria do Trabalho.

Se a partir daí começa a se delinear um caminho em direção ao futuro (ao novo) na política americana, é preciso reconhecer, por outro lado, que diferentes versões de seu passado ainda lutam vigorosamente pelo controle e hegemonia do presente. Como destacou recentemente o historiador Mike Davis, tanto a candidatura de Trump como a candidatura de Biden olhavam a todo momento para trás, e as propostas que apresentaram para o futuro consistiam, no limite, em atualizações de diferentes momentos do passado. Com importantes e significativas distinções, é claro: “um partido [o partido Republicano] esposa a visão do governo autocratizado e um retorno aos dias felizes de uma República branca. O outro [o partido Democrata], oferece uma jornada sentimental de volta ao centrismo multicultural dos anos Obama”.2 Mesmo o “programa máximo” de Biden, um “New New Deal”, seria ainda, em certo sentido, uma reedição do passado, visto não buscar superar radicalmente suas limitações.

De todo modo, a volta do normal — ou a chegada do “novo normal” — à Casa Branca, na atual conjuntura, penso ser razão de muita comemoração — para uma esquerda, é claro, que não guarda todo júbilo apenas para o momento da tão sonhada revolução. Brinquei com amigos (dedicados pessimistas) que o mundo voltava a ser apenas injusto, mas pelo menos redondo. Eu exagerava, é claro: Trump não está morto (nem deve ser impugnado), logo, o risco de a Terra voltar a ser plana daqui a quatro anos ainda existe, e deverá nos acompanhar de perto. Diferentemente dos fascistas dos anos 1930, já que o paralelo está posto, a “queda”3 de Trump não culminou na sua eliminação física, ao contrário, se deu por meio do voto popular, o mesmo instrumento que o alçou ao poder, num primeiro momento.

Do ponto de vista analítico, seria preciso reconhecer o êxito, ao menos parcial, dos proponentes do chamado “iliberalismo democrático”.4 Se a tendência se confirmar, isto é, se aquilo que temos chamado, nos últimos anos, de populismo (ou populismo autoritário, ou mesmo neofascismo) passar a respeitar a soberania das urnas e os ritos de alternância de poder — como, ao que tudo indica, está fazendo Donald Trump, apesar de seus protestos chauvinistas —, ao menos a democracia em seu sentido “minimalista” estaria preservada. Do ponto de vista político, entretanto, é preciso não ser ingênuo e reconhecer que, nesse caso, a democracia em seu sentido mais amplo (até como construção futura) estaria diante de um risco de outra natureza: o risco do risco permanente — seria esse um elemento constitutivo do “novo normal” na política?

Deveríamos estar atentos também ao risco (que, em certa medida, subsume o anterior) de sairmos (se é que sairemos) desses anos tormentosos de Trump, Brexit etc., com uma revitalização do discurso falacioso das “instituições fortes”. Afinal, poder-se-ia pensar, se as instituições da democracia americana sobreviveram a Trump sobreviveriam a qualquer outro desafio. Por que, então, se preocupar em transformar suas fundações? Não se trata, naturalmente, de desconsiderar a importância da política institucional, mas de reconhecer os seus problemas e limitações estruturais, que a impedem de legitimar e conduzir ao centro do poder as demandas e atores políticos que ela própria silencia e exclui. O pior que se poderia fazer, no exato momento em que o povo, em pleno exercício de cidadania, escolhe rifar Donald Trump da Casa Branca, seria fechar os olhos para os graves problemas que permitiram que ele lá chegasse em primeiro lugar.

Não poderíamos, nesse momento, nos furtar de fazer alguns questionamentos. Eu não sou nenhum marxista ortodoxo para achar que as democracias contemporâneas, apesar de todos os seus problemas, se reduzem a mero instrumento de dominação de classe nas mãos da burguesia. Por outro lado, ignorar uma análise de cunho mais “materialista” e concluir, ingenuamente, que Trump só não virou a mesa nos Estados Unidos (ou Bolsonaro, no Brasil) porque nossas bravas instituições estão funcionando a todo vapor, seria desconsiderar a força do mercado e dos agentes econômicos na política. Seria desconsiderar, por exemplo, a hipótese de o mercado ter se constituído nas últimas décadas como uma instância superior de governo, externa aos governos eleitoralmente constituídos, e que, em certo sentido, governa o próprio governo. Desse ponto de vista, se poderia argumentar que o neofascismo não destruiu ainda nossas democracias liberais nos países em que foi capaz de chegar ao poder, não apenas por que elas são hoje muito mais robustas do que eram a república de Weimar e o regime liberal italiano dos anos 1930, mas talvez porque o capitalismo contemporâneo esteja hoje muito mais forte e mais profundamente enraizado na política — e, nesse sentido, a alternância de poder (desde que não inclua, naturalmente, quem está vetado por princípio) seja até um elemento facilitador da gestão da política pela economia.

A incorporação de alguns elementos clássicos do repertório de pensamento da esquerda mais tradicional — como, por exemplo, a luta de classes, seu horizonte anticapitalista etc. —, acompanhada, no entanto, por uma recusa explícita de sua dimensão escatológica ou mesmo milenarista — que, todavia, não parece ter sido operada de maneira tão radical quanto se pensa (ou se afirma) por gerações anteriores — parece ser hoje a marca de um novo socialismo (democrático, é importante ressaltar) que, aos poucos, vai encontrando — ou seria “reencontrando”? — seus espaços de vocalização (institucional ou não) na política contemporânea. Penso não ser trivial assinalar que a consolidação, nesse momento, de um pensamento e de uma prática socialistas em torno da noção de “solidariedade”, por exemplo, representa uma novidade para a esquerda. Mas a esquerda não foi sempre solidarista? Sim e não, é preciso reconhecer. De modo análogo, outra categoria teórica que sempre orbitara, apenas marginalmente, o universo mental das esquerdas, o “povo”, parece ganhar agora uma centralidade (e nuances conceituais) poucas vezes vista. Mais do que estarmos diante de um momento “populista”, como se tem alardeado, tanto à esquerda como à direita, ouso dizer que o que estamos vivendo agora é um momento, antes de mais nada, “popular”.

Nossa libido parece ter sido capturada esse ano, ao menos do ponto de vista eleitoral, por um “velhinho” que falava a todo momento em universalizar o atendimento médico, no país mais rico do planeta, e por um jovem quadro da esquerda (a pessoa mais jovem a disputar uma eleição presidencial no Brasil) cuja vida foi dedicada a lutar para que pessoas tenham onde morar, num dos países mais desiguais do mundo, o último a abolir a escravidão negra nas américas. Por outro lado, vibramos também com “o junho que deu certo” no Chile (este, talvez, o evento mais significativo do ano, em termos de apontar uma saída popular para a esquerda latino-americana); as notícias que nos chegaram da Bolívia, indicando que por lá a onda reacionária parece estar finalmente refluindo (depois de o país ter vivido um golpe de tintura fascista), com o reconhecimento, aliás, pela imprensa internacional, de falhas no relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos) utilizado para sustentar a tese de fraude nas eleições presidenciais de 2019, vencidas por Evo Morales; e, por fim, os avanços obtidos pela sociedade argentina, aqui, em termos amplos, reunindo a esquerda e a direita em torno de uma causa feminista que há anos vem sendo defendida nas ruas: a recente aprovação na Câmara (com perspectiva de sanção pelo Senado) do projeto de lei que prevê a legalização do aborto, logo no país do Papa.

Em live recente, que congregou intelectuais (uspianos, em sua maioria) em apoio à candidatura de Guilherme Boulos, do Psol, para a prefeitura de São Paulo, o sociólogo Ruy Braga anunciou — fazendo referência à famosa (e, nesses últimos tempos, repetida à exaustão) passagem de Gramsci nos Cadernos do cárcere5 — que “o novo finalmente nasceu e a gente já pode restabelecer a nossa esperança no futuro, (…) esse novo, sem dúvida nenhuma, é essa chapa do Boulos e da Erundina”. Fazendo os devidos descontos, penso que a fala do psolista, recebida com simpatia pelos demais participantes do evento (entre eles militantes históricos do PT, como o cientista político André Singer e a filósofa Marilena Chaui), encontrou ressonância também numa espécie de “clima geral” construído em torno da candidatura do líder do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto).

Para além de ter chegado, pelas próprias pernas, a um improvável segundo turno contra o atual prefeito Bruno Covas, do PSDB, ter obtido números realmente impressionantes de engajamento em sua campanha virtual, e ter efetivamente envolvido jovens na política, o grande feito de Guilherme Boulos foi simbolizado, sem dúvida nenhuma, por aquela imagem, veiculada em seu programa eleitoral na televisão e depois printada e compartilhada de maneira viral nas redes sociais: Lula, Ciro, Marina e Dino numa mesma tela, cada um em seu quadrado, como nas já familiares chamadas virtuais, que nos habituamos todos a fazer (aos montes) durante esse ano de pandemia. Mais do que reunir os principais nomes do campo progressista discursando em apoio à sua candidatura, Boulos foi capaz de sinalizar para a esquerda a possibilidade de união, de construção da tão falada e desejada “frente ampla”, que não veio em 2018, não veio em 2019, espanou de novo em meados de 2020 (quando ensaiamos nos unir para fazer avançar um processo de impeachment contra Bolsonaro), e tornou a falhar em várias das cidades (o principal exemplo talvez seja o Rio de Janeiro) em que a esquerda esteve disputando competitivamente eleições municipais no segundo semestre desse ano.

Sem chiliques, sem viagem para Paris, de modo sério e consequente, Boulos assistiu, no primeiro semestre deste ano, as movimentações confusas da burocracia do PT de São Paulo, que resultaram no lançamento da decepcionante candidatura de Jilmar Tatto para a prefeitura. Como observador arguto da política, não deve ter deixado passar também a declaração de Lula, no dia da votação do primeiro turno, em que o ex-presidente afirmava ter sido decisão exclusiva de Tatto não abandonar sua candidatura na reta final de campanha para ceder apoio a Boulos6 (a essa altura o único candidato de esquerda com chances reais de passar ao segundo turno), fazendo crer aos incautos que Tatto teria força, no interior do partido, para sustentar uma decisão como essa, contra a sua vontade (ainda mais depois de a presidenta Gleisi Hoffman ter ameaçado punir militantes que, contrariando decisão do partido, manifestassem apoio a Boulos7). Não poderia ter deixado de ver também o tuíte de Orlando Silva, do PCdoB, em que o concorrente e agora aliado condenava a conduta de Lula: “Até a guerra tem regra. Não se atira num inimigo caído, nem se abandona companheiro ferido. Para se afastar da derrota, se oferece a cabeça do companheiro?”. Como o diabo mora nos detalhes, Boulos deve ter visto também que o próprio Tatto, apesar de ter engolido o sapo e atuado depois de maneira exemplar para derrotar Covas, curtiu o tuíte de Orlando Silva, deixando claro, a quem quisesse ver, seu protesto minimalista contra Lula e a direção do PT.8

Já ao final do primeiro turno, com as urnas devidamente apuradas, analistas políticos se apressavam em anunciar, em primeiro lugar, a “retumbante” derrota sofrida pelo PT (que não conquistara a prefeitura de nenhuma capital, e que ia para segundos turnos, muito complicados, apenas no Recife e em Vitória, nos quais, de fato, acabou depois sendo derrotado); em segundo lugar, o refluxo da onda bolsonarista, indicando que o poder de “midas eleitoral” do atual presidente (que carregara com sua vitória, em 2018, uma horda de ilustres desconhecidos e outsiders a cargos do Executivo e do Legislativo) havia acabado; e, por fim, o fortalecimento do “centrão” (que não é exatamente o centro) e a revitalização de figuras tradicionais da política fisiológica, indicando com isso, talvez, que a “velha política” havia voltado (sem nunca ter saído verdadeiramente de cena) para ocupar o lugar de um novo que em menos de dois anos se tornara velho, e se consolidar, paradoxalmente, como o “novo normal” na política brasileira.

Diante desse cenário, cuja análise minuciosa ainda está por ser feita, seria tentador para setores da esquerda, ou mesmo do campo progressista, ensaiar um movimento desatinado em direção ao centro. Talvez, uma saída “à la Biden” de fato funcione para derrotar o bolsonarismo nas urnas em 2022, e não quero sugerir com o que digo a seguir que a esquerda deva descartar, de início, essa possibilidade (olhando hoje em retrospecto, por exemplo, me parece claro que em 2018 deveríamos ter imitado a Cristina Kirchner de 2019, que, por sua vez, nos imitou às avessas, e evitado, assim, a tragédia que foi e está sendo o governo Bolsonaro). No entanto, me parece evidente que a resposta global para os desafios que estão postos no momento não deveria consistir na esquerda, mimetizando a direita, se travestir de centro. Os anos do “centro vital”9 parecem ter finalmente ido embora e deixado com sua partida uma conta muito alta a ser paga, principalmente para as esquerdas e para a classe trabalhadora. Nossa radicalidade, me parece, deverá consistir nos próximos anos em não negociarmos princípios, muito mais do que em, queimando pontes antecipadamente, recusarmos alianças táticas que nos melindram ou que comprometem nossos planos hegemônicos a curto e médio prazo.

Para encerrar esse panorama (muito mais do que um “balanço”) do ano político de 2020, penso ser imprescindível aludir a um elemento muito intrincado do quadro de análise dos resultados das nossas eleições municipais. Em meio a tantos retrocessos institucionais, que se traduzem, efetivamente, em retrocessos civilizatórios, com grande impacto na sociedade civil, é curioso observar, no entanto, que algumas pautas progressistas parecem não apenas não ter retrocedido, como também ter avançado e ampliado seu escopo. A mulher mais votada para a vereança em São Paulo, por exemplo, Erika Hilton do Psol, é trans, preta e periférica. A exemplo dela, uma série de outras capitais elegeram pessoas transgêneros pela primeira vez para o legislativo municipal, nem todas elas, no entanto, de esquerda, como é o caso de Thammy Miranda, homem trans, eleito vereador, também em São Paulo, pelo Partido Liberal.

O amplo alcance das questões de raça e de gênero, que hoje perpassam quase todo o espectro ideológico, deveria ser interpretado de que forma pela esquerda? Como uma vitória, visto que historicamente foi ela quem, em primeiro lugar, pautou essas questões no debate público? Ou como uma captura da pauta pela direita? São essas as perguntas, naturalmente, que norteiam as análises que vêm sendo feitas ultimamente. De todo modo, me parece evidente que os resultados das eleições municipais consistem numa resposta contundente à virulência dos ataques perpetrados pela extrema direita brasileira (bolsonaristas e fundamentalistas religiosos) às minorias, em termos de representação, do país: mulheres, negros, LGBTs etc. Mas não nos iludamos, a guerra cultural no Brasil vem sendo travada palmo a palmo, e não há respiro.10 Em muitos casos, a emergência política dessas figuras se confunde com sua própria luta por sobrevivência. A onda bolsonarista varreu muita coisa, levou muita coisa embora, mas é um sopro de esperança, em meio às dúvidas e incertezas, notar que ela não levou tudo, e aquilo que ela não conseguiu levar arde agora com ainda mais força, como fogo oxigenado, e, quem sabe, pode vir a acender o rastilho das transformações futuras e necessárias para o país.